1 - Uma Ciência que círcula, a medicina tropical

Uma ciência que circula

No outono de 1901, três pesquisadores do Instituto Pasteur, os doutores A. Taurelli Salimbeni, E. Marchoux e P.-L. Simond - estes dois eram, então, membros do corpo médico das colônias - partem para o Brasil. São incumbidos pelo Ministério das Colônias de verificar a conclusão dos trabalhos desenvolvidos em Cuba pela Comissão Reed (1900-1901), composta por médicos militares americanos. Sua hipótese, segundo a qual a febre amarela, exatamente como a malária, seria transmitida por um mosquito não deixaria, uma vez confirmada, de ter importantes repercussões práticas. A febre amarela havia sido considerada até então como uma doença contagiosa clássica, propagada fosse por contato direto com um doente, fosse por contato com suas roupas, alimentos e roupa de cama, ou ainda com qualquer outro objeto contaminado. O surgimento repentino da doença nos portos europeus que recebiam navios provenientes de países tropicais havia reforçado a idéia de que a febre amarela era uma doença contagiosa; as epidemias ocorridas fora dos trópicos - em Saint-Nazaire (1866) ou Swansea (1865) - tiveram, é verdade, curta duração, mas o desaparecimento do foco epidêmico foi atribuído à fragilidade do agente (suspeitavase fortemente, no fim do século XIX, de que este era um microrganismo patogênico) e à sua incapacidade de sobreviver num clima temperado.1

Apoiando-se nas observações anteriores do médico cubano Carlos Finlay,2 as pesquisas dos médicos militares norte-americanos modificaram radicalmente a percepção da febre amarela, acrescentando um elo suplementar à sua cadeia de transmissão. Segundo a expressão figurada de Georges Canguilhem, tal descoberta acrescentou uma nova representação às figurações da Morte: a Morte que tem asas.3 A descoberta dessa nova forma de transmissão podia ser percebida como algo ao mesmo tempo inquietante e tranqüilizador; com efeito, é mais fácil evitar o contato com pessoas atingidas do que com mosquitos, onipresentes nos climas quentes, mas os especialistas esperavam que o mosquito se revelasse o elo fraco da cadeia, e que sua eliminação levasse à erradicação da patologia cujos agentes ele veicula.

As pesquisas dos especialistas norte-americanos sobre a transmissão da febre amarela interessaram vivamente os colonos franceses. Se bastava atacar os mosquitos para extirpar a doença, a quarentena, muito onerosa, dos navios provenientes de portos em que a doença grassava deixava de ser necessária. Tratava-se, no entanto, de convencer os serviços militares da confiabilidade desses trabalhos, segundo os quais o agente da febre amarela não se podia transmitir por contato com mercadorias contaminadas. A associação dos comerciantes franceses do Senegal, país duramente atingido por epidemias recorrentes, dirigiu-se em 1900 ao governo francês para solicitar a criação de uma comissão de especialistas encarregada de confirmar ou invalidar os resultados obtidos pelos médicos americanos em Cuba. O parlamento francês, após subscrever o requerimento, encaminhou-o ao Instituto Pasteur e, em 1901, três de seus especialistas partem para o Rio de Janeiro, levando na bagagem o equipamento completo de um laboratório de bacteriologia: microscópios, pipetas, corantes, meios de cultura e estufas.

Apesar de a ciência bacteriológica ser ainda embrionária em 1901 (suas bases foram estabelecidas ao longo dos anos 1870-1880), seu conhecimento já estava, então, relativamente bem codificado, e isto graças às trocas realizadas nos congressos internacionais, à atividade das publicações especializadas, ao seu ensino e à circulação dos especialistas - propícia à comparação dos diferentes métodos de trabalho. A circulação dos especialistas e dos laudos dos peritos não se limitava, de resto, aos países ocidentais; estendia-se, igualmente, aos países tropicais. Na aurora do desenvolvimento da bacteriologia, as colônias constituíram, para os médicos europeus e ocasionalmente norte-americanos, uma das regiões privilegiadas para a elaboração da nova disciplina, a observação das doenças infecciosas e de seus agentes, assim como para a experimentação de tratamentos preventivos e curativos. Desse ponto de vista, a missão do Instituto Pasteur no Rio de Janeiro diferia muito pouco da missão das demais expedições de especialistas enviadas para estudar uma patologia local -a não ser pelo fato de o Brasil não ser, à época, uma colônia, más um país independente, dotado de infra-estruturas médicas e científicas autônomas, como hospitais, faculdades de medicina ou instituições de pesquisa, ainda que incipientes.

A transferência para o Brasil de um laboratório bacteriológico muito aperfeiçoado para a época e cujo equipamento e funcionamento foram rigorosamente copiados de um centro de excelência europeu contribuiu para o desenvolvimento de uma tradição brasileira de pesquisa em medicina tropical e para a fundação, no Rio de Janeiro, de um centro de estudos mundialmente reconhecido na área. Esse centro deve muito à personalidade de seu fundador, Oswaldo Cruz, médico brasileiro que fez cursos de bacteriologia no Instituto Pasteur. De volta ao Brasil em 1900, ele foi nomeado diretor do Instituto Soroterápico de Manguinhos, instituição dedicada à fabricação de anti-soro e vacinas. Como diretor do Serviço de Saúde do Rio de Janeiro em 1902, Cruz realizou no ano seguinte uma campanha de grande envergadura, cujo objetivo era a erradicação da febre amarela. O sucesso dessa campanha reforçou sua posição política e lhe permitiu obter os recursos necessários à transformação do Instituto de Manguinhos (rebatizado, em 1908, como Instituto Oswaldo Cruz) em um instituto de pesquisa em medicina tropical, que muito rapidamente conquistou notoriedade internacional.

Os êxitos aleatórios do Instituto Oswaldo Cruz, seus triunfos precoces e suas dificuldades ulteriores foram analisados nos anos 1960 - período marcado pela confiança na capacidade da ciência e da tecnologia ocidentais de melhorar o futuro das populações - como experiência bem-sucedida de transferência da ciência dos países industrializados para a periferia.4 Estudos recentes sublinham a ausência de ligações evidentes e lineares entre a presença, num país em desenvolvimento, de pesquisadores que dominam conhecimentos científicos de ponta e o sucesso local de operações práticas baseadas nesse saber, nos campos da indústria, da comunicação, da defesa ou, ainda, da saúde. A história da luta contra a febre amarela no Brasil ilustra bem a complexidade das relações entre conhecimentos e práticas. Por volta de 1910, os especialistas brasileiros haviam adquirido os mesmos conhecimentos em matéria de transmissão da febre amarela que os melhores especialistas da França, Inglaterra, Alemanha ou Estados Unidos, prevalecendo-se de uma longa experiência prática nessa doença. Além disso, contavam em seu ativo com uma campanha de erradicação bem-sucedida. Os brasileiros dispunham, portanto, do saber necessário para extirpar a febre amarela do seu país; na prática, contudo, a execução desse programa revelou-se mais difícil do que esperavam.

Com efeito, a eliminação da febre amarela na cidade do Rio de Janeiro não foi suficiente para livrar o Brasil desse flagelo. Apesar das tentativas de intervenção do Departamento Nacional de Saúde Pública brasileiro, a doença perdurou nas cidades portuárias do nordeste do país. Foi então que um segundo grupo de cientistas estrangeiros interveio: os pesquisadores norte-americanos da Fundação Rockefeller, cuja contribuição combinava a importação de instrumentos e técnicas de laboratório e a transferência de savoir-faire organizacional e administrativo, considerado por eles um componente indispensável na luta contra as doenças transmissíveis. A primeira tentativa de erradicar a febre amarela no Brasil (1923-1928) resultou num fracasso. A ocorrência inesperada de uma importante epidemia no Rio de Janeiro (1928-1929), seguida da reaparição da doença em várias localidades brasileiras, levou-os a repensar os princípios de base de sua campanha e a prestar maior atenção aos conhecimentos epidemiológicos e patológicos acumulados pelos médicos brasileiros.

