1. Os comensais
NA CASA DA RUA DU HELDER, onde em Roma Albert de Morcerf marcara um encontro com o conde de Monte Cristo, eram grandes os preparativos na manhã do dia 21 de maio para honrar a palavra do rapaz.
Albert de Morcerf morava num pavilhão situado no canto de um grande pátio e defronte a um outro prédio, destinado aos criados. Apenas duas janelas desse pavilhão davam para a rua, as demais se abriam, três para o pátio, e duas outras, nos fundos, para o jardim.
Entre o pátio e o jardim, construída com o mau gosto da arquitetura imperial, ficava a residência frívola, vasta, na última moda do conde e da condessa de Morcerf.
Em toda a largura da propriedade, dando para a rua, reinava um muro com vasos de flores espaçados em cima e interrompido no meio por um grande portão gradeado com hastes douradas, que servia para as visitas de cerimônia. Uma portinhola quase colada na cabine do porteiro dava passagem para que os serviçais ou maîtres entrassem ou saíssem a pé.
Adivinhava-se, nessa escolha do pavilhão destinado à moradia de Albert, a delicada precaução de uma mãe que, não querendo se apartar do filho, tinha não obstante compreendido que um rapaz da idade do visconde precisava de liberdade integral. Por outro lado, também era possível constatar, devemos dizê-lo, o inteligente egoísmo do rapaz, arrebatado por essa vida livre e indolente, que é a dos filhos de boa família, e que douravam sua vida como ao passarinho sua gaiola.
Por essas duas janelas que davam para a rua, Albert de Morcerf podia fazer suas explorações no lado de fora. A visão exterior é imprescindível para os jovens, que sempre querem ver o mundo atravessando seu horizonte, ainda que esse horizonte seja o da rua! Além disso, realizada sua exploração e caso ela merecesse um estudo mais aprofundado, Albert de Morcerf podia, para se dedicar às suas buscas, sair por um portãozinho que ficava no lado oposto daquele que indicamos perto da guarita do porteiro, e que merece uma menção especial.
Era um portãozinho que parecia esquecido de todos desde a época em que a casa fora construída, e que julgavam condenado para sempre, tão discreto e empoeirado parecia, mas cuja fechadura e dobradiças regularmente lubrificadas sugeriam um uso misterioso e assíduo. Esse portãozinho disfarçado competia com o outro portão, zombando do porteiro, de cuja vigilância e jurisdição escapava, abrindo-se como a famosa entrada da caverna das Mil e uma noites, como o Sésamo encantado de Ali Babá, mediante algumas palavras cabalísticas ou alguns arranhões convencionados, pronunciadas pelas vozes mais meigas ou operados pelos dedos mais delicados deste mundo.
No fim de uma galeria vasta e calma, com a qual esse portãozinho se comunicava e que servia de vestíbulo, abria-se, à direita, a sala de jantar de Albert, que dava para o pátio, e, à esquerda, sua sala de estar, que dava para o jardim. Arbustos, de trepadeiras que se abriam em leque através das janelas, escondiam do pátio e do jardim o interior desses dois cômodos, os únicos, situados no térreo como o eram, onde teriam podido penetrar os olhares indiscretos.
No andar de cima, esses dois cômodos se repetia, somados a um terceiro, sobre o vestíbulo. Esses três cômodos eram uma sala de visitas, um quarto de dormir e uma alcova.
A única mobília da sala de estar era um divã argelino destinado aos fumantes.
A alcova do primeiro andar desembocava no quarto de dormir e, por uma porta invisível, comunicava-se com a escada. Como vemos, todas as medidas de precaução estavam tomadas.
Acima desse primeiro andar reinava um vasto ateliê, ampliado com a derrubada de paredes e divisórias, pandemônio que o artista exigira ao dândi. Ali se refugiavam e amontoavam todos os sucessivos caprichos de Albert, as trompas de caça, os baixos, as flautas, uma orquestra completa, uma vez que por um instante Albert mostrara não inclinação, mas diletantismo pela música; os cavaletes, as paletas, os pastéis, pois ao diletantismo pela música sucedera a fatuidade da pintura; finalmente, os floretes, as luvas de boxe, os espadins e bengalas de todo tipo; pois, afinal, seguindo as tradições dos rapazes na moda da época a que chegamos, Albert de Morcerf cultivava, com infinitamente mais perseverança do que o fizera com a música e a pintura, essas três artes que completam a educação leonina, isto é, a esgrima, o boxe e o bastão. Ele e recebia alternadamente nesse aposento, destinado a todos os exercícios do corpo, Grisier, Cooks e Charles Leboucher.
O restante dos móveis desse aposento privilegiado eram antigas cristaleiras da época de Francisco I, cristaleiras abarrotadas de porcelanas chinesa, vasos japoneses, louças de Luca della Robbia e bandejas de Bernard de Palissy; poltronas antigas, nas quais talvez houvessem sentado Henrique IV ou Sully, Luís XVIII ou Richelieu, pois duas dessas poltronas ornamentadas com um emblema esculpido em que rebrilhavam, sobre fundo anil, três lírios de França, encimados por uma coroa real, provinham visivelmente dos guarda-móveis do Louvre, ou, pelo menos, de algum castelo real. Sobre essas poltronas, de fundos escuros e severos, esparramavam-se suntuosos tecidos de cores vivas, tingidos pelo sol da Pérsia ou urdidos pelos dedos das mulheres de Calcutá ou de Chandernagor. O que faziam ali esses tecidos, não sabemos; esperavam, recreando os olhos, uma destinação desconhecida por parte de seu proprietário, e, enquanto esperavam, iluminavam o apartamento com seus reflexos sedosos e dourados.
No lugar mais visível reinava um piano, fabricado por Roller e Blanchet em pau-rosa, piano à altura dos nossos salões de liliputianos, sem por isso deixar de encerrar uma orquestra em sua estreita e sonora caixa, que gemia sob o peso das obras-primas de Beethoven, Weber, Mozart, Haydn, Grétry e Porpora.
