XVIII

Querido amigo,

Como estás a ler esta carta sabes que estou vivo e que, pelo menos a esse respeito, correu tudo bem. Terás de utilizar a imaginação para tentar compreender como vivi os acontecimentos que te vou narrar. Terás de ter presente que, quando o Dr. Augusto Viana me bateu à porta, eu não sabia se não era também a morte que me chamava. Quando ele me disse, sem simpatia no olhar, mas também sem maldade, que precisávamos de falar, e que, apesar de serem onze da noite, como estava Lua cheia e um tempo agradável, ele ficaria muito agradecido se eu passeasse com ele, eu não sabia se regressaria desse passeio. Mas fui. Queria saber, não só o que se tinha passado, o que acontecera ao seu filho, mas também se este seria um mundo onde a morte poderia vir das mãos de um homem que fora capaz de me perguntar se eu estava triste. Para que possas estar mais próximo do que eu vivi, apelo à tua imaginação. Imagina como foi ir passear à noite com um possível assassino. Imagina como foi para mim o desenrolar da nossa conversa, como o meu medo aumentou quando nos afastámos da casa e nos encaminhámos para a falésia. Imagina a Lua gorda e cheia dominando o céu nocturno, e imagina-a deitada sobre o mar, e imagina uma brisa salgada e leve, um cheiro a terra molhada e uma falésia escarpada ao pé de mim. E imagina a minha vertigem. Por dentro e por fora. Imagina também a voz do Dr. Viana, com um ritmo de metrónomo, seca, sem tremer mesmo quando diz as coisas mais terríveis. Tento reproduzi-las:

– Um médico sabe que há muitas maneiras de matar uma pessoa. Por vezes um médico diz à família «Não há nada mais que possamos fazer». E, de facto, o doente em causa recebeu todos os cuidados que qualquer hospital lhe daria. Mas o médico sabe que, apesar de ter feito tudo o que a sua profissão exige, de ter tomado as decisões sensatas, se o moribundo fosse outro, se fosse alguém amado pelo médico, haveria mais a fazer. Podia não ser sensato e muito possivelmente não resultaria. Mas poderia ser feito. Desistir sem esse último esforço desesperado não é a mesma coisa que espetar uma faca em alguém, mas também é matar. Não é falta de zelo, mas é um assassínio por falta de esperança, por falta de ousadia. E os assassínios acontecem mais vezes do que pensamos. Não os de faca e bala, mas os assassínios perpetrados pelas palavras, pelos gestos, pela retirada de amor, pelo silêncio. Oscar Wilde dizia que todos os homens matam aquilo que amam. Foi o que eu fiz. Eu matei o meu filho. Não o quis fazer, mas sou o responsável. Discutimos. Eu disse coisas horríveis, e disse-as não por serem verdade mas porque achava que iam ter certo efeito, o efeito que eu pretendia. Nós, Homens, somos coisas curiosas. Temos todas estas palavras ao nosso dispor mas usamo-las muitas vezes como uma bola de bilhar, esperando que façam ricochete aqui e tabela ali, enviando-as na direcção contrária à que pretendemos ir, para ganhar mais com o seu percurso. As coisas horríveis que eu disse ao meu filho pretendiam o que todo o pai pretende: que ele fosse mais feliz. Que a sua vida fosse mais plena e o seu mundo fizesse mais sentido. E, no entanto, não deixaram de ser críticas, recriminações, insultos. A última vez que ouvi a voz do meu filho foi no fim dessa discussão, em Lisboa. Sabe quais foram as últimas palavras que me disse? «Eu pago a merda da multa!» Porque, no meio dessa conversa atroz, foi uma das coisas de que o acusei, foi uma das minhas armas de arremesso: a multa. Ele morreu aqui, nesta ilha. Como, não interessa. Dizem que foi um acidente. A minha mulher teve outra sorte no que diz respeito às últimas palavras. Ele ainda lhe telefonou da ilha, e quando a Teresa lhe perguntou o que ele ia fazer para os Açores, o meu filho respondeu, e na sua resposta está um pequeno exemplo da pessoa maravilhosa que ele era, da pessoa maravilhosa que eu ataquei de forma bárbara: «Vou descobrir um tesouro!» Foi isso que ele disse: «Vou descobrir um tesouro…» Ele morreu nesta ilha. Perguntaram-nos se queríamos que o corpo fosse enviado para Lisboa. Imaginar o caixão