Por volta de 1930, a identificação do agente da febre amarela, a elaboração dos modelos animais da doença e a perfeição dos métodos diagnósticos levaram a um questionamento radical dos conhecimentos até então considerados como adquiridos. A febre amarela, que os especialistas da Fundação Rockefeller só esperavam encontrar em algumas cidades portuárias do Nordeste brasileiro, era a partir de então reconhecida como uma afecção endêmica - uma doença permanentemente presente - que atingia regiões muito extensas. A hipótese segundo a qual tratava-se de uma doença que acometia os animais da floresta, acidentalmente transmitida ao homem por mosquitos, substituiu paralelamente a convicção precedente de que a febre amarela era uma doença exclusivamente humana. Desistindo da erradicação da febre amarela, por ser esta patologia indissoluvelmente ligada à subsistência da floresta no Brasil, os especialistas decidiram, então, privilegiar sua contenção por dois meios: o controle dos mosquitos que a propagam nas zonas de alta densidade habitacional e a produção de uma vacina capaz de proteger as pessoas em contato com os insetos da floresta. Os especialistas da Fundação Rockefeller importaram, assim, para o Brasil o savoir-faire administrativo capaz de orquestrar uma campanha antimosquitos de grande envergadura e o savoir-faire científico capaz de identificar os focos de doença e produzir a vacina; depois, modificaram e adaptaram seu savoir-faire no trabalho de campo. O resultado foi o desaparecimento, nos anos 1930, da ameaça de epidemias de febre amarela no Brasil - triunfalmente alardeado pelos especialistas da Fundação Rockfeller como a "vitória contra a febre amarela". Mas houve, realmente, "transferência de conhecimentos" do centro para a periferia, ou aclimatação das práticas científicas ocidentais a um país em desenvolvimento? Qual foi o objeto da transferência, em que direção ela se deu, e de acordo com que modalidades?

Aqui, trata-se de clarificar essa noção de "transferência dos conhecimentos e das práticas científicas" e, em termos mais gerais, o conceito de uma ciência que circula entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, combinando métodos emprestados da história geral, da história da medicina tropical, dos estudos sociais e culturais da ciência, e da antropologia.

Os trabalhos dedicados à medicina tropical - e, em termos mais gerais, à propagação da ciência fora do Ocidente na época moderna e contemporânea - centraram o foco, na maioria dos casos, nos aspectos políticos e administrativos dessa difusão da ciência, ou nas condições técnicas da produção de conhecimentos postos em circulação; muito raramente nos dois aspectos ao mesmo tempo. Este trabalho pretende demonstrar que as diferentes dimensões da transferência dos conhecimentos e práticas científicos estão indissoluvelmente ligadas. Para acompanhar uma ciência que se desloca, é necessário retraçar as ações que se desenvolvem em múltiplos espaços: no laboratório e em campo, nos debates parlamentares e deliberações municipais, nas publicações especializadas e na grande imprensa. Esses espaços não têm uma hierarquia predeterminada. Uma mudança de orientação pode ocorrer após uma decisão política, sob a pressão popular ou com a introdução de uma nova técnica laboratorial, de uma modificação na organização das instâncias profissionais, ou ainda pelo desenvolvimento de ferramentas administrativas mais aperfeiçoadas. O estudo da transferência da ciência implica, portanto, a necessidade de circular permanentemente entre os múltiplos lugares em que ela se efetuou e entre as culturas nela envolvidas.

"Febre amarela" ou "febres amarelas"?

Em voga entre os historiadores e os sociólogos da ciência nos anos 1960-1970, o conceito de transferência unidirecional dos saberes e das tecnologias do centro para a periferia se viu nuançado por estudos de casos concretos que constatavam que não se tratava, em regra geral, de uma transmissão passiva, mas antes de uma verdadeira interação.5

Poderíamos reformular um dos temas centrais deste livro da seguinte maneira: "Estudo da circulação dos saberes entre o centro e a periferia, por meio do estudo de tentativas visando a controlar a febre amarela no Brasil". Esta frase pode, de início, parecer meramente descritiva. Vista mais de perto, percebe-se que ela engloba, na realidade, um grande número de noções problemáticas.

Em primeiro lugar, a dialética "centro" e "periferia". Os problemas ligados à significação dos termos "ciência do centro" e "ciência da periferia" estão no cerne dos debates sobre a ciência fora do Ocidente. Após ter constatado que as fronteiras entre "centro" e "periferia" estão longe de serem estáveis ou bem definidas, os pesquisadores se questionaram sobre a validade heurística desta distinção e sobre os riscos ligados à definição de um lugar identificado como "centro" ou "periferia". Tal debate ultrapassa largamente o escopo deste trabalho. Convém, entretanto, observar que os pesquisadores franceses (do Instituto Pasteur) e norte-americanos (da Fundação Rockefeller) que atuaram no Brasil consideraram, de modo geral, seu país de origem como o "centro", o Brasil como a "periferia", e a maior parte de sua atividade como um movimento unidirecional de transferência dos saberes do centro para a periferia. Em compensação, os médicos brasileiros que estudaram a febre amarela tiveram freqüentemente uma percepção mais complexa das relações científicas entre seu país e os países industrializados. Eles hesitaram entre a vontade de "civilizar" o Brasil pela transposição dos novos conhecimentos científicos e tecnológicos ocidentais e a vontade de desenvolver uma aproximação científica original, e entre o reconhecimento da existência de uma ciência do "centro", a única capaz de legitimar seus esforços (só se é reconhecido como cientista pela comunidade científica internacional, ou seja, na prática, a dos países ocidentais) e a aspiração a relativizar sua importância.6

O termo "Brasil" também coloca um problema. Alguns pesquisadores brasileiros acharam que seria mais exato falar dos "Brasis", para levar em conta as múltiplas entidades que compõem esse vasto país. Pode-se, com efeito, dividir o Brasil segundo critérios geográficos e, desse modo, fazer distinção entre a Amazônia, o Sertão (as regiões semi-áridas do Nordeste), o interior, a costa, o Sul; ou em virtude de critérios econômicos: o país da cana-de-açúcar, o país da borracha, o do café, da pecuária, ou da indústria; pode-se igualmente enfatizar o antagonismo entre o Norte, pobre e subdesenvolvido, e o Sul, mais rico e industrializado. Visto que uma parte deste livro se propõe a estudar um serviço de saúde pública que depende do governo federal brasileiro, legitimado pelas leis do país e que aplicou (ou pelo menos se esforçou em aplicar) em todo o território os mesmos métodos sanitários, a opção pelo termo "Brasil" reflete a importância atribuída ao papel do Estado brasileiro na área da saúde pública, enquanto que as diferenças locais e regionais aparecem através dos estudos de caso específicos.

A terceira dupla de noções problemáticas é constituída por "saberes" e "febre amarela", ou antes pelas relações que eles mantêm. Esses conceitos estão no próprio cerne de nossa pesquisa, que, apoiando-se em noções desenvolvidas pela tradição dos estudos sociais e culturais da ciência (science studies), tem como objeto a gênese, o desenvolvimento, a multiplicação e a circulação das entidades produzidas pelos cientistas, tais como a "febre amarela" e suas conseqüências sociais, culturais e políticas. Essas entidades são moldadas através das interações entre conhecimentos considerados como adquiridos (por exemplo, a definição da febre amarela, de seu agente causal, o vetor que a transmite), as atividades concretas dos pesquisadores e dos médicos (notadamente os exames utilizados para estabelecer o diagnóstico desta doença, os estudos de campo sobre a disseminação, o isolamento e a cultura de seu agente etiológico, o tratamento das doenças, a produção de uma vacina) e a ação das administrações e dos poderes públicos (como, por exemplo, as reações das autoridades sanitárias diante de uma epidemia de febre amarela, as ações empreendidas para prevenir futuras epidemias).

Aqui, impõe-se um esclarecimento. A afirmação de que a "febre amarela" tal como ela é percebida hoje em dia é, em grande medida, resultado da atividade de cientistas não significa que a doença não exista ou que ela seja mera "construção de especialistas". A doença, o sofrimento e a morte são fenômenos que pertencem à experiência comum do gênero humano e que, por isso, têm uma existência própria, fora de qualquer contexto científico. No entanto, se todas as sociedades humanas se confrontaram com a experiência da doença e todas elaboraram ferramentas práticas e simbólicas para reagir a ela, tais ferramentas não são idênticas. Os trabalhos dos antropólogos, dos historiadores e dos sociólogos colocaram em evidência a enorme variabilidade nas interpretações do sofrimento e da morte, as diferentes percepções dos sintomas mórbidos produzidos por sociedades diferentes, assim como a riqueza das práticas individuais e coletivas desenvolvidas para se proteger das doenças. Para retomar a definição do historiador da medicina Charles Rosenberg,

a doença é ao mesmo tempo um acontecimento biológico, um repertório de construções verbais que refletem a história intelectual e institucional da medicina numa dada geração, um aspecto da política e uma legitimação desta política, uma entidade que potencialmente define um papel social, um componente das normas culturais e um elemento que estrutura as relações médico/doente.7