Além disso, ao longo das paredes, em cima das portas, no teto, espadas, punhais, alavancas, crises, maças, machadinhas, armaduras completas e douradas, tauxiadas, incrustadas; ervanários, blocos de minerais, aves empalhadas abrindo para um voo imóvel suas asas cor de fogo e seu bico, que nunca fecham.
Desnecessário dizer que esse aposento era o preferido de Albert.
No entanto, no dia do encontro, o rapaz, em mangas de camisa, estabelecera seu quartel-general na sala de visitas do andar térreo. Ali, sobre uma mesa contornada a distância por um divã grande e macio, resplandeciam, nos potes de louça craquelê que os holandeses adoram, todos os tabacos conhecidos, desde o fumo amarelo de Petersburgo até o fumo preto do Sinai, passando pelo maryland, o porto-rico e o latakiê. Ao lado, em escaninhos de madeira odorífera, estavam classificados, por ordem de tamanho e qualidade, os puros, os regalia, os havanas e os manilhas; finalmente, num armário sempre aberto, uma coleção de cachimbos alemães, chibuques com bocais de âmbar, ornamentados com corais, e narguilés incrustados de ouro, com longos tubos de marroquim enrolados como serpentes, esperava o capricho ou a simpatia dos fumantes. Albert presidira pessoalmente à arrumação, ou melhor, à desordem simétrica, que, depois do café, os comensais de um almoço moderno gostam de contemplar através da fumaça que escapa de suas bocas e sobe em direção ao teto em compridas e caprichosas espirais.
Às quinze para as dez, um criado de quarto entrou. Era um pequeno groom de quinze anos, que não falava senão o inglês, atendia pelo nome de John e perfazia toda a criadagem de Morcerf. Naturalmente que no dia a dia o cozinheiro da casa ficava à sua disposição, bem como, nas grandes ocasiões, o caçador do conde.
Esse criado de quarto, que se chamava Germain e gozava da confiança irrestrita do seu jovem patrão, trazia um maço de jornais, que deixou numa mesa, e um pacote de cartas, que entregou a Albert.
Albert lançou um olhar distraído para aquelas diferentes missivas, selecionou duas com caligrafias delicadas e envelopes perfumados, as quais abriu e leu com certa atenção.
— Como chegaram estas cartas? — perguntou.
— Uma chegou pelo correio, a outra foi entregue pelo criado de quarto da sra. Danglars.
— Mande dizer à sra. Danglars que aceito o lugar que ela me oferece em seu camarote… Espere… mais tarde, durante o dia, passe na casa de Rosa; diga-lhe que irei, honrando seu convite, cear com ela quando sair do Opéra, e leve para ela seis garrafas de vinhos sortidos, de Chipre, de Xerez, de Málaga, e uma barrica de ostras de Ostende… Compre as ostras no Borrel e não se esqueça de dizer que são para mim.
— A que horas o senhor quer ser servido?
— Que horas são?
— Quinze para as dez.
— Ótimo, sirva às dez e meia em ponto. Debray talvez se veja obrigado a ir ao Ministério… E a propósito… — Albert consultou sua agenda —, é precisamente a hora que marquei com o conde, dia 21 de maio, às dez e meia da manhã. E embora não confie muito em sua promessa, quero ser pontual. Por falar nisso, sabe se a sra. condessa já levantou?
— Se o sr. visconde quiser, posso me informar.
— Sim… Você lhe solicitará acesso a uma de suas adegas, a minha está incompleta, e lhe dirá que terei a honra de passar em sua casa por volta das três horas e que peço permissão para lhe apresentar alguém.
O criado saiu. Albert jogou-se no divã, rasgou o envelope de dois ou três jornais, passou os olhos pelos espetáculos, fez uma careta ao ver que era dia de ópera e não de balé, procurou em vão nos anúncios de perfumaria um opiácio para os dentes que lhe haviam recomendado e desprezou sucessivamente as três gazetas mais concorridas de Paris, murmurando no meio de um prolongado bocejo:
— Realmente, esses jornais estão cada dia mais chatos.
Nesse momento, um coche de passeio estacionou em frente ao portão e, logo em seguida, o criado entrou para anunciar o sr. Lucien Debray. Um rapaz alto e louro, pálido, de olhos cinzentos e resolutos, lábios finos e frios, terno azul com botões de ouro trabalhados, gravata branca, lornhão de tartaruga pendurado num fio de seda, o qual, num esforço do nervo temporal e do nervo zigomático, ele conseguia prender de tempos em tempos na cavidade do seu olho direito, entrou sem sorrir, sem falar e com um ar semioficial.
— Bom dia, Lucien… Bom dia! — disse Albert. — Puxa, meu caro, você me assusta com a sua pontualidade! Ora, que digo eu? Pontualidade! Você, que eu esperava por último, chega às cinco para as dez, ao passo que o encontro definitivo só se dará às dez e meia! É um milagre! Por acaso o Ministério caiu?
— Não, caríssimo — disse o rapaz, incrustando-se no divã —, tranquilize-se, continuamos na corda bamba, mas nunca caímos, e começo a crer que passamos pura e simplesmente à estagnação, sem contar que as atribulações da Península logo irão nos consolidar.
— Ah, é verdade, vocês estão enxotando don Carlos da Espanha.
— Em absoluto, caríssimo, não vamos confundir as coisas; providenciamos para que ele atravessasse a fronteira da França e lhe oferecemos uma hospitalidade régia em Bourges.
— Em Bourges?
— É, e ele não tem do que se queixar, diabos! Bourges é a capital do rei Carlos VII! Não sabia disso? Toda Paris já sabe desde ontem, e anteontem a coisa já transpirara na Bolsa, pois o sr. Danglars, não sei por que meios esse homem sabe das notícias ao mesmo tempo que nós, apostou na alta e ganhou um milhão.
