XXI

Querido amigo,

Estou muito perto de ti, mas ainda não nos vimos. Os últimos sete dias da minha vida já se passaram na cidade que mais alegrias e tristezas me trouxe: Lisboa. Para já, estou a morar numa pensão no Rossio. Não sei ainda se regressarei à minha casa.

As despedidas da ilha foram rápidas. Passei por casa de Hector a devolver-lhe os seus livros e acabámos a jantar no restaurante do senhor Joaquim. O braço dele já estava bom e o seu humor mantinha-se. Disse que um dia ainda me visitava em Lisboa a pedir para eu guardar um caixote cheio de búzios.

Encaixotei todos os livros que fui acumulando aqui e, antes de entregar o jipe, visitei o posto de turismo. Esperava que a Maria lá estivesse. Estava. Reconheceu-me de imediato e saudou-me com um sorriso. Perguntei-lhe se gostava de livros e quando ela, com um ar intrigado, me disse que sim, convenci-a a acompanhar-me até ao jipe.

Devemos ter demorado uns dois, três minutos a ir do edifício até ao estacionamento. Mas foram dois, três minutos nos quais me senti de novo adolescente e nos quais voltei a sentir a euforia tingida de timidez que é andar lado a lado com uma senhorita que desejamos. Abri a mala do jipe e mostrei-lhe os quatro caixotes de livros que lhe queria oferecer. Maria recusou sem deixar de sorrir. Achou, sem dúvida, que era um gesto excessivo e, para tentar resolver as coisas, propôs escolher um ou dois livros apenas. Eu insisti, e expliquei que, uma vez que ia partir ainda nesse dia, não podia levar todos aqueles livros comigo. Não sei se sonhei ou se ela ficou mesmo um pouco triste ao ouvir isto. Voltei a insistir que ela ficasse com eles, mas Maria propôs-me pagar pelos livros.

– Troco-os por um beijo – lembrei-me de dizer, como um adolescente que, por falta de experiência, procura agir como a personagem de um filme. Ao contrário do que seria de esperar, ela não achou este comentário ridículo, antes sorriu envergonhada, desviando depois o rosto na direcção do mar.

Quando se virou para mim, disse-me: «Está bem.»

Quase não reagi quando ela se inclinou para a frente e me beijou na bochecha. À velocidade a que tudo isto se passou, não sei se cheguei a ter tempo de esperar que fosse na boca, mas fiquei um pouco desiludido com a castidade do ósculo. Um minuto antes eu não esperara nem pretendera obter qualquer beijo, mas o ser humano é veloz a criar ilusões e lento a lidar com o seu fim. Desapontado, carreguei os caixotes para um pequeno gabinete atrás do posto de turismo.

Quando olhei para Maria para me despedir ela notou, sem dúvida, que eu estava desiludido. Que ridículo lhe devo ter parecido. Como ousava eu, um homem bem mais velho, que falara com ela apenas uma vez e que agora lhe oferecia uns caixotes de livros velhos, achar-me no direito de receber um beijo de uma mulher assim? Mas, meu amigo, os milagres existem, e não minto quando te conto que ela então me beijou. Um beijo que se sabia primeiro e último.

–Este é de graça! – disse-me, tal e qual como num filme.

Foi o primeiro beijo a sério que recebi desde aquilo-que-aconteceu.

Não voltei a ver os Viana. Quando passei para me despedir, o carro não estava lá e a casa encontrava-se fechada. No voo para Lisboa, assim que o avião levantou, comecei a escrever-lhes. Depois de aterrar, só saí do aeroporto quando terminei a carta e a enviei para os Açores.

Era uma carta tão ridícula quanto sincera, tão ambiciosa quanto carregada de falhas, tão patética quanto genuína. Hoje de manhã, uma semana depois, foi-me devolvida com um carimbo a informar que o destinatário já não residia naquela morada.

Ainda não falei com ninguém desde que cheguei. Não te disse mas, nas últimas semanas, deixei crescer a barba como se fosse formar uma banda folk. Magro, bronzeado e barbudo como estou, com um boné na cabeça e óculos escuros, consigo andar pelas ruas e ser confundido com um turista. Já me cruzei com algumas pessoas que me conhecem, e notei, aliviado, que o olhar delas nunca poisou em mim.

Em breve vou voltar a ser eu, vou voltar a falar e visitar as pessoas que magoei, que ignorei ou de quem recusei indelicadamente a ajuda. Mas precisava destes dias. Precisava de voltar a percorrer estas ruas sem ter de conversar, sem ter de dar explicações, sem ter de pôr pessoas a par, sem ter de contar o tempo que já passou desde aquilo-que-aconteceu.

O meu encanto para com a vida vai regressando. As feridas não desaparecem, mas cicatrizam.