A doença pode, portanto, ser descrita como um "fenômeno biocultural", uma mistura de elementos independentes da vontade humana e de elementos elaborados pelos homens. Essa interpenetração e essa interdependência de elementos materiais e culturais na percepção e na compreensão das doenças tornam problemática qualquer dissociação entre a noção de doença e seu contexto histórico. No século XX, se é perfeitamente legítimo estudar os esqueletos de homens pré-históricos ou as múmias egípcias para tentar decifrar, utilizando a terminologia contemporânea, de que males eles sofreram, tais estudos não dizem muito sobre a maneira como um homem de Cro-Magnon percebeu seu "raquitismo", ou um sacerdote egípcio o seu "câncer nos ossos".8

A partir do século XIX, a "materialidade" da doença, ou seja, seus aspectos biológicos e clínicos, destaca-se gradualmente da experiência direta dos doentes; ela é percebida principalmente por meio das observações feitas pelos pesquisadores e pelos clínicos.9 Tais observações dependem, por sua vez, do estágio dos conhecimentos e do savoir-faire num período e num espaço determinados: o aspecto "bio" do fenômeno biocultural a que chamamos "a doença" também reflete uma história bem precisa.10 Além disso, no século XX, a definição científica das doenças orgânicas baseava-se muitas vezes nos fenômenos estudados nos laboratórios e/ou observados com a ajuda de instrumentos e de técnicas específicas (o eletrocardiograma torna visível uma doença cardíaca, a tuberculose é revelada por uma sombra em uma radiografia do pulmão, a imagem típica de uma bactéria se observa com um microscópio, o diabetes é lido pela medida do nível de açúcar no sangue e na urina, o diagnóstico definitivo do câncer depende de um exame citológico). Tais fenômenos são, segundo o pioneiro da sociologia da ciência Ludwik Fleck, "tecno-fenômenos" que dependem dos saberes e das práticas dos cientistas e das técnicas e instrumentos que eles utilizam.11 Assim, a Aids era identificada, num primeiro momento, pela presença de numerosas infecções oportunistas, ou seja, principalmente com base no sofrimento físico do paciente. A definição de "Aids comprovada" baseou-se, em seguida, na enumeração do número de linfócitos do tipo CD4+, método que demanda o emprego de instrumentos muito complicados (os separadores de células) e de reativos específicos (anticorpos monoclonais) e, a partir de meados dos anos 1990, na quantificação - por técnicas oriundas da biologia molecular - da carga viral no sangue dos indivíduos infectados. A definição "tecnocientífica" da "Aids comprovada" dissociou, dessa forma, a doença da experiência subjetiva do indivíduo.12

A redefinição da doença na linguagem da ciência não anula, no entanto, a formulação advinda da experiência individual.13 Um paciente gravemente atingido não precisa, em regra, de um profissional para disso se conscientizar, e os doentes de hoje podem ocasionalmente reconhecer elementos de sua experiência nas descrições dos textos antigos. A definição científica da doença pode, entretanto, modificar a percepção dos estados assintomáticos; assim, uma pessoa que se imagina em perfeita saúde e a quem se anuncia que ela está sofrendo de um câncer ou uma pessoa que descobre sua soropositividade num exame de rotina passarão, na maioria dos casos, a perceber seus corpos de maneira radicalmente diferente. Ela pode também modificar a significação dos sintomas: hoje, uma mulher grávida provavelmente dará pouca importância aos casos dos "temores" ou dos sonhos ruins que atormentaram as mulheres grávidas do século XVIII, mas em compensação ela estará atentíssima ao surgimento de contrações uterinas.14 Essa redefinição pode também se integrar à experiência subjetiva dos doentes. Por exemplo, uma pessoa que recebe a notícia de que sofre de hipertensão irá, por vezes, reinterpretar suas sensações corporais em função das flutuações de sua pressão arterial e provar sintomas adicionais provocados pelas "taxas ruins".

A integração das informações produzidas pela tecnologia médica às sensações subjetivas dos doentes não é, no entanto, simples, não se faz automaticamente. Um doente de leucemia relata a confusão de seus sentimentos diante da avalanche dos resultados de laboratório que supostamente descrevem o desenrolar de sua doença:

Nunca consegui sincronizar meus sentimentos com a informação médica que eu acabava de receber. Cada fragmento de informação era potencialmente capaz de bagunçar meus sentimentos sobre minha sobrevivência, e modificar minha posição em relação a meu futuro, e mesmo em relação ao presente [...]. Tive medo.15

Nos países ocidentais, os doentes podem ou dar extrema importância aos resultados de seus exames médicos, ou decidir ignorá-los totalmente e fiar-se unicamente nas sensações de seu corpo, ou ainda oscilar entre as duas atitudes. Os doentes dos países em desenvolvimento só dispõem do segundo parâmetro; a quase totalidade dos doentes de Aids na África sofre, assim, de "definhamento", e não da queda do número de seus linfócitos CD4+ ou de um aumento do número de partículas virais em seu sangue. Além disso, em certos casos patológicos, tais como a enxaqueca ou as dores crônicas, nenhum método confiável permite estudar essa condição por meio de medidas objetivas, desligadas do indivíduo. O médico deve, portanto - às vezes a contragosto - se fiar nas descrições subjetivas do doente para delas fazer o principal guia de sua intervenção terapêutica. Essa impossibilidade de dissociar os sintomas e a pessoa é ainda mais patente no campo das doenças mentais, apesar do arsenal de medidas pretensamente "objetivas" desenvolvidas pelos psiquiatras.16 Mas a maioria das patologias humanas é percebida por meio dos métodos utilizados para torná-las mais visíveis, e sua história não pode ser dissociada da história do desenvolvimento destes métodos. A febre amarela pertence a essa categoria.

Hoje, basta abrir uma enciclopédia médica, um livro de medicina tropical ou mesmo percorrer uma obra não especializada para saber que a febre amarela é uma doença viral induzida por um vírus bem definido e transmitida ao homem pela picada de um mosquito. A definição científica da doença baseia-se, antes de tudo, na identificação de seu agente. Para atestar que uma pessoa que apresenta sintomas que sugerem a febre amarela está efetivamente atingida por esta doença, é preciso fornecer a prova de que ele foi infectado pelo vírus em questão. A partir de 1930, testes de laboratório permitiram um diagnóstico baseado na presença desse vírus; testes indiretos procuram anticorpos específicos no sangue do doente, ao passo que testes mais diretos demonstram a presença do vírus pela indução de uma doença típica numa cobaia na qual se injeta o sangue do doente. A partir de meados dos anos 1930, também se torna possível cultivar o vírus da febre amarela em ovos embrionados. Mesmo que a confiabilidade dos testes tenha aumentado com o tempo, ela continua não sendo absoluta. Além disso, as amostras - sejam elas de sangue ou de soro - devem chegar em bom estado a um laboratório corretamente equipado e dotado de pessoal competente, condição nada óbvia na maioria dos países em que a febre amarela está presente hoje. Todavia, na ausência de identificação formal do vírus, o diagnóstico da febre amarela fica incompleto; será, na melhor das hipóteses, uma forte conjectura.

Antes de 1930, em compensação, a identificação da febre amarela baseava-se exclusivamente nos sinais clínicos da doença (ocasionalmente enriquecidos, a partir dos anos 1920, pela observação post mortem das transformações patológicas das células do fígado de pacientes falecidos) e nos indícios epidemiológicos.17 Alexandre Humboldt descreveu em 1799 a freqüência da febre amarela em Havana, e os médicos que haviam participado da expedição de Bonaparte ao Egito relataram a presença de casos de "febre amarela"; mas todos estes observadores falam de uma "febre amarela clínica", e não se pode excluir a possibilidade de que a patologia que observaram fosse diferente da "febre amarela dos virólogos", ou seja, uma doença definida pela identificação de seu agente.

A questão da identidade da doença chamada "febre amarela" nos séculos XVIII e XIX não é de modo algum teórica, pois, segundo os especialistas, a febre amarela foi muitas vezes confundida com outras doenças. Além disso, como veremos mais adiante, duas doenças que apresentam sintomas clínicos semelhantes, a febre amarela (hoje definida como uma doença induzida por um vírus) e a leptospirose (hoje definida como uma doença induzida por uma bactéria), foram definitivamente dissociadas pelos especialistas em fins dos anos 1920. Antes disso, uma pessoa que tivesse sintomas de "febre amarela" poderia ter (segundo os critérios posteriores a 1930) sofrido ou da "verdadeira febre amarela" ou de leptospirose, ou ainda de uma outra doença acompanhada de febre, de albumina na urina, e de icterícia. Os sintomas da febre amarela, sejam eles uma febre alta, icterícia - sinal de comprometimento severo do fígado -, ou mesmo vômito de sangue chamado "vômito-negro", não são de modo algum específicos. Tal dificuldade não escapou aos médicos que estudaram essa doença antes do advento das técnicas virológicas e imunológicas baseadas na identificação de seus agentes etiológicos. Os especialistas ingleses que tentaram, em 1913, atestar a presença da febre amarela na África Ocidental inventariaram um número impressionante de doenças freqüentemente confundidas com a febre amarela com base nos sinais clínicos; entre elas encontram-se a malária, a dengue, a febre papataci, a febre tifóide, a paratifóide, a febre ondulante. Em seguida eles propuseram testes de laboratório capazes de discriminar algumas - mas não todas - dentre elas. Estavam plenamente conscientes do fato de que suas pesquisas, conduzidas por especialistas e financiadas por um orçamento especial, tinham caráter absolutamente excepcional; nas condições habituais de trabalho de um médico nas regiões tropicais, a probabilidade de se estabelecer um diagnóstico errôneo era, segundo eles, muito alta.18 Além disso, a doença induzida pelo vírus da febre amarela é muitas vezes "atípica" e pode assumir formas menos severas. Com base apenas nas observações clínicas dessas formas, muitas vezes desprovidas de icterícia pronunciada, não se podem distinguir outras doenças febris.