rodeado de malas a sobrevoar o Atlântico causou-me uma angústia enorme. Além disso, não achei justo que fosse ele que tivesse de regressar. Se foi vontade dele vir para aqui, pois então viríamos nós também para esta ilha, enterrá-lo perto do seu tesouro. Não vale a pena descrever-lhe esses dias. No fim do funeral, quando chegámos ao hotel, a minha mulher, que suportara as cerimónias com um estoicismo admirável, desmaiou. Os dias seguintes foram ainda mais terríveis do que os das cerimónias fúnebres. Eu olhava para os olhos da minha mulher e conseguia ver, de hora para hora, a luz a extinguir-se dentro deles. Uma mãe em luto é das coisas mais terríveis que podem existir. O que eu via era pior do que isso, era algo para além do luto, o que via era alguém a morrer por dentro, a perder a alma. Ela teve de ser internada no hospital, e apesar de todos os medicamentos, apesar de todas as injecções, apesar dos barbitúricos, das benzodiazepinas, dos relaxantes musculares, dos antidepressivos, nada parecia melhorar o seu estado. Sentado ao lado dela, eu também morria por dentro, mas não tinha a benesse da loucura. Tinha de viver lúcido cada segundo que passava, cada segundo interminável de uma vida em que o meu filho tinha morrido e a minha mulher enlouquecera. Conhece o Franz Kafka, o escritor checo? Conhece a história da boneca? Quando Kafka viveu em Berlim, costumava passear pelos jardins, muitas vezes na companhia de uma mulher alemã, Dora. Num desses passeios o casal repara numa criança que chora. Kafka vai ter com a rapariguita e pergunta-lhe porque está triste. A criança, com a voz aos soluços, conta-lhe que perdeu a sua boneca. Kafka pede-lhe uma descrição da desaparecida, e escuta-a com um ar muito atento. Quando a rapariga já não se lembra de mais nenhum pormenor, o escritor surpreende-a dizendo-lhe que, não só ele conhece aquela boneca, como sabe que ela não está perdida. Anuncia então que o motivo pelo qual a miúda não a encontra é por que a boneca partiu de viagem. A rapariguita pergunta-lhe como é que ele sabe isso. «Porque ela me escreveu uma carta!», responde Kafka. Desconfiada de tantas coincidências, a criança pede para ver a carta, embora não saiba ler. O escritor lamenta não a ter consigo, e, para convencer a criança da verdade da sua história, promete trazê-la no dia seguinte. Nessa noite, Kafka redige, com o cuidado e a arte com que escrevia os seus contos, a carta da boneca, que devia cumprir a dupla missão de mostrar o afecto da boneca pela miúda e justificar a sua viagem. O escritor põe a viajante a explicar que, apesar de gostar muito da rapariguita, sentira algum enfado por viver sempre com as mesmas pessoas, no mesmo sítio e, sendo uma boneca cheia de curiosidade pelo mundo, decidira viajar para conhecer novos lugares e fazer novos amigos. A boneca termina a carta voltando a assegurar à rapariga de que gosta muito dela, e dizendo que se hão-de reencontrar, e compromete-se a escrever uma carta por dia contando as suas viagens. No dia seguinte, no mesmo jardim, a rapariguinha ouve Kafka ler em voz alta a carta da boneca. Não seria a única vez. A partir daí, Kafka escreve uma nova carta todos os dias. A boneca cresce, visita lugares novos, vai à escola, faz amigos, vive aventuras. Ao longo das cartas surgem sempre demonstrações do amor da boneca pela rapariga, e explicações sobre o adiar do seu regresso. Kafka pretende ir preparando a criança para a ideia de que a boneca nunca regressará, mas não sabe que fim dar à história. Tem de arranjar uma forma de fazer com que a boneca desapareça sem desaparecer, que ame a miúda mas não volte para ela, no fundo, tem de fazer o impossível, fazer com que uma coisa que se perdeu não tenha sido perdida. Finalmente, ocorre-lhe a solução ideal. Ele casa a boneca. O romance e a cerimónia do casamento são descritos em várias cartas, até que a boneca escreve à rapariga explicando-lhe que não poderá regressar porque agora tem de viver com o marido, e descrevendo com grande detalhe a sua nova casa. Na última carta, a boneca agradece à rapariga os tempos felizes