— Já você, parece que ganhou uma nova insígnia, pois vejo uma listra azul acrescentada à sua coleção…
— Bobagem! Eles me outorgaram a medalha de Carlos III — respondeu Debray displicentemente.
— Vamos, não finja indiferença, admita que gosta de receber essas coisas.
— Claro que sim; como complemento da toalete, uma medalha cai muito bem num casaco preto abotoado; é elegante.
— E — disse Morcerf sorrindo — ficamos parecidos com o príncipe de Gales ou o duque de Reichstadt.
— Eis portanto a razão desta minha visita tão matinal, caríssimo.
— Porque está com a medalha de Carlos III e queria me anunciar essa boa nova?
— Não; porque passei a noite a enviar cartas: vinte e cinco despachos diplomáticos. Voltei para casa esta manhã, quis dormir, mas fiquei com dor de cabeça e me levantei para montar a cavalo durante uma hora. No Bois de Boulogne, o tédio e a fome me invadiram, dois inimigos que raramente andam juntos e que não obstante se uniram contra mim; uma espécie de aliança carlorepublicana; lembrei então que havia um festim na sua casa esta manhã, e cá me vê; estou com fome, alimente-me; estou entediado, divirta-me.
— É meu dever de anfitrião, querido amigo — disse Albert, chamando o criado, enquanto Lucien remexia, na ponta de sua bengala com castão de ouro incrustado de turquesa, os jornais desdobrados. — Germain, uma taça de xerez e torradas. Enquanto isso, meu caro Lucien, aproveite os charutos, de contrabando, naturalmente; faço questão que os prove e convide seu ministro a nos vender iguais, e não essa espécie de folhas de nogueira que ele condena os bons cidadãos a fumar.
— Você enlouqueceu! Nunca farei uma coisa dessas. A partir do momento e que viessem do governo, não iria mais querê-los e os acharia execráveis. Aliás, isso não é da alçada do Interior, diz respeito às Finanças: dirija-se ao sr. Humann, setor das contribuições indiretas, corredor A, nº26.
— Confesso — disse Albert — que a extensão dos seus conhecimentos me surpreende. Por favor, pegue um charuto!
— Ah, caro visconde — disse Lucien, acendendo um manilha com uma vela cor-de-rosa que ardia num castiçal de prata dourada e jogando-se de costas no divã —, como você é feliz por não ter o que fazer! Na verdade, não sabe a sorte que tem!
— E que faria no meu lugar, meu caro pacificador de reinos — emendou Morcerf com uma ligeira ironia —, se não fizesse nada? Ora! Secretário particular de um ministro, lançado ao mesmo tempo na grande cabala europeia e nas pequenas intrigas de Paris; tendo reis e, melhor ainda, rainhas a proteger, partidos a conciliar, eleições a dirigir; fazendo mais a partir de seu gabinete com sua pena e seu telégrafo que Napoleão fazia de seus campos de batalha com sua espada e suas vitórias; desfrutando de vinte e cinco mil libras de renda além do cargo; um cavalo pelo qual Château-Renaud lhe ofereceu quatrocentos luíses e que você não quis lhe vender; um alfaiate que não erra uma calça, sem falar no Opéra, no Jockey Club e no Teatro de Variedades; você não se distrai com nada disso? Pois então muito bem, vou distraí-lo.
— Como?
— Apresentando-lhe uma pessoa nova.
— Homem ou mulher?
— Homem.
— Oh, já conheço muitos!
— Mas não um como esse de quem estou falando.
— De onde ele vem então? Do fim do mundo?
— De mais longe, talvez.
— Ah, diabos! Espero que ele não traga o nosso café da manhã!
— Não, fique tranquilo, nosso café da manhã é confeccionado nas cozinhas maternas. Quer dizer que está com fome?
— Estou, confesso, por mais humilhante que seja admiti-lo. Mas jantei ontem na casa do sr. de Villefort; e, já observou, caro amigo?, janta-se muito mal na casa de todas esses especuladores; parece que eles têm remorsos.
— Não me venha com essa! Depreciar os jantares dos outros como se comesse muito bem na casa dos seus ministros…
— É, mas pelo menos não convidamos as pessoas de bom-tom; e, se não fôssemos obrigados a fazer as honras de nossa mesa a alguns pedantes que pensam e que sobretudo votam bem, evitaríamos como a peste jantar nas nossas casas, pode acreditar.
— Então, meu caro, sirva-se de um segundo copo de xerez e de outra torrada.
— Com prazer; seu vinho espanhol é excelente, é uma prova de que fizemos bem em pacificar esse país.
— Sim, mas e don Carlos?
— Ora! Don Carlos beberá vinho de Bordeaux e daqui a dez anos casaremos seu filho com a rainhazinha.
— O que lhe valerá a ordem do Tosão de Ouro, se ainda estiver no Ministério.
— Albert, parece que esta manhã você adotou como sistema me alimentar com fumaça.
— Há de convir comigo que é o que ainda entretém melhor o estômago; mas, veja, acabo de ouvir a voz de Beauchamp no vestíbulo, discuta com ele, isso lhe dará paciência.
— A respeito do quê?
— A respeito dos jornais.
— Oh, caro amigo — disse Lucien, com um desprezo soberano —, acha que eu leio jornais!
— Mais uma razão, assim a discussão ganhará força.
— O sr. Beauchamp! — anunciou o criado.
— Entre, entre, pena terrível! — disse Albert, levantando-se e indo em direção ao rapaz. — Pronto, aqui está Debray, que o detesta sem o ter lido, pelo menos ao que diz.
— E tem toda razão — disse Beauchamp —, é como eu, critico-o sem saber o que ele faz. Bom dia, comendador.