Portanto, se estamos falando de pessoas acometidas de "febre amarela", convém datar e situar esta constatação e explicitar a base sobre a qual a afecção foi, assim, definida: afirmações de não-especialistas, opinião dos médicos ou análises de laboratório. Na falta de amostras de sangue, cortes histológicos de órgãos ou outros elementos que hoje sustentam um diagnóstico de febre amarela, é impossível fazer com segurança um diagnóstico retroativo. A questão não tem grande importância quando o objeto de estudo não é a própria febre amarela; quando se lê numa descrição feita pelos médicos das colônias que as tropas foram atingidas por uma epidemia de febre amarela, ou quando um relato de viagem menciona que uma pessoa foi afetada por esta patologia, pouco importa que ela tenha sofrido de leptospirose, de malária, de febre tifóide ou de hepatite aguda. O mesmo não ocorre quando a pesquisa é sobre a "febre amarela" propriamente dita; neste caso, a definição e a delimitação da entidade "febre amarela" pelas práticas dos médicos e dos pesquisadores não são estranhas ao objeto da pesquisa.

A ciência, é ocioso dizer, pode ser estudada de diversas maneiras. O estudo de François Delaporte sobre as origens da descoberta do papel do mosquito na transmissão da febre amarela utiliza o termo "febre amarela" para descrever ao mesmo tempo a entidade assim designada por volta de 1900 (e definida com base nos sinais clínicos) e a doença a que hoje este nome se refere (definida com base em testes que revelam a presença de um vírus específico).19 A utilização não problematizada do termo "febre amarela" pode se explicar pelo objetivo perseguido pelo autor, que investiga as condições que definem a possibilidade de emergência de um novo campo conceitual - o surgimento dos vetores artrópodes na medicina tropical. "A história da febre amarela" representa uma abordagem enraizada na tradição epistemológica francesa, que define a história das ciências como "a análise das estruturas teóricas e enunciados científicos, do material conceitual e dos campos de aplicação dos conceitos". Uma abordagem desse tipo facilita os estudos focalizados no desenvolvimento das idéias científicas.20

O estudo da ciência pode também ser considerado de uma outra maneira, que veria a ciência não como um sistema coerente de enunciados sobre a estrutura do mundo natural, mas como o conjunto indivisível das práticas materiais, sociais e discursivas dos cientistas. A história do controle da febre amarela descrita neste trabalho apóia-se em uma abordagem que apreende os objetos da ciência por meio dos instrumentos do savoir-faire, das maneiras de ver próprias de uma comunidade de especialistas, objetos que mudam com a evolução desses instrumentos, desse savoir-faire e dessas maneiras de ver. Tal visão do mundo natural através das "lentes das práticas científicas" (observação, análise, experimentação e intervenção) gera "fatos científicos" (conceitos, objetos, técnicas, classificações) que dependem do lugar e do tempo de sua produção, assim como das redes nas quais estão inseridas e nas quais circulam.21 Em tal ótica, as mudanças de definição da febre amarela entre 1900 e 1950 constituem para o historiador um objeto essencial de investigação.22

A definição atual da febre amarela tem suas origens no fim do século XIX, com o advento da microbiologia e a afirmação do postulado segundo o qual cada doença infecciosa é induzida por um microrganismo específico. No princípio do século XIX, prevalecia uma visão fisiológica que sublinhava a unicidade das diversas patologias, igualmente percebidas como perturbações dos mesmos sistemas fisiológicos de base. Foi por volta de meados do século XIX que emergiu a idéia de uma entidade "febres" composta de unidades mórbidas muitos distintas, e desse modo diferenciou-se a febre tifóide da difteria, da tuberculose ou ainda da pneumonia. Tratavase, de fato, da extensão às doenças endêmicas de hipóteses há muito consideradas válidas para numerosas epidemias.23 Os médicos não encontravam mais dificuldades em reconhecer que a pestilência que atinge uma localidade após outra era uma unidade mórbida distinta ou que um navio proveniente dos trópicos era portador de uma afecção bem determinada.24Se, paralelamente, reconheceram a especificidade de certas doenças transmissíveis como a varíola, eles tiveram, em compensação, mais dificuldade em admitir, por exemplo, que as chamadas febres "sazonais" (tais como a gripe, a pneumonia, a febre tifóide, antes classificadas como subtipos: febres "intermitentes", "estacionárias" etc.) não eram modalidades de expressão diferentes da ação do mesmo agente causal em indivíduos de constituição dessemelhante ou cujas condições de vida diferiam.

A convicção de que as doenças infecciosas são distintas nasceu de sua observação apurada ao longo do século XIX. A transformação do hospital em espaço importante para a pesquisa médica, seu rápido florescimento, tendo por corolário o aumento do número de doenças (e de cadáveres) que serviram aos médicos como material de estudo e favoreceram o desenvolvimento da anatomopatologia e das observações clínicas comparativas.25 As doenças foram inicialmente repertoriadas a partir da descrição fina dos sintomas das quais eram acompanhadas (a nosologia); depois, logo que possível, a partir da presença de lesões típicas dos tecidos (a patologia, e mais tarde a histologia). Após se haverem apoiado em uma categoria geral "febres", os médicos apuraram a distinção entre as diferentes febres, diagnosticadas com base nos sintomas - sendo que os da pneumonia não eram idênticos aos da febre tifóide. A patologia permitiu, depois, que se criassem classificações diferentes. Afecções muito distintas que atingiam os pulmões, os ossos, os intestinos foram, desse modo, reconhecidas, muito antes do advento da bacteriologia, como oriundas da mesma doença -a tuberculose -, com base na semelhança de estrutura histológica dos tubérculos, lesões patológicas típicas desta doença.

O reconhecimento progressivo das doenças infecciosas como entidades distintas levou os pesquisadores a supor que cada doença era induzida por um agente causal específico. Assim, a bacteriologia estendeu a noção de especificidade das doenças a seus agentes: cada doença infecciosa distinta é induzida por um microrganismo específico. Essa idéia foi combatida por alguns médicos e biólogos que sugeriram que os microrganismos não formam espécies verdadeiras, e que todas as transformações morfológicas representam apenas a adaptação de um único organismo (ou um número muito reduzido de organismos primitivos) a condições de crescimento diferentes. A credibilidade da nova disciplina bacteriológica dependia, portanto, da capacidade dos especialistas de isolar microrganismos patogênicos e da possibilidade de demonstrar suas diferenças; donde a importância de técnicas tais como as diluições seqüenciais, as culturas em meio sólido, as colorações diferenciais e o crescimento em meios de cultura seletivos no desenvolvimento e na difusão da bacteriologia.26 Tal resultado foi obtido graças à homogeneização das condições de isolamento e de cultura dos micróbios, com o objetivo de limitar ao máximo sua variabilidade natural: "as espécies bacterianas tornaram-se inteiramente fixas, pois foram utilizados métodos de investigação muito rígidos".27 A uniformização das técnicas bacteriológicas permitiu a homogeneização dos métodos de estudo dos micróbios e, portanto, in fine, a aceitação da existência de espécies estáveis de microrganismos. O reconhecimento da existência de espécies microbianas estáveis, por sua vez, reforçou a idéia de que cada doença infecciosa tem seu agente específico.28 A partir de então, a unidade das doenças infecciosas se formou através da unidade dos agentes etiológicos: a sífilis e a gonorréia foram definitivamente separadas, posto que induzidas por microrganismos diferentes, ao passo que a tabe (manifestações neurológicas de sífilis terciária) foi, acertadamente, associada à entidade "sífilis" com base na presença da mesma bactéria.