que passaram juntas e despede-se, com grande carinho, da sua melhor amiga. E, assim, em três semanas de cartas diárias, Kafka substitui na mente da rapariga uma boneca inanimada por uma boneca viva e cheia de histórias que seguiu o seu destino, embora sem esquecer a rapariga, e que vive agora, à distância, uma vida feliz. Quando eu escrevi a primeira carta, a ideia não era que a minha mulher acreditasse nela. Eu não pretendia fingir que o nosso filho continuava vivo, longe de nós mas feliz, a viver inúmeras aventuras. Não sei dizer exactamente o que esperava. Achei que a minha mulher perceberia que fora escrita por mim, e esperava, talvez, mostrar-lhe que algo dele vivia ainda em mim, que a sua voz continuava a ecoar. Foi um acto desesperado, uma das coisas que se faz para se fazer qualquer coisa. Li-a no hospital ao lado da cama, numa altura em que ela quase não falava. Quando acabei a leitura, a minha mulher sorriu, pela primeira vez desde que ele morrera, e disse-me: «Temos de lhe responder!» Nos primeiros tempos, julguei que podia fazer o papel de Kafka, mas aconteceu o contrário. Acho que as cartas se foram tornando mais importantes para mim do que para a minha mulher. Comecei a perder dias inteiros em pesquisas. Já sei que entrou no meu gabinete, portanto, sabe do que estou a falar. Tornou-se importante, tornou-se fundamental que aquelas narrativas fossem próximas da realidade. Para escrever uma carta de três páginas sobre um lugar eu lia centenas. Apesar do meu cuidado, por vezes a minha mulher desconfiava e comentava algum pormenor, e outras vezes ainda dizia qualquer coisa que me fazia crer que ela sabia quem era o verdadeiro autor. Houve recaídas. Muitas. Às vezes acusava-me de o ter morto, noutras dizia que tínhamos de ir ter com ele aonde quer que fosse. A certa altura, já não sabia se ela chorava porque o nosso filho tinha morrido, ou porque ele nunca mais regressava para nós. A última recaída aconteceu ainda no outro dia, quando você nos visitou a pedir a receita do bolo. Lamento se fui indelicado, mas chegou num momento terrível. Nunca deixámos os Açores. Não lhe sei bem dizer porquê. A minha mulher começou a fantasiar que tínhamos vindo para aqui para viver a reforma e esperar pelo final da volta ao mundo do nosso filho. Eu não me senti capaz de regressar para Lisboa e temi o efeito que o regresso teria na minha mulher, por isso adiei-o. O tempo passa muito rápido. Achei que precisava de alguns meses para resolver tudo, para fazer o luto, para trazer a minha mulher de volta à realidade. Mas passaram-se anos. Não sei quem precisa mais destas cartas, se ela, se eu. Há dias em que passo mais horas a imaginar as viagens do meu filho do que a viver a minha vida, a nossa vida. Para tornar a história o mais real possível, comecei, a certa altura, a escrever cartas que haviam sido escritas por companheiros de viagens dele. Não me bastava já descrever o mundo pelos olhos do meu filho. Coloquei outros olhos a descrevê-lo, sempre generosos, sempre apaixonados. Escrevi-as até em inglês e traduzi-as depois para a minha mulher. Cheguei a pensar falsificar recibos de hotéis de todo o mundo passados em nome dele, para melhor a convencer. Mas não foi preciso. Apesar da dúvida ocasional, ela quis sempre acreditar. Eu sei que é demais, eu sei que estou a fazer uma loucura. Kafka casou a boneca, mas que fim posso eu dar ao meu filho? Que motivo poderia um filho ter para não voltar a ver os seus pais? Comecei a última carta várias vezes, mas nunca a acabei. Até arranjei um motivo para ele não voltar. Iniciei cartas onde ele explicava que tivera de ceder o seu passaporte para salvar uma família, e que agora não poderia regressar, mas viveria feliz. Mas como iria explicar que ele não escrevesse mais? Que pretexto podia existir? Talvez até se encontrasse uma razão plausível, mas para isso eu tinha que deixar de escrever as cartas, tinha de desistir do mundo imaginário onde acontecem as aventuras do meu filho. Quando me sento à frente de uma folha em branco, ele pode estar em qualquer lugar do mundo, desde que não