— Ah, você já soube! — respondeu o secretário particular, trocando um aperto de mão e um sorriso com o jornalista.
— Mas é claro! — emendou Beauchamp.
— E o que dizem na sociedade?
— Que sociedade? Temos muitas sociedades no ano da graça de 1838.
— Ora, na sociedade crítico-política, da qual o senhor é um dos leões.
— Mas dizem que é uma coisa justíssima e que o senhor semeia vermelho demais para que brote um fiapo de azul.
— Excelente, excelente, nada mal — disse Lucien. — Por que não é um dos nossos, meu caro Beauchamp? Com a sua língua ferina, faria fortuna em três ou quatro anos.
— Justamente, espero apenas uma coisa para seguir o seu conselho: um Ministério assegurado por seis meses. Agora, uma palavrinha, meu caro Albert, pois é melhor deixar o coitado do Lucien respirar um pouco. Café da manhã? Afinal, ainda tenho a Câmara. Como podem ver, nem tudo é cor-de-rosa na nossa profissão.
— Vamos apenas tomar o café da manhã; estamos à espera de mais duas pessoas, iremos para a mesa assim que elas chegarem.
— E que tipo de pessoas espera para o café da manhã? — perguntou Beauchamp.
— Um fidalgo e um diplomata — respondeu Albert.
— Então é coisa de umas duas horinhas para o fidalgo e duas longas horas para o diplomata. Estarei de volta na hora da sobremesa. Guarde para mim morangos, café e charutos. Vou comer uma costeleta na Câmara.
— Não faça nada disso, Beauchamp, pois ainda que o fidalgo fosse um Montmorency e o diplomata, um Metternich, tomaremos nosso desjejum às dez e meia em ponto; enquanto isso, faça como Debray, saboreie o meu xerez e as minhas torradas.
— Bom, então eu fico. Preciso desesperadamente me distrair esta manhã.
— Ótimo, ei-lo como Debray! E eu, que achava que a oposição fica alegre quando o Ministério está triste…
— Ah, caro amigo, é porque não faz ideia do que me ameaça. Esta manhã ouvirei um discurso do sr. Danglars na Câmara dos Deputados, e esta noite, na casa da mulher dele, uma tragédia de um par de França. Que o governo constitucional vá para os diabos! E, já que tínhamos a escolha, por que escolhemos este?
— Compreendo; o senhor está precisando se abastecer de hilaridade.
— Ora, não fale mal dos discursos do sr. Danglars — disse Debray. — Ele vota com vocês, é da oposição.
— Pois aí reside o mal! Da mesma forma, espero que o mande discursar no Luxemburgo para rir dele mais à vontade.
— Meu caro — disse Albert a Beauchamp —, vê-se bem que os assuntos da Espanha estão encaminhados, pois você está de uma amargura revoltante esta manhã. Não se esqueça, porém, que uma crônica parisiense noticiou o meu casamento com a srta. Eugénie Danglars. Não posso, portanto, em sã consciência, deixá-lo falar mal da eloquência de um homem que um dia pode me dizer: “Sr. visconde, saiba que o dote da minha filha é de dois milhões.”
— Pelo amor de Deus! — disse Beauchamp. — Esse casamento nunca se realizará. O rei o fez barão, poderá fazê-lo par, mas não o fará fidalgo, e o conde de Morcerf é uma espada aristocrática demais para consentir, ainda que mediante dois parcos milhões, numa aliança funesta. O visconde de Morcerf só pode se casar com uma marquesa.
— Mas dois milhões é uma bela soma! — replicou Morcerf.
— É o capital social de um teatro de bulevar ou de uma ferrovia que ligasse o Jardim Botânico ao Râpée.
— Deixe-o falar, Morcerf — retrucou Debray com um ar de superioridade —, e se case. Vai se casar com a grife de uma bolsa, não é? Pois bem, que diferença faz! Nesse caso, é preferível ter nessa grife um brasão a menos e um zero a mais; você tem sete merletas em suas armas, dará três à sua mulher e ainda lhe restarão quatro. É uma a mais do que possui o sr. de Guise, que quase foi rei da França e cujo primo de segundo grau era imperador da Alemanha.
— Nossa, acho que você tem razão, Lucien — respondeu Albert distraidamente.
— Com certeza! Além do mais, não resta dúvida de que todo milionário é nobre como um bastardo, o que significa que ele pode sê-lo.
— Scchh! Não diga isso, Debray — interrompeu Beauchamp, rindo —, pois temos Château-Renaud, que, para curá-lo de sua mania de paradoxos, lhe atravessará o corpo com a espada de Renaud de Montauban, seu ancestral.
— Ele se arrependeria muito — respondeu Lucien —, pois sou mau, muito mau.
— Que beleza! — exclamou Beauchamp. — O Ministério agora canta Béranger, aonde vamos chegar, meu Deus?
— O sr. de Château-Renaud! O sr. Maximilien Morrel! — disse o criado, anunciando dois novos comensais.
— Agora estamos todos aqui! — exclamou Beauchamp. — Podemos comer, pois, se não me engano, você esperava apenas mais duas pessoas, Albert…
— Morrel! — murmurou Albert surpreso. — Morrel! De quem se trata?
Antes que tivesse terminado de falar, o sr. de Château-Renaud, formoso rapaz de trinta anos, fidalgo dos pés à cabeça, isto é, com a aparência de um Guiche e a inteligência de um Montemart, segurara Albert pela mão:
— Permita, meu caro — disse ele —, apresentar-lhe o sr. capitão dos spahis Maximilien Morrel, meu amigo e, mais que isso, meu salvador. Em todo caso, o homem sabe se apresentar por si mesmo. Cumprimente o meu herói, visconde.
Ele então se preparou para examinar aquele alto e nobre rapaz, de fronte ampla, olhar penetrante e bigode preto, que nossos leitores se lembram de ter visto em Marselha, numa circunstância excessivamente dramática para que o tenham esquecido.