Uma vez assumido o princípio da especificidade dos microrganismos patogênicos, a identidade do agente indutor de uma doença transmissível serviu como princípio unificador dos sintomas. O desenvolvimento da bacteriologia inverteu, assim, a ordem da prova: a etiologia tem, doravante, primazia sobre os sintomas clínicos. A identificação do agente causal das doenças transmissíveis assume grande importância para o pesquisador, mas também para a epidemiologia, que ordena seu saber em função da identificação desses agentes; para o clínico, que aspira a aplicar em seus doentes remédios específicos; e, enfim, para o especialista em saúde pública, que baseia sua política em tentativas de impedir a difusão dos microrganismos patogênicos. Mas tal identificação - que pressupõe a "domesticação" de um agente patogênico em laboratório, ou seja, sua cultura em tubo de ensaio e/ ou sua implantação em animais - nem sempre é fácil. As tentativas de manutenção do agente da febre amarela em laboratório só chegaram a um resultado inconteste após 50 anos de esforços (1880-1930). Ao longo desse tempo, os epidemiologistas e os clínicos multiplicaram as tentativas de abordagem prática dessa doença, baseados em conhecimentos incompletos.

Uma vez reconhecido, por volta de 1930, de maneira consensual que o agente da febre amarela era um vírus, a questão da identidade da febre amarela na África e na América pôde ser resolvida. Até então fortemente suspeita, a despeito das vozes dissidentes que se elevavam entre os especialistas, essa identidade não pudera ser evidenciada antes do desenvolvimento dos métodos de estudo do agente em laboratório. Foi ao longo dos anos 1930-194 0 que os pesquisadores aperfeiçoaram os modelos animais da febre amarela e desenvolveram o estudo imunológico desta doença (a pesquisa dos anticorpos específicos contra o vírus), antes de ajustar os métodos de cultura de seu vírus em laboratório. A definição científica da febre amarela como uma doença induzida por um vírus específico se estabilizou, antes de ser elevada à condição de "fato científico estabelecido". Tal estabilização, hoje apresentada como evidente e resumida em uma frase nos manuais de bacteriologia ("Em 1928, Stokes e Bauer evidenciaram a presença do vírus da febre amarela no macaco"), requereu, no entanto, esforços permanentes de muitas pessoas em diferentes regiões - na África, na América Latina, na França, na Inglaterra, nos Estados Unidos; ela se consolidou com a circulação dos especialistas, dos reagentes, dos instrumentos e das técnicas, assim como com a elaboração das políticas de saúde pública que incorporavam sua nova definição aos esforços de prevenção da febre amarela.

Os sociólogos da ciência forjaram a expressão "co-construção da ciência e da sociedade".29 Esta expressão, em voga há aproximadamente 20 anos, esbarrou na resistência de alguns pesquisadores em ciências, filósofos e historiadores da ciência interessados acima de tudo no desenvolvimento das idéias científicas, e que vêem a ciência como o estudo da natureza inanimada, independente da vontade humana. É interessante constatar, a esse respeito, que o conceito de existência de uma "natureza" separada e distinta da "sociedade" foi, recentemente, mais uma vez posto em xeque pelos pesquisadores que poderiam, no entanto, estar particularmente interessados em defendê-lo, ou seja, os historiadores da ecologia. Assim, o historiador norte-americano William Cronon estudou a moldagem mútua da natureza (paisagens, plantas, animais, ecossistemas) pela sociedade e da sociedade pelas condições naturais, e a interdependência entre os elementos naturais e a organização econômica e social das sociedades humanas.30 A presença de terras férteis estimula o desenvolvimento das sociedades agrícolas; a de florestas, das sociedades fundadas sobre a exploração da madeira; e a de rios navegáveis, de cidades que centralizam o comércio. As mudanças sociais e econômicas, por sua vez, afetam a natureza: os campos podem ser transformados em terrenos de construção ou em parques, ou entregues aos agricultores; o leito dos rios pode ser modificado, eles podem ser secados, transformados em canais de irrigação, em estradas fluviais ou. em espaços de navegação esportiva; as florestas podem ser queimadas, desbastadas ou replantadas. Cada uma dessas mudanças, por sua vez, afeta as atividades humanas, enquanto que o resultado a longo prazo da interação complexa entre "meio ambiente" e "sociedade" é difícil de prever. Além disso, tal interação afeta também profundamente nossa compreensão das entidades "floresta", "campo" ou "rio".31

A asserção segundo a qual as florestas de hoje (com exceção de certas partes das florestas tropicais) são resultado de uma longa coabitação entre as plantas, os animais e os humanos, ou o fato de observar que os habitantes do norte do Canadá têm uma relação com a floresta completamente diferente da que têm os parisienses que passeiam na floresta de Fontainebleau podem parecer muito diferentes da afirmação de que a atividade humana molda entidades naturais como o "vírus da febre amarela", sendo afetado pela maneira como se representa e se manipula o mundo natural. A diferença, que efetivamente não teríamos como negar, entre "floresta" e "vírus" se situa, contudo, num único nível: o da espessura das mediações necessárias para tornar uma entidade visível e manipulável. A entidade "floresta" pode ser apreendida diretamente por todos; em compensação, são necessárias múltiplas mediações para se apreender a entidade "vírus". Tais mediações - aparelhos como a ultracentrífuga, o microscópio eletrônico ou o seqüenciador de nucleotídeos, reagentes químicos, animais e células, enfim, o saber especializado dos virologistas - tornam difícil a percepção da importância da intervenção humana na formação dos "vírus". Determinar a medida dessa intervenção não quer em absoluto dizer que o vírus da febre amarela "não existe"; significa apenas que este vírus, como a floresta de Fontainebleau, não pode ser entendido como uma entidade independente da atividade dos homens. A co-construção da natureza e da sociedade se situa nesse nível.

Ainda que a aceitação da participação humana na formação de entidades como os vírus tenha se tornado difícil pela importância e complexidade das mediações entre o "vírus" e a "sociedade", os mais ardorosos defensores de uma ciência neutra e objetiva provavelmente hesitarão em estender tal percepção à saúde pública, disciplina que alia diretamente as habilidades técnicas da ciência e as políticas de saúde. É pouco provável que os especialistas nessa área se recusem a admitir que seu trabalho produz ao mesmo tempo conhecimentos científicos fundamentais e práticas sociais fundadas sobre a aplicação deste saber. A fórmula "co-construção da ciência e da sociedade", longe de ser uma noção exótica que os atrapalha, pode, assim, ser vista por eles como mera descrição de sua atividade cotidiana. Não é, provavelmente, por acaso que a idéia de co-dependência entre o desenvolvimento dos conceitos e dos fatos científicos e o desenvolvimento das práticas sociais tenha figurado pela primeira vez num estudo de 1935 centrado na história de um teste de detecção da sífilis - problema de saúde pública por excelência - e voltado a emergir em 1958, ou seja, bem antes do desenvolvimento das tendências recentes da história social da ciência, por meio das propostas sustentadas pelo sociólogo Peter Winch sobre a bacteriologia:

A introdução do conceito de germe na linguagem da medicina foi [...] a adoção, por pessoas que eram todas, direta ou indiretamente, ligadas à prática da medicina, de uma maneira inteiramente nova de fazer as coisas. Uma tentativa de dar conta da influência desse novo conceito sobre a profissão médica não pode, portanto, ser separado de uma explicação de sua natureza e, inversamente, o conceito de germe torna-se inteiramente incompreensível se for dissociado de suas relações com a prática médica.32

A inserção do saber sobre o germe na prática dos médicos e dos profissionais da saúde tem um significado bem preciso: o controle dos micróbios é inseparável do controle dos humanos que os portam e os transmitem. A coexistência estreita de fatores científicos e político-administrativos no seio da especialidade chamada "saúde pública" coloca, entretanto, um problema: como se articulam as práticas de campo, que são necessariamente atividades localizadas, e as investigações de laboratório, tidas como universalmente válidas e independentes do lugar e do tempo de sua produção? A história da luta contra a febre amarela no Brasil ilustra as tensões entre o ideal de uma ciência médica universal e as práticas de saúde pública elaboradas localmente. Para seguir essas tensões, será preciso debruçar-se inicialmente sobre as origens da idéia - nascida no século XIX- de que o saber sobre as doenças é universal, e pode ser facilmente transportado de uma região para outra.