Nos três primeiros dias passeei só à noite, aproveitando o silêncio e a pouca gente para me reencontrar com a minha cidade. Reencontrei as avenidas, ruas e largos onde tiveram lugar tantos dos momentos mais importantes da minha vida. Não há um recanto desta cidade para o qual eu não tenha uma história ou uma esquina que eu não tenha cruzado. É-me difícil encontrar uma árvore que não me tenha oferecido sombra, um banco onde não tenha descansado, um bairro onde não haja um amigo. E ao mesmo tempo, apesar de não ter sido tão extensa a minha ausência, Lisboa já mudou um pouco, já há prédios que eu vira em obras e que agora têm gente lá dentro, outros que ruíram, fachadas pintadas de cor diferente. Vou reparando nos restaurantes que fecharam, nas pastelarias que agora são bancos, em ruas onde os carros passam no sentido contrário. O tempo também passou por aqui, também passa por aqui, como passa por todo o lado, por toda a gente.

Ao quarto dia já ousei passear ao fim da tarde, um daqueles fins de tarde de Verão em que cheira a maresia e em que a luz desliza pelas coisas tão devagar que parece que o dia nunca morrerá e todas as pessoas encontrarão a sua felicidade antes de que a primeira estrela se veja no céu.

No quinto dia, domingo, almocei perto do castelo de São Jorge, rodeado de turistas corados da subida e do calor. Bebi cerveja, comi croquetes, e, vá-se lá saber porquê, nunca tirei os óculos escuros nem o boné e falei em inglês com os empregados. Desci, meio bêbado, para a minha pensão. Cheguei a pensar em visitar-te, mas não quis que o nosso reencontro acontecesse comigo suado, com barba de sem-abrigo e com o hálito ébrio.

Segunda-feira, apanhei o barco no Terreiro do Paço e passei o dia na outra margem a olhar para Lisboa e a pensar que aquele seria o último dia do meu desterro.

E assim cheguei a terça-feira – hoje. Acordei de forma espontânea e vi que era cedo, muito cedo. Levantei-me, mesmo assim. Barbeei-me até ter o rosto liso. Com o aftershave a arder-me na pele, senti-me fresco e pronto. Saí para a rua. O dia estava apenas a começar.

Encaminhei-me para Alfama, subi as ruas estreitas e íngremes em transe, tão focado estava no meu destino. Quando cheguei à Feira da Ladra ainda havia poucas bancas e vendedores, mas já lá estavam os que eu pretendia. Fui à banca onde se podem comprar fotografias antigas, até álbuns inteiros de famílias desconhecidas, provavelmente herdados e depois vendidos por uma quantia irrisória. Nunca percebi quem compra estas fotografias, quem deseja ter consigo os registos de outras vidas. Num caixote de madeira estavam centenas de fotografias avulso, a maior parte a preto e branco. Havia imagens de casais muito direitos com expressões rígidas, havia fotografias de crianças vestidas com o seu fato de domingo, havia noivas em pé ao lado de mesas com arranjos de flores, havia retratos de família com os pais no centro e a sua prole alinhada aos lados, havia fotografias de rapazes fardados com rostos melancólicos. Pensei quando é que aquelas fotografias teriam deixado de ser olhadas, quando é que passaram, provavelmente graças a uma herança, a ser posse de alguém para quem as pessoas retratadas pouco diziam. Mas pensei também noutra hipótese, que talvez algumas daquelas fotografias não tivessem sido vendidas, oferecidas ou descartadas por falta de afecto mas, sim, por excesso de afecto. Pensei que haveria quem tivesse visto estes retratos tantas vezes que eles se tinham tornado opressivos, que a sua contemplação causasse os malefícios da contemplação do sol do meio-dia, cujo excesso de brilho nos cega para observar o resto das coisas. Sem que ninguém reparasse, peguei na fotografia que me tem acompanhado, olhei-a uma última vez e pousei-a na banca, perdida no meio das outras.

Afastei-me sem olhar para trás, primeiro devagar, com medo de que alguém reparasse em mim e me acusasse de fosse o que fosse, depois um pouco mais rápido, até sentir que quase corria.

Desci em direcção à Baixa. O rio cintilava próximo de mim e as ruas começavam a encher-se. Percebi que as cidades também têm marés, mas marés feitas de pessoas. Que há horas em que os passeios se enchem e horas em que se esvaziam, que a vida tem um ritmo e que esse ritmo é imparável. E deixei-me ir.