Um suntuoso uniforme, metade francês, metade oriental, admiravelmente trajado, valorizava seu peito largo decorado com a medalha da Legião de Honra e destacava a proeminência altiva de seu porte. O jovem oficial inclinou-se numa elegância polida; Morrel era gracioso em todos os gestos, pois era um forte.
— Cavalheiro — disse Albert, com uma cortesia afetuosa —, o sr. barão de Château-Renaud sabia antecipadamente todo o prazer que me proporcionaria ao nos apresentar; o senhor está entre os amigos dele, esteja entre os nossos.
— Muito bem — disse Château-Renaud —, e almeje, meu caro visconde, que, em caso de necessidade, ele faça pelo senhor o que fez por mim.
— E o que ele fez? — perguntou Albert.
— Oh — disse Morrel —, não vale a pena falar nisso, e o cavalheiro exagera.
— Como! — disse Château-Renaud. — Não vale a pena falar nisso! Uma vida não merece comentários? Na verdade, é por demais filosófica a sua postura, meu caro sr. Morrel… Bom para o senhor, que arrisca a vida todos os dias, mas não para mim, que a arrisco uma vez por acidente…
— Pelo que entendo disso tudo, barão, o sr. capitão Morrel salvou-lhe a vida.
— Oh, meu Deus, sim, literalmente! — declarou Château-Renaud.
— E quando foi isso? — perguntou Beauchamp.
— Beauchamp, meu amigo, saiba que estou morrendo de fome! — disse Debray. — Portanto, não venha com suas histórias.
— Está bem, mas — disse Beauchamp —, não estou impedindo que se ponham à mesa… Château-Renaud nos contará isso lá.
— Cavalheiros — disse Morcerf —, ainda são apenas dez e quinze, notem bem, e esperamos um último comensal.
— Ah, é verdade, um diplomata — disse Debray.
— Um diplomata ou outra coisa, não sei muito bem, o que sei é que, por conta própria, encarreguei-o de uma missão concluída tão satisfatoriamente que, se eu fosse rei, tê-lo-ia feito, no mesmo instante, cavaleiro de todas as minhas ordens, tivesse eu ao mesmo tempo à disposição a do Tosão de Ouro e a da Jarreteira.
— Então, já que ninguém vai para a mesa ainda — disse Debray —, sirva-me um copo de xerez como o outro, e conte-me isso, barão.
— Todos aqui sabem da ideia que tive de ir à África.
— Uma rota já percorrida pelos seus ancestrais, meu caro Château-Renaud — respondeu Morcerf galantemente.
— Sim, mas duvido que tenha sido, como eles, para libertar o túmulo de Cristo.
— E tem razão, Beauchamp — disse o jovem aristocrata. — Era simplesmente para dar uns tiros de amador. O duelo me repugna, como sabe, desde que duas testemunhas, que eu tinha escolhido para ajustar umas contas, me obrigaram a quebrar o braço de um dos meus melhores amigos… Ora, meu Deus! Desse desafortunado Franz d’Épinay, que todos vocês conhecem.
— Ah, sim! É verdade — disse Debray —, o senhor se bateu tempos atrás… Qual foi o motivo?
— Que o diabo me carregue se me lembro! — disse Château-Renaud. — Mas o que lembro perfeitamente é que, envergonhado por deixar dormir um talento como o meu, tive vontade de experimentar sobre os árabes umas pistolas novas que eu acabara de ganhar de presente. Em consequência disso, embarquei para Oran; de Oran alcancei Constantine e cheguei justamente a tempo de ver o fim do cerco. Bati em retirada, como os demais. Durante quarenta e oito horas, suportei bem a chuva do dia e a neve da noite; finalmente, na terceira manhã, meu cavalo morreu de frio. Pobre animal! Acostumado às mantas e à proteção da estrebaria… um cavalo árabe que só se julgou um pouco expatriado ao encontrar dez graus de frio na Arábia.
— Então é por isso que quer comprar o meu cavalo inglês… — disse Debray —, supõe que ele suportará o frio melhor que o seu cavalo árabe.
— Está enganado, pois jurei nunca mais voltar à África.
— Então ficou realmente com medo? — perguntou Beauchamp.
— Realmente, tenho que admitir — respondeu Château-Renaud —, e havia motivos para isso! Como ia dizendo, meu cavalo estava morto; eu batia em retirada a pé; seis árabes chegaram a galope para me cortar a cabeça, matei dois com meus tiros de fuzil, dois com meus tiros de pistola, na mosca; mas restavam dois, e me vi desarmado. Um deles agarrou meus cabelos, é por isso que agora os uso curtos, ninguém sabe o que pode acontecer, o outro colocou seu iatagã no meu pescoço, e eu já sentia o frio agudo do ferro quando o cavalheiro à sua frente disparou por sua vez sobre eles, matou aquele que me segurava pelos cabelos com um tiro de pistola e arrebentou, com um golpe de sabre, a cabeça do que se preparava para me cortar a garganta. O cavalheiro dera-se a missão de salvar um homem naquele dia, quis o acaso que fosse eu; quando eu for rico, encomendarei a Klagmann ou a Marochetti uma estátua do Acaso.
— Sim — disse Morrel sorrindo —, era 5 de setembro, isto é, o aniversário do dia em que meu pai foi salvo milagrosamente; assim, quando posso, celebro esse dia todos os anos por meio de alguma ação…
— Heroica, não é mesmo? — interrompeu Château-Renaud. — Em resumo, fui o escolhido, mas isso não é tudo. Após me ter salvado do ferro, ele me salvou do frio, oferecendo-me não a metade do seu casaco, como fazia são Martinho, mas o casaco inteiro; para matar a fome, dividiu comigo, adivinhem o quê?
— Um patê do Chez Félix? — perguntou Beauchamp.