As doenças transmissíveis e a universalidade da ciência

O saber sobre as doenças sempre oscilou entre dois pólos: a unicidade e a diversidade das manifestações mórbidas. Primeiro, a unicidade: a constatação de que todos os seres humanos partilham da mesma estrutura anatômica, têm os mesmos "humores" e, constatação muito mais tardia, de que têm os mesmos mecanismos fisiológicos e bioquímicos de base assim como a observação das grandes epidemias que atravessaram os continentes, advogou a universalidade de certas patologias humanas. Agora, a diversidade: numerosas afecções estiveram ligadas a sítios geográficos precisos e/ou tiveram reputação de estarem limitados a determinadas subpopulações. Não se trata, evidentemente, de distinções absolutas: os médicos sempre reconheceram a existência de traços comuns às afecções humanas que permitem classificações genéricas ("febres", "indigestões", "inflamações"), assim como a grande diversidade das manifestações mórbidas ligadas às diferenças de "campo" individual, ou seja, à constituição única do indivíduo doente, assim como à variabilidade do meio. Entretanto, conforme as épocas e os lugares, a ênfase podia estar na unicidade ou na diversidade. Os "sistemas médicos" do século XVIII - que se prolongaram no século XIX - se inclinaram para a unicidade, propondo explicações monocausais ao conjunto de estados patológicos (a oposição estenia/astenia, o excesso de sangue, a irritação do sistema digestivo). Essas causas únicas demandaram remédios uniformes; a sangria foi, assim, prescrita por Broussais e seus alunos como tratamento universal para todas as doenças.

Enquanto os partidários dos "sistemas médicos" defenderam uma causalidade única com expressões distintas em função da "constituição" do doente, os "teóricos climáticos" e raciais da doença, em voga nos séculos XVIII e XIX, ressaltaram as profundas diferenças entre os grupos humanos. A emergência, em meados do século XIX, da noção de "doenças específicas" deu mais peso à tese da uniformidade; as lesões tuberculosas serão essencialmente as mesmas em doentes de constituição diferente e entre aqueles que moram em lugares diferentes. Além disso, no século XIX as doenças transmissíveis foram, muitas vezes, divididas em dois grupos principais: as doenças infecciosas (ligadas aos miasmas, portanto às condições climáticas, às estações e aos lugares, cujo exemplo mais conhecido continua a ser malária) e as doenças contagiosas, que se transmitem ou por contato direto com o doente, ou com os objetos (roupas de cama, louça, roupas) contaminados por suas secreções; a varíola é um modelo incontestável deste último. Contrariamente às doenças infecciosas, as doenças contagiosas podem ser transmitidas artificialmente, por inoculação. A prática da "variolização" (inoculação das pústulas variólicas humanas) pleiteou uma certa universalidade para as doenças, posto que a inoculação de uma matéria contagiosa específica se revelara capaz de introduzir uma proteção específica contra a doença determinada.33 A vacinação jenneriana (inoculação de matéria infecciosa de pústulas de vaca), praticada com sucesso num grande número de países, pôde evidenciar a universalidade do princípio do contágio.

O movimento em direção à separação entre o indivíduo e a doença se acelerou, no fim do século XIX, com o advento da teoria microbiana das doenças, que afirmou uma causalidade única nas doenças infecciosas e as conseqüências (relativamente) homogêneas do encontro entre um indivíduo e um patógeno específico. O papel da "localidade" não foi, entretanto, minorado. A descoberta do fenômeno dos "portadores sãos", pessoas que portam e são capazes de disseminar microrganismos patogênicos sem serem atingidas pela doença (a thyphoid Mary, cozinheira norte-americana acusada de provocar epidemias de febre tifóide pela contaminação da comida proveniente dos lugares onde ela trabalhara, tornou-se um emblema dessa situação) de fato reativou a questão das relações entre o patógeno e sua "localidade".34 A fórmula, atribuída a Claude Bernard, segundo a qual "o micróbio não é nada, o terreno é tudo", nunca perdeu sua pertinência para um grupo de clínicos, e a abordagem centrada mais no doente do que na "doença" readquiriu, em certa medida, sua popularidade no entre-guerras.35 Tratava-se, de um lado, de um movimento holístico, em voga entre os clínicos, e, de outro, de uma tendência representada pelos epidemiologistas, estatísticos ou biometristas, que se interessavam pela doença como fenômeno das populações. Em compensação, a rápida difusão das "ciências pasteurianas" (bacteriologia, imunologia, parasitologia) no fim do século XIX e início do XX e sua transferência dos centros de produção do saber para a periferia reforçaram a idéia de que as doenças transmissíveis repousam sobre uma base biológica partilhada, contribuindo, assim, para a consolidação do conceito de saber médico universal. Esse desenvolvimento foi paralelo ao florescimento do movimento pela universalidade da ciência e ao grande crescimento do papel das trocas internacionais na elaboração das modalidades de intervenção no campo da saúde pública.

O movimento pela internacionalização da ciência desenvolveu-se por volta de 1880 em reação à fragmentação e à atomização da atividade científica consecutivas à potencial ascensão dos nacionalismos no século XIX. A partir de fins do século XVIII, cientistas e médicos se identificaram, cada vez mais, simultaneamente com sua especialidade e sua nação. Os especialistas estrangeiros em uma mesma disciplina passaram, então, a ser vistos como colegas e como rivais em potencial. Essa atomização levou à perda da linguagem comum da ciência - que até o século XVIII foi o latim - e ao desaparecimento da comunidade internacional dos cientistas da "república das letras". Ainda que o grau de cooperação entre os cientistas nos séculos XVII e XVIII tenha sido, mais tarde, exagerado a ponto de provocar a nostalgia de uma "idade de ouro" mítica da ciência, o século XIX viu se desenvolver uma tensão permanente entre os particularismos nacionais e o universalismo científico alimentado por tradições profissionais e considerações ideológicas.36 O movimento de internacionalismo científico tentou trazer respostas a tais tensões, centrando seus esforços na unificação das nomenclaturas científicas e na concentração das bibliografias, destinadas a criar uma língua universal da ciência. Antes de tudo um movimento de idéias, ele tentou criar de cima para baixo uma ciência internacional unificada. Animado por estudiosos militantes, prosélitos e verdadeiros "profissionais" do internacionalismo científico, esse movimento de universalização da ciência desenvolveu-se principalmente por meio da organização de congressos, de grupos de trabalho, e dos esforços que visavam a melhorar a circulação da informação científica.37

O movimento pela investigação da saúde pública tem origem no temor, muito concreto, das epidemias; tal apreensão suscitou tentativas de implementação de políticas sanitárias comuns. Mais tarde, com o advento da teoria microbiana da doença, esse movimento promoveu um esforço de homogeneização das práticas de laboratório utilizadas para reconhecer os agentes das doenças transmissíveis. Ele se estruturou através das conferências sanitárias internacionais. A primeira aconteceu em Paris em 1851. Nove outras conferências se realizaram ao longo do século XIX (1859, 1866, 1874, 1881, 1885, 1892, 1893, 1894 e 1897), quatro balizaram o século XX (1903, 1911-1912, 1926 e 1938). A aceleração do ritmo das conferências a partir de 1881 e sua freqüência nos anos 1890 correspondem ao rápido desenvolvimento da bacteriologia e à importância que esta disciplina ganhou na luta contra as doenças infecciosas.38

As conferências sanitárias internacionais constituíram inicialmente uma resposta ao temor de ver o cólera se difundir. O cólera asiático atinge a fronteira da Europa pela primeira vez em 1829, chegando a Oranenburg, na extremidade sudeste do império russo. Em 1830, a epidemia que irrompeu durante a feira de Nizny-Novogrod chega a Moscou e, ao longo dos anos seguintes, graves epidemias invadem a maioria das grandes cidades européias. Como a forma de propagação do cólera era então desconhecida, os poderes públicos tentaram estancar as epidemias com os meios tradicionais, ou, dito de outra maneira, com a quarentena imposta aos navios, pessoas e mercadorias provenientes de países onde a epidemia grassava.39Essas quarentenas entravaram severamente o comércio internacional e reduziram os proventos dos comerciantes, sem que sua eficácia tenha sido atestada. O objetivo das primeiras conferências sanitárias foi estudar em que medida era concebível suprimir a quarentena sem colocar em risco a saúde das populações. A Primeira Conferência Sanitária Internacional (Paris, 1851) reuniu representantes de 11 Estados europeus (quatro dos quais se tornarão, mais tarde, províncias da Itália unificada). Cada país foi representado por um médico e um diplomata, dupla que representava a saúde pública internacional, nascida do encontro da prática médica com a política. Apesar da vontade declarada dos participantes de agir eficazmente contra as epidemias, as primeiras conferências sanitárias tiveram um papel meramente consultivo, sem que os países participantes estivessem comprometidos com suas decisões. Além disso, nas três primeiras conferências os votos foram individuais e não por países, de modo que não era raro que dois delegados de um mesmo país votassem diferentemente. O estatuto das conferências sanitárias internacionais mudou a partir da sexta delas (Veneza, 1892), que elaborou o texto da primeira convenção sanitária internacional que os países participantes se comprometeram a respeitar (esse texto foi modificado várias vezes pelas conferências seguintes).