Senti saudades de Lisboa e alegria por as poder matar. Saudades de descer a Avenida da Liberdade, de comer pastéis de Belém, de ver o Tejo a aparecer e desaparecer quando se desce uma colina, saudades de estar deitado na relva dos jardins, saudades de ouvir os eléctricos deslizando sobre o Chiado, saudades de aguardar nas passadeiras de peões no Largo do Rato, de percorrer cansado a Avenida da República, de atravessar o Bairro Alto, saudades da vista do miradouro da Graça, de Santa Catarina e de todos os outros, saudades do fresco da Mãe d’Água, saudades dos bancos do jardim do Príncipe Real, saudades da vida em Lisboa.

Quando cheguei ao Terreiro do Paço vindo de Alfama, decidi apanhar o metro para sair na estação mais a norte e poder assim passar o meu dia a descer a cidade, matar as minhas saudades passo a passo, rua a rua.

Já debaixo do chão, fora do alcance do sol, depois de descer as escadas largas, virei à direita na direcção pretendida. De repente dei comigo defronte da pequena multidão acabada de sair do metro. Por um momento fui acometido de um terror enorme, como se a multidão me fosse engolir ou esmagar. Mas o terror passou. Foi substituído por ternura. Enquanto as pessoas passavam por mim, cada uma com um destino diferente, eu olhei para elas e tentei ler nos seus olhos, rostos, gestos, maneiras de andar, que vida levavam, donde vinham, que sonhos alimentavam, que tristezas queriam abandonar. Uma alegria enorme abriu-se como um pára-quedas dentro de mim. Senti que cada pessoa que comigo se cruzava tinha dentro de si um mundo, um mundo enorme e pleno com tantos momentos de triunfo e derrota, de anseio e júbilo, de enfado e melancolia que chegariam para escrever uma nova história das Mil e Uma Noites.

Pus-me a pensar em todas as pessoas que, por essa hora, circulavam pela cidade, e que apesar de trazerem em si sonhos desfeitos, amores falhados e mortos de cuja saudade não se conseguem livrar, continuavam a percorrer as ruas, a atravessar Lisboa, a navegar pela vida. Continuavam a cumprir as mil tarefas da existência. A lavar-se, a comer, a fazer a cama, a pagar impostos, a obedecer a patrões, a serenar familiares, a consolar amigos, a questionar Deus, a cumprir leis, a pagar multas, a aguardar a mudança de cor do semáforo, a roer as unhas em engarrafamentos, a esperar ao calor na paragem de autocarro, a ser mal entendidos pelos que amam, a lavar loiça, a despejar o lixo, a sorrir por gentileza de piadas sem graça, a testemunhar no espelho a passagem do tempo, a acordar mesmo quando queriam continuar a dormir. E dentro desta existência que lhes pede tanto, que nos pede tanto, apesar de todos os botões que é preciso todos os dias apertar, continuará a haver mais beleza e gozo ao nosso dispor do que caberiam a um semideus.

Se cada um de nós traz dentro de si um cosmos, estamos destinados, mais tarde ou mais cedo, numa conversa que até pode ter-se iniciado para comentar o calor que faz, a vislumbrar a vida interior do outro e, assim, ter acesso a outra narrativa, a outros sonhos, a outra forma de ver e de viver. Cada pessoa com quem me cruzo na rua é um possível multiplicador de mim próprio. E eu sou um possível multiplicador de qualquer pessoa.

Esta é a última carta que te escrevo. A partir daqui, as minhas palavras para ti não serão escritas, mas faladas. Perdoa-me a grandiloquência, o exagero e a pieguice. São apenas a minha forma de expressar alívio por ver que não perdi nem a esperança, nem a capacidade de me sentir alegre, mesmo que seja uma alegria menos feroz e para sempre incompleta. Faço-o à minha maneira, porque sempre preferi um louco poético a um poeta sem loucura.

Desde que aconteceu aquilo-que-aconteceu não se passou um só momento em que eu pensasse que não podia contar contigo, em que suspeitasse de que já não terias mais paciência para os meus lamentos de lavadeira, a minha irresponsabilidade infantil, o meu dramatismo de novela da tarde. Se a amizade fosse uma competição olímpica, o júri abriria uma excepção e dar-te-ia não só a medalha de ouro, mas também a de prata e a de bronze.

Agora resta-me viver a vida fora do papel, feliz por saber que, perto de mim, pode estar um pianista sonâmbulo, uma criança perguntando a um adulto onde fica a cama de Deus, um guarda-livros apaixonado por uma cantora lírica, um jovem a quem os médicos têm de retirar uma colher de pus do seu lindo corpo, um adolescente que se apaixonou pela primeira vez no dia anterior, um amigo que me abrirá sempre a porta.

Como te disse, o suicídio nunca será uma opção para mim. Agora, depois deste dia divino, consigo até precisar as muitas razões para continuar vivo. Dizem que há sete biliões de pessoas no mundo. São sete biliões de motivos para não me matar.

Obrigado, muito obrigado