— Não, seu cavalo, do qual comemos cada um um pedaço, com grande apetite; era duro.
— O cavalo? — perguntou Morcerf, rindo.
— Não, o sacrifício — respondeu Château-Renaud. — Pergunte a Debray se ele sacrificaria seu puro-sangue inglês por um estranho…
— Por um estranho, não — disse Debray —, por um amigo, talvez.
— Devo ter adivinhado que o senhor viria a ser meu amigo, meu caro barão — disse Morrel. — Aliás, já tive a honra de lhe dizer, heroísmo ou não, sacrifício ou não, naquele dia eu precisava fazer uma oferenda à sorte ingrata, como recompensa pelo benefício que a boa sorte me proporcionara tempos atrás.
— Esse episódio a que alude o sr. Morrel — continuou Château-Renaud —, é uma admirável história que ele lhes contará um dia, quando tiverem estreitado relações; por hoje, vamos proteger o estômago, não a memória. A que horas o café da manhã será servido, Albert?
— Às dez e meia.
— Em ponto? — perguntou Debray, consultando seu relógio.
— Oh, os senhores certamente me concederão os cinco minutos de misericórdia — disse Morcerf —, pois eu também espero um salvador.
— A quem ele salvou?
— A mim, ora essa! — respondeu Morcerf. — Então acha que não posso ser salvo como qualquer outro e que apenas os árabes cortam cabeças?! Nosso café da manhã é um desjejum filantrópico, e teremos à nossa mesa, pelo menos é o que espero, dois benfeitores da humanidade.
— Como faremos? Afinal, temos apenas um prêmio Montyon…
— Não vejo problema! Iremos outorgá-lo a alguém que nada fez para merecê-lo. Em geral é assim que a Academia se sai dos apuros.
— E de onde ele vem? — perguntou Debray. — Desculpe a insistência; sei muito bem que já respondeu a essa pergunta, mas muito vagamente, o que me permite fazê-la novamente.
— Na verdade — disse Albert —, não faço ideia. Quando o convidei, três meses atrás, ele estava em Roma; nesse ínterim, porém, quem sabe o itinerário que fez!
— E o julga capaz de ser pontual? — perguntou Debray.
— Julgo-o capaz de tudo — respondeu Morcerf.
— Cuidado, porque, com os cinco minutos de misericórdia, só dispomos agora de dez minutos.
— Ótimo! Vou aproveitar para lhes falar um pouco do meu convidado.
— Perdão — disse Beauchamp —, é alguma coisa folhetinesca que vai nos contar?
— Com certeza — disse Morcerf —, e das mais curiosas, eu diria.
— Então conte, pois já vi que perderei a Câmara; precisarei recuperar o tempo perdido.
— Eu estava em Roma no último Carnaval.
— Sabemos disso — replicou Beauchamp.
— Sim, mas o que não sabem é que fui raptado por bandoleiros.
— Não existem bandoleiros —, disse Debray.
— Mas claro que sim, e inclusive pavorosos, isto é, admiráveis, pois eram belos de dar medo.
— Vamos, meu caro Albert — disse Debray —, confesse que seu cozinheiro se atrasou, que as ostras não chegaram de Marennes ou de Ostende e que, a exemplo de Madame de Maintenon, você quer substituir uma bandeja por um conto. Vá em frente, meu caro, somos suficientemente bons companheiros para lhe perdoar por isso e para escutar sua história, por mais fabulosa que ela prometa ser.
— E eu lhe afirmo que, por mais fabulosa que seja, vou contá-la de ponta a ponta. Os bandoleiros haviam então me raptado e levado para um lugar tristíssimo conhecido como as catacumbas de São Sebastião.
— Já estive lá — disse Château-Renaud —, quase tive febre.
— Pois fiz melhor que isso — disse Morcerf —, tive realmente febre. Disseram-me que eu era prisioneiro até pagar um resgate, uma miséria, quatro mil escudos romanos, vinte e seis mil libras de Tours. Para meu infortúnio, não tinha comigo mais que mil e quinhentos; eu estava no fim da minha viagem e meu crédito, esgotado. Escrevi a Franz. E, pelo amor de Deus, prestem atenção: Franz estava lá, podem lhe perguntar se minto uma vírgula; escrevi a Franz que, se ele não chegasse às sete da manhã com os quatro mil escudos, às sete e dez eu teria me juntado aos santos bem-aventurados e aos gloriosos mártires em cuja companhia eu tinha a honra de me encontrar. E o sr. Luigi Vampa, nome do meu chefe de bandoleiros, teria, peço-lhes por favor que acreditem nisso, cumprido sua palavra escrupulosamente.
— E Franz chegou com os quatro mil escudos? — perguntou Château-Renaud. — Que diabos! Ninguém se aperta por quatro mil escudos quando se chama Franz d’Épinay ou Albert de Morcerf.
— Não, ele chegou pura e simplesmente acompanhado do convidado que lhes anuncio e espero lhes apresentar.
— Quem diria! Mas trata-se então de um Hércules matando Caco, esse cavalheiro, um Perseu libertando Andrômeda?
— Não, é um homem mais ou menos da minha altura.
— Armado até os dentes?
— Não tinha sequer uma agulha de tricô.
— Mas ele providenciou o seu resgate?
— Ele disse duas palavras ao ouvido do chefe, e me vi livre.
— Pediram-lhe inclusive desculpas pelo ocorrido — disse Beauchamp.
— Exatamente — disse Morcerf.
— Que coisa! Seria então esse homem o Ariosto?
— Não, era simplesmente o conde de Monte Cristo.
— Ninguém tem esse nome, conde de Monte Cristo — duvidou Debray.
— Creio que não — acrescentou Château-Renaud, com o sangue-frio de alguém que conhece na ponta dos dedos o nobiliário europeu. — Quem conhece um conde de Monte Cristo em algum lugar?