Durante as primeiras conferências, os debates se concentraram na noção do contágio do cólera, freqüentemente contestado à época. A maioria dos participantes da primeira conferência era favorável à idéia de que se tratava de uma doença contagiosa, e a quarentena foi recomendada para combatê-la. A febre amarela, mesmo que não tenha sido vista como um perigo para a saúde pública nos países europeus, foi, contudo, mencionada ao longo dos debates como exemplo de uma doença sobre a qual ficara firmemente estabelecido - com base em observações epidemiológicas - que pode se transmitir de uma pessoa doente a indivíduos em bom estado de saúde. A contagiosidade do cólera foi aceita pela grande maioria dos profissionais presentes à Terceira Conferência Sanitária Internacional (Constantinopla, 1866), mas os especialistas tiveram dificuldade em chegar a um acordo quanto às medidas necessárias para conter sua propagação, dada a ausência de prova convincente da eficácia das quarentenas. Alguns participantes insistiram na importância das práticas sanitárias, tais como a fiscalização da água, a limpeza dos espaços de habitação, a canalização nas cidades e a higiene pessoal. Essa sensibilização para os benefícios da higiene não era necessariamente acompanhada da adesão às teorias microbianas da doença ou da importância conferida aos novos dados epidemiológicos. Os higienistas britânicos - especialmente lentos na adoção das conclusões das pesquisas epidemiológicas nas rotas de difusão do cólera, e por muito tempo céticos quanto ao papel do micróbio na indução desta doença - foram, contudo, os primeiros a livrar um país europeu da ameaça das epidemias de cólera, e isso graças à distribuição racional de água pura e à evacuação sanitária das secreções humanas.40

A revolução bacteriológica mudou a natureza das pesquisas sobre o cólera, mas sua influência sobre as modalidades de luta contra esta doença foi muito limitada. A descoberta do micróbio do cólera e de suas vias de transmissão (o Vibrio cholerae foi descrito pelo bacteriologista alemão Robert Koch em 1888) não modificou essas práticas. Os trabalhos dos bacteriologistas puderam, no máximo, legitimar a posteriori as medidas sanitárias que decorreram de observações empíricas por parte dos higienistas, reforçadas pelo sucesso das primeiras campanhas de controle da insalubridade nas cidades. A luta contra a peste foi, desse ponto de vista, semelhante à que se travou contra o cólera: o isolamento do bacilo da peste e a elucidação do papel da pulga do rato na transmissão da doença não alteraram grande coisa na elaboração das medidas preventivas. Tais medidas, estabelecidas antes da descoberta do micróbio, tinham por objetivo a destruição dos roedores, de realização mais prática do que a eliminação aleatória de seus parasitas. O destino da febre amarela foi completamente outro. Os esforços para erradicá-la estiveram, desde o fim do século XIX, estreitamente ligados aos esforços de compreensão da etiologia e da difusão da doença. As quarentenas e as campanhas sanitárias não específicas não interromperam sua difusão. A luta eficaz começou com a descrição do papel do mosquito como vetor incontornável da doença. A partir do começo do século XX, a febre amarela foi, portanto, apresentada como a patologia que evidenciou a importância da ciência médica para a saúde pública. Donde o papel simbólico, e não apenas prático, das campanhas contra essa doença.

A febre amarela foi mencionada ao longo das primeiras conferências sanitárias internacionais, sem que no entanto tenha sido objeto de debates. Ao longo da Quinta Conferência (Washington, 1881), o médico cubano Carlos Finlay apresentou, pela primeira vez, uma teoria sobre a propagação da febre amarela fundamentada na presença de um "agente cuja existência é completamente independente da doença e do doente", e que é necessário para transmitir a infecção de um doente a um homem saudável. Seis meses depois, Finlay confirmava, com base em suas observações epidemiológicas, que o mosquito Stegomyia fasciata (depois batizado Aedes ægypti) era o vetor intermediário da doença. A intervenção de Finlay não teve desdobramentos. Os delegados exprimiram um vago desejo de que as nações mais diretamente interessadas criassem uma comissão sanitária científica temporária, mas esse voto não gerou nenhum resultado prático. A febre amarela foi novamente abordada na 11 Conferência Sanitária (Paris, 1903), em função da presença, na delegação dos Estados Unidos, do general Gorgas, responsável pela campanha que venceu a resistência da febre amarela em Havana em 1901 (Cuba), graças à destruição dos mosquitos e ao isolamento dos doentes sob mosquiteiros. Émile Roux, então diretor adjunto do Instituto Pasteur, resumiu - na qualidade de relator da subcomissão técnica da conferência - os resultados dos trabalhos da Comissão Reed, e depois pediu a Gorgas que completasse seu relatório. Este sublinhou que a certeza recém-obtida de que a febre amarela só se propaga por intermédio dos mosquitos Stegomyia tornava totalmente obsoletas as medidas de quarentena prescritas contra esta doença.

A Convenção Sanitária Internacional que resultou da conferência inclui pela primeira vez instruções sobre a febre amarela:

Recomenda-se aos países interessados que modifiquem seus regulamentos sanitários de maneira a relacioná-los com os dados atuais da ciência sobre o modo de transmissão da febre amarela, e sobretudo sobre o papel dos mosquitos como veículos dos germes da doença.41

O papel reservado à ciência no estabelecimento das políticas que visavam a erradicar a febre amarela ainda constituiu um elemento maior nos debates durante toda a primeira metade do século XX. A utilização de um argumento baseado na ciência na elaboração das práticas dos médicos e dos higienistas não era de modo algum evidente. O advento da bacteriologia legitimou os argumentos desenvolvidos pelos higienistas e reforçou seu status: o desenvolvimento do soro antidiftérico foi visto por muitos médicos como a prova potencial da capacidade que tinha a nova ciência de contribuir para a solução de problemas médicos.42

Mas, com exceção do tratamento da difteria, as abordagens bacteriológicas só foram integradas à prática dos médicos muito gradualmente, e os laboratórios de bacteriologia só se uniram aos hospitais nos anos 1910-1920.

Do mesmo modo, só bem tardiamente os higienistas se converteram à prática da microbiologia.43 A lentidão na adoção das técnicas das "ciências pasteurianas" pelos clínicos, notadamente na França, contrastou com o desenvolvimento muito rápido da ciência bacteriológica. A prática da pesquisa nessa área foi codificada e difundida em escala internacional nos anos 1880-1890, ou seja, quase imediatamente após o surgimento dessa nova especialidade, e os pesquisadores em bacteriologia tiveram muito rapidamente à sua disposição jornais profissionais, manuais e fóruns para a troca de idéias, como as conferências internacionais.44

Vimos que uma das condições importantes para a rápida difusão da nova disciplina foi a homogeneização das condições de isolamento e de cultura de micróbios. A homogeneização dos métodos de investigação bacteriológica incluiu a padronização da organização espacial de um laboratório de bacteriologia e a uniformização do material e das técnicas utilizadas pelos bacteriologistas. A partir dos anos 1880, firmas comerciais produziram vidraria, corantes e meios de cultura para uso dos bacteriologistas, e publicaram catálogos nos quais ofereceram grande variedade de produtos destinados especificamente à identificação e à cultura dos micróbios. Tal homogeneização compreendia igualmente a padronização dos gestos praticados pelos bacteriologistas.45 Como um dos maiores problemas da investigação bacteriológica está na contaminação, só uma técnica corporal bem apurada permite evitar tal risco. Os futuros bacteriologistas tiveram que aprender como abrir um tubo de ensaio perto de uma chama de um bico Bunsen, como sustentar o tubo e o algodão que o fecha numa mão e a pipeta Pasteur na outra, como inocular o tubo com uma amostra testada e fechá-lo imediatamente, tudo isso com gestos precisos e rápidos a fim de evitar que as bactérias do ar penetrassem no tubo. Foi, portanto, indispensável o aprendizado sob a supervisão de especialistas reconhecidos para se adquirir o saber especializado do bacteriologista. A partir dos anos 1880, tal ensino foi ministrado nos templos sagrados do desenvolvimento da bacteriologia, o Instituto Pasteur em Paris e o Instituto de Higiene de Berlim, dirigido por Robert Koch.