seja aqui, e tudo lhe pode ter acontecido. Quando ele começa uma carta, sei que está feliz e que o mundo é um lugar maravilhoso e aguardo por saber que coisas fantásticas testemunhou, em que lugar incrível se encontra, que mulheres belíssimas lhe deram o seu beijo. Como posso eu substituir este mundo infinito de possibilidades por outro em que nada lhe acontece, onde ele não está em lado nenhum e ninguém o beija? Existem vezes em que confundo aquilo que ele realmente viveu com invenções minhas. Se calhar há-de chegar o dia em que eu acredito que as cartas são verdadeiras. Soube sempre que a minha mulher lhe estava a mostrar as cartas. Não fiz nada para o impedir porque senti que a história ficava ainda mais real, já que existia agora alguém que só conhecia o meu filho pela vida que ele levava depois de ter morrido. Quando me pediu para lhe escrever e eu recusei, cheguei a ponderar aceitar a proposta, mas achei que seria demais. Eu responder-lhe em nome do meu filho seria quase uma blasfémia. Uma coisa é deixá-lo acreditar na sua existência, outra era responder-lhe com a voz de um morto. Tudo isto foi longe demais. O luto de um filho é sempre uma caminhada estranha, que cada pai faz à sua maneira. Lembro-me de visitar um amigo meu, quase um ano depois de o seu filho adolescente ter morrido. Ele e a sua mulher pareciam ter terminado o luto. A prova mais poderosa nesse sentido era terem transformado o quarto do filho num escritório. Muitos pais em luto são incapazes sequer de fazer a cama, e deixam os quartos como estavam no último dia que o filho viveu, os posters na parede, os cadernos abertos na secretária… Por não ter passado por essa experiência, pensei então, quando vi o escritório, que o processo de luto, essa expressão burocrática para o que há de mais terrível na vida, estava a correr-lhes bem. Só que, por altura da sobremesa, num jantar que tivera bastantes gargalhadas, tomei a iniciativa de ir à cozinha buscar açúcar. Antes que a anfitriã me conseguisse dizer qualquer coisa, eu já tinha aberto a porta da despensa. É possível que eu tenha sentido algo parecido com o que sentiu quando viu o meu escritório. No chão da despensa, arrumadas como um exército no dia de inspecção, estavam algumas dezenas de pacotes de leite de soja. De início não percebi o significado, mas depois lembrei-me de que o filho do meu amigo era intolerante à lactose. O horrível desta história é perceber o quão doloroso era, para aqueles pais, sempre que iam às compras, tentar não comprar leite de soja. Eu imagino o esforço para continuar a andar, para não parar o carrinho. E imagino a dor quando, por fraqueza, se pega no leite que se sabe que ninguém vai beber, e se paga o leite, e se arruma na despensa. Conto-lhe esta história porque me acontece o mesmo. Eu quero parar de escrever as cartas, eu quero aceitar que o meu filho morreu, que ele já não está cá, que não está nem em Paris nem em Londres a viver aventuras, a apaixonar-se, a ser feliz.

Mas não consigo.

Nem mais uma palavra foi dita, por mim ou por ele. O dia já nascia quando o Dr. Augusto Viana acabou o seu monólogo. Ficámos ainda uma meia hora a ver a luz inundar o mundo e a cor regressar às coisas. Não consigo, agora, dizer-te muito mais. Tentar reproduzir as palavras dele cansou-me quase tanto como ouvi-las. Despedimo-nos com um aperto de mão na bifurcação do caminho. Eu queria dizer tanta, tanta coisa. E ao mesmo tempo sentia que nada do que eu dissesse serviria, que por muito cuidadas que fossem as minhas palavras não seriam capazes de expressar o que eu pretendia. Tirei então a fotografia do bolso. Aquela fotografia. Tive vergonha de te dizer até agora, mas ando sempre com ela. Mesmo quando vou correr, levo-a no bolso do fato de treino.

Mostrei a fotografia ao Dr. Viana. Ele pegou nela com cuidado extremo. Após alguns segundos de contemplação, acenou com a cabeça em sinal de compreensão. Levantou depois o rosto e olhou-me nos olhos. O olhar que dois vizinhos trocam quando se vêem lado a lado, à noite na rua, diante do seu prédio que arde sem salvação possível.