— Talvez ele venha da Terra Santa — disse Beauchamp. — Um dos seus ancestrais terá possuído o Calvário, como os Montemart, o mar Morto.
— Perdão — disse Maximilien —, mas creio que vou lhes tirar desse apuro, cavalheiros; Monte Cristo é uma pequena ilha da qual muito ouvi falar pelos marujos do meu pai; um grão de areia no meio do Mediterrâneo, um átomo no infinito.
— É exatamente isso — disse Albert. — Pois muito bem! Desse grão de areia, desse átomo, é soberano e rei aquele de que lhes falo; talvez tenha comprado esse título de conde em algum lugar na Toscana.
— Então é rico o seu conde?
— Por Deus! Suponho que sim.
— Mas isso deve ser visível, me parece…
— Aí é que se engana, Debray.
— Não estou mais entendendo.
— Leu as Mil e uma noites?
— Ora essa! Que pergunta!
— Ótimo! Consegue saber se as pessoas que vemos ali são ricas ou pobres? Se seus grãos de trigo não são rubis ou diamantes? Elas têm a aparência de miseráveis pescadores, concorda?, você os trata como tais, e de repente abrem alguma caverna onde você descobre um tesouro que dá para comprar a Índia.
— E daí?
— E daí que o meu conde de Monte Cristo é um desses pescadores. Tem inclusive um nome extraído da coisa, chama-se Simbad, o marujo, e possui uma caverna cheia de ouro.
— E viu essa caverna, Morcerf? — perguntou Beauchamp.
— Eu não, Franz. Mas, cuidado! Não podemos tocar nesse assunto diante do conde. Franz penetrou na caverna de olhos vendados, foi servido por mudos e mulheres ao lado das quais, ao que parece, Cleópatra não passa de uma sirigaita. Porém, das mulheres ele não tem muita certeza, visto que só entraram depois que ele comeu haxixe; de maneira que é bem possível que o que ele tomou por mulheres fosse simplesmente uma quadrilha de estátuas.
Os rapazes olharam para Morcerf com um olhar que queria dizer:
— Devagar, meu caro! Enlouqueceu ou está zombando de nós?
— Realmente — disse Morrel pensativo —, também ouvi de um velho marinheiro chamado Penelon alguma coisa semelhante ao que diz o sr. de Morcerf.
— Ah — disse Albert —, ainda bem que o sr. Morrel vem em meu socorro. Isso os contraria, não é mesmo, que ele lance um novelo de linha em meu labirinto?
— Perdão, caro amigo — disse Debray —, é que está nos contando coisas tão inverossímeis…
— Ah, ora bolas! Isso é porque seus embaixadores e seus cônsules não lhes contam nada! Eles não têm tempo, pois precisam molestar seus compatriotas que se encontram em viagem!
— Quer dizer que agora se irrita e cai em cima dos nossos pobres agentes! Meu Deus! Como quer que eles os protejam? Todos os dias a Câmara lhes come um pouco dos salários; daqui a pouco não terão mais nenhum. Quer ser embaixador, Albert? Faço-o ser nomeado para Constantinopla.
— Não, obrigado! Para que o sultão, à minha primeira demonstração de apoio a Mehemet Ali, me mande para a corda e meus secretários me estrangulem?!
— Agora você está vendo as coisas com clareza — disse Debray.
— Sim, mas nada disso impede meu conde de Monte Cristo de existir!
— Ora essa! Todo mundo existe, que milagre!
— Todo mundo existe, sem dúvida, mas não nessas condições. Nem todo mundo tem escravos negros, galerias principescas, armas como na casbá, cavalos de seis mil francos a unidade, amantes gregas!
— Você viu a amante grega?
— Sim, vi e ouvi. Vi no teatro Argentina, ouvi um dia em que tomei o café da manhã com o conde.
— Ele então come, o seu homem extraordinário?
— Bem… Se come, é tão pouco que nem vale a pena comentar.
— Deve ser um vampiro.
— Riam se quiserem. Era essa a opinião da condessa G…, que, como sabem, conheceu lorde Ruthwen.
— Ah, que beleza! — disse Beauchamp. — Temos aqui, para um homem não jornalista, o par da famosa serpente marinha do Constitutionnel; um vampiro, é perfeito!
— Olhos rutilantes cuja pupila se retrai e dilata a seu bel-prazer — disse Debray —, ângulo facial desenvolvido, fronte magnífica, tez lívida, barba preta, dentes brancos e aguçados, bem como suas maneiras.
— Muito bem! É precisamente isso — disse Morcerf —, e a caracterização foi perfeita. Sim, maneiras aguçadas e incisivas. Esse homem me deu muitos calafrios; num daqueles dias, quando assistíamos juntos a uma execução, julguei que iria passar mal, e era pior vê-lo e ouvi-lo discorrer friamente sobre todos os suplícios da terra do que ouvir os gritos da vítima.
— Ele não o levou a passear pelas ruínas do Coliseu para sugar o seu sangue, Morcerf? — perguntou Beauchamp.
— Ou, após o ter libertado, não fez você assinar um pergaminho cor de fogo, por intermédio do qual você lhe entregava sua alma, como Esaú seu direito de primogenitura?
— Zombem! Zombem o quanto quiserem, cavalheiros! — disse Morcerf, um pouco despeitado. — Quando olho para os senhores, belos parisienses, habituados ao bulevar de Gand, frequentadores do Bois de Boulogne, e me lembro desse homem, pois bem!, parece que não somos da mesma espécie.
— E me gabo disso! — disse Beauchamp.
— Em todo caso — acrescentou Château-Renaud —, o seu conde de Monte Cristo não deixa de ser um homem galante em seus momentos ociosos, a não ser, é bom ressaltar, por seus pequenos conluios com os bandoleiros italianos.
— Ei! Não existem bandoleiros italianos! — disse Debray.