O ensino sistemático da bacteriologia no Instituto de Higiene de Berlim começou em 1885. O curso, centrado nas técnicas de laboratório, durava um mês. Os alunos, em grande parte médicos vindos do estrangeiro, preparavam seus próprios meios de cultura e, após um mês de trabalho duro, dominavam perfeitamente as técnicas de isolamento das bactérias, de coloração e de observações microscópicas. Muitas vezes os alunos estrangeiros compraram na Alemanha o equipamento necessário para construir um laboratório de microbiologia em seu país. O principal obstáculo à reprodução dos resultados fora de Berlim foi a dificuldade de obter meios de cultura homogêneos e de construir incubadores que mantivessem a temperatura constante. Por volta de 1900, tais dificuldades puderam ser resolvidas na Europa Ocidental e nos Estados Unidos graças à maior difusão dos meios de cultura comerciais e ao desenvolvimento de incubadoras mais estáveis.46 O "curso de microbiologia técnica" do Instituto Pasteur (também chamado "o grande curso" ou "o curso de Monsieur Roux") começou em 1889, ano seguinte ao da fundação do instituto. As sessões foram mais longas do que as do curso do Instituto de Higiene; no início, o instituto organizou três sessões anuais, depois duas, e finalmente uma única sessão, que durava todo o ano escolar. O ensino tinha um importante componente prático: em Paris, os alunos também aprenderam o conjunto das técnicas bacteriológicas de base, inclusive a preparação de meios de cultura, da vidraria, e a experimentação em animais, mas receberam, além disso, um ensino teórico avançado, ministrado por pesquisadores do Instituto Pasteur que apresentavam os últimos desenvolvimentos científicos em sua área de especialização. Os alunos do "grande curso", entre os quais vários estrangeiros, eram em sua maioria médicos, mas também veterinários e farmacêuticos47 Entre eles, Oswaldo Cruz, responsável pela eliminação da febre amarela do Rio de Janeiro entre 1903 e 1907, que o seguiu em 1896. Sua carreira ilustra, assim, a importância da circulação dos pesquisadores e do savoir-faire incorporado na transmissão dos novos conhecimentos científicos. Cruz não transferiu passivamente para o Rio de Janeiro o saber bacteriológico adquirido em Paris: ele o adaptou ao estudo das doenças dos países quentes e o integrou a uma disciplina bem definida: a medicina tropical.48

A medicina tropical entre a especificidade das práticas e a especificidade das políticas

A medicina tropical nasceu no fim do século XIX da adaptação das "ciências pasteurianas" às doenças dos países do Sul. O nascimento da medicina tropical propriamente dita é geralmente associado à descrição das doenças transmitidas por vetores intermediários (os insetos, os moluscos ou os vermes). Essa especialidade tem um "pai fundador" oficial: o médico inglês Patrick Mason, que descreveu a importância dos vermes na filariose (elefantíase) e que, mais tarde, estimulou os trabalhos de Ross sobre o papel do mosquito na transmissão da malária. O elo existente entre as doenças transmitidas por vetores invertebrados e a "medicina tropical" nunca foi simples (a malária não se limita, de modo algum, aos trópicos, e até a Segunda Guerra Mundial esta doença foi um grave problema de saúde pública na Itália e nos Estados Unidos; várias doenças hoje classificadas como "tropicais", como o cólera, por exemplo, não têm hospedeiros intermediários). O laço entre o estudo dos vetores e a medicina tropical se teceu principalmente através dos desenvolvimentos institucionais. A fundação de institutos de pesquisa em medicina tropical e o estabelecimento de um ensino universitário dedicado à matéria - vejam-se os institutos de medicina tropical de Londres (1899), de Liverpool (1899), de Hamburgo (1900), de Bruxelas (1906) - coincidem com a descrição (em fins do século XIX e início do XX) de numerosas doenças das regiões quentes transmitidas por vetores. Essa especificidade das doenças dos países quentes legitimou o desenvolvimento de uma subespecialidade médica focalizada no controle de tais doenças por meio do controle de seus vetores e que alia pesquisas em microbiologia, em parasitologia e em entomologia a pesquisas de campo concentradas nas interações dos organismos em seu ambiente natural.49

O advento da medicina tropical, que pode ser descrita como a adaptação das regras da "ciência pasteuriana" aos climas quentes, está estreitamente ligado ao colonialismo, mas não deve ser reduzido a ele. A expansão colonial é bem anterior ao desenvolvimento das teorias microbianas da doença. Antes do desenvolvimento de uma medicina tropical enraizada nos estudos de laboratório, a abordagem médica dominante nas colônias foi a da "medicina dos climas quentes". Tal abordagem acentuou a importância da aclimatação gradual dos não-autóctones aos trópicos, os elementos da vida que favoreciam tal aclimatação, como uma alimentação apropriada, o afastamento de fontes de contágio e a temperança, assim como o valor da mestiçagem na adaptação dos colonos a seu novo ambiente.50 O historiador Philip Courtin explica que a introdução sistemática das regras de higiene, em particular o afastamento dos europeus dos lugares de contágio conhecidos, a observância das regras de limpeza pessoal e de limpeza das moradias, a fiscalização da água e dos alimentos, assim como a utilização sistemática de mosquiteiros, levaram entre 1840 e 1860 - bem antes, portanto, do desenvolvimento das teorias microbianas e de sua integração à prática dos médicos -a uma diminuição importante da mortalidade dos soldados dos exércitos coloniais. Essa mortalidade estabilizou-se mais tarde e só teve redução importante por volta do fim do século XIX; as estatísticas não revelam, assim, de modo algum um efeito marcado da "revolução pasteuriana" na diminuição do custo humano ligado ao deslocamento das tropas.51

O desenvolvimento da microbiologia não teve efeitos imediatos sobre a morbidade e a mortalidade nos países tropicais, mas afetou o progresso das ciências médicas neles verificado. Tais países foram vistos como lugares particularmente favoráveis ao trabalho dos "caçadores de micróbios", dadas a profusão de doenças transmissíveis, endêmicas e epidêmicas, e a colaboração ativa das administrações locais. Nas colônias, os poderes públicos viram as doenças tropicais como um obstáculo maior à colonização, enquanto nos países independentes elas constituíam um entrave ao comércio internacional e à imigração. Além disso, as epidemias que atingiam a população nativa desorganizavam o trabalho, especialmente nas plantações. Bacteriologistas de grande renome viajaram nos trópicos, ao passo que os poderes públicos neles estimularam a experimentação em larga escala dos novos saberes adquiridos pela ciência. Os países tropicais foram também um lugar privilegiado para testar as novas formas de prevenção e tratamento das doenças infecciosas. Várias vacinas e anti-soros foram testados nas colônias antes de serem empregados na metrópole, e as primeiras campanhas de vacinação em massa aconteceram nos países coloniais, para proteger as tropas coloniais ou os trabalhadores nativos52 Instituições dedicadas ao desenvolvimento da medicina tropical foram construídas nas colônias: a importante rede dos institutos Pasteur de Ultramar foi desenvolvida nas colônias francesas, enquanto os britânicos construíram em suas colônias institutos que respondiam a necessidades precisas, como o Instituto de Pesquisa Médica de Kuala Lumpur ou o Instituto Bacteriológico de Bombaim.53 Tais instituições permitiram a circulação das pessoas, do equipamento e dos conhecimentos e sua adaptação às condições locais. As doenças tropicais e as instituições em que foram estudadas constituíram objeto de debates nos congressos internacionais. O Instituto de Soroterapia de Manguinhos (fundado por Oswaldo Cruz) foi, assim, premiado com a Medalha de Ouro da Higiene no 14º Congresso Internacional de Higiene e de Demografia (Berlim, 1907).54

Além de seu interesse intrínseco (os trópicos eram tidos como um lugar propício à inovação no estudo das doenças transmissíveis) e do interesse prático (a medicina tropical tinha como objetivo declarado tornar os trópicos habitáveis - e rentáveis - para os europeus e norte-americanos), o desenvolvimento da medicina tropical foi descrito como um meio, para os ocidentais, de se apropriar dos trópicos (e não apenas neles assegurar sua presença física). Essa apropriação passou pelo domínio dos corpos nativos propriamente dito (disciplinar os corpos dos habitantes por meio da limpeza e o controle de si inculcando as virtudes da civilização ocidental) e pela vigilância médica de seu meio ambiente. A medicina, e em particular a saúde pública, tornaram-se, assim, um meio de conhecer as pessoas e seu meio ambiente, e depois controlá-las. As viagens, a coleta de materiais biológicos, a investigação do local e a utilização, indispensável, das técnicas de laboratório servem para descrever os nativos e inscrevê-los nos roteiros desenvolvidos pelos cientistas ocidentais. Os métodos utilizados para tal apropriação e a linguagem em que foram formulados mudaram com o tempo. O intervencionismo moderado da "medicina dos climas quentes" supunha uma "resistência racial" que só pode ser adquirida pelos homens brancos lentamente, à custa de uma aclimatação gradual, de um modo de vida saudável (nutrição apropriada, repouso, eliminação de excessos), e antes de tudo da miscigenação com os nativos, que permitiria a criação de "raças resistentes". Essa percepção foi substituída, no começo do século XX, por um "otimismo higienista" enraizado nos novos desenvolvimentos científicos. A nova abordagem da medicina