— Nem vampiros! — acrescentou Beauchamp.
— Nem conde de Monte Cristo — acrescentou Debray. — Veja, querido Albert, eis que soam dez e meia.
— Confesse que teve um pesadelo, e vamos para a mesa — disse Beauchamp.
Mas a vibração do pêndulo ainda não se extinguira quando a porta se abriu e Germain anunciou:
— Sua excelência o conde de Monte Cristo!
Sem querer, todos os ouvintes deram um pulo, denotando a preocupação que o relato de Morcerf infiltrara em suas almas. O próprio Albert não conseguiu se furtar a uma emoção súbita.
Não se ouviram nem coche na rua, nem passos no vestíbulo; até mesmo a porta se abrira sem ruído.
O conde apareceu no umbral, vestido com extrema simplicidade, mas o leão mais exigente não teria encontrado nada a censurar em sua toalete. Tudo demonstrava um bom gosto requintado, tudo saía das mãos dos mais elegantes fornecedores, o terno, o chapéu e a roupa branca.
Parecia não ter mais de trinta e cinco anos, e o que impressionou a todos foi sua extrema semelhança com o retrato que Debray traçara dele.
O conde avançou sorrindo até o meio do salão em direção a Albert, que, indo ao seu encontro, ofereceu-lhe a mão sofregamente.
— A pontualidade — disse Monte Cristo — é a polidez dos reis, segundo as palavras, creio, de um dos seus soberanos. Porém, por maior que seja a boa vontade deles, nem sempre é a dos viajantes. Entretanto, espero, meu caro visconde, que me desculpe, considerando minha boa vontade, os dois ou três segundos de atraso com os quais receio ter chegado ao nosso encontro. Dois mil e quinhentos quilômetros não são percorridos sem algum contratempo, sobretudo na França, onde é proibido, ao que parece, espancar os postilhões.
— Sr. conde — respondeu Albert —, eu estava justamente anunciando sua visita a alguns amigos meus, que reuni em virtude da promessa que o senhor se dispôs a me fazer e os quais tenho a honra de lhe apresentar. São os srs. barão de Château-Renaud, cuja nobreza remonta aos doze pares e cujos ancestrais ocuparam um lugar na Távola Redonda; o sr. Lucien Debray, secretário particular do ministro do Interior; o sr. Beauchamp, terrível jornalista, o pavor do governo francês, mas de quem, apesar de sua celebridade nacional, talvez nunca tenha ouvido falar na Itália, visto que seu jornal é censurado lá; e, finalmente, o sr. Maximilien Morrel, capitão dos spahis.
A esse nome, o conde, que até então saudara cortesmente mas com uma frieza e impassibilidade inglesas, sem querer, deu um passo à frente, e um leve rubor passou como um raio por suas faces pálidas.
— O cavalheiro veste o uniforme dos novos vencedores franceses — disse ele —, é um belo uniforme.
Impossível dizer qual era o sentimento que dava tão profunda vibração à voz do conde e que fazia brilhar, aparentemente à sua revelia, seu olho tão belo, tão calmo e tão límpido, quando ele não tinha motivo algum para velá-lo.
— Nunca tinha visto nossos africanos, senhor? — perguntou Albert.
— Nunca — replicou o conde, de novo plenamente senhor de si.
— Pois bem! Sob esse uniforme bate um dos corações mais corajosos e nobres do exército.
— Oh, sr. conde! — interrompeu Morrel.
— Deixe-me falar, capitão… Acabamos de saber — disse Albert — de um rasgo tão heroico do cavalheiro que, embora seja a primeira vez que o vejo, a ele reivindico a graça de apresentá-lo como um amigo.
E foi possível, a essas palavras, observar em Monte Cristo o estranho olhar de fixidez, o rubor furtivo e o ligeiro tremor nas pálpebras que, nele, a emoção descerrava.
— Ah, o cavalheiro é um nobre coração — disse o conde —, melhor assim!
Essa espécie de exclamação, que correspondia ao próprio pensamento do conde mais do que àquilo que Albert acabava de dizer, surpreendeu a todos e sobretudo a Morrel, que, perplexo, observava Monte Cristo. Porém, ao mesmo tempo, a entonação era tão delicada e por assim dizer tão suave que, por mais estranha que fosse tal exclamação, não havia meio de se aborrecer com ela.
— Ora, por que ele duvidaria disso? — sussurrou Beauchamp a Château-Renaud.
— Na verdade — respondeu este, que, com sua experiência mundana e a perspicácia do olho aristocrático, analisara o mais profundamente possível a Monte Cristo —, na verdade Albert não nos enganou, e o conde é um personagem peculiar; que acha, Morrel?
— De fato — disse este com o olhar franco e a voz simpática —, em todo caso ele me agrada, apesar da estranha reflexão que acaba de fazer a meu respeito.
— Cavalheiros — disse Albert —, Germain me anuncia que estão servidos. Meu caro conde, permita mostrar-lhe o caminho.
Passaram todos silenciosamente à sala de refeições. Cada um ocupou seu lugar.
— Senhores — disse o conde, sentando-se —, permitam-me uma confissão que será minha desculpa para todas as inconveniências que eu porventura venha a cometer: sou estrangeiro, mas estrangeiro a tal ponto que é a primeira vez que venho a Paris. A vida francesa, portanto, é completamente desconhecida pra mim, e até este momento pratiquei apenas a vida oriental, a mais alheia às boas tradições parisienses. Peço-lhes então que me desculpem se virem em mim alguma coisa de excessivamente turco, napolitano ou árabe. Dito isto, senhores, vamos comer.
— Que maneira de colocar as coisas! — murmurou Beauchamp. — É efetivamente um grão-senhor.
— Um grão-senhor estrangeiro — acrescentou Debray.
— Um grão-senhor de todos os países, sr. Debray — disse Château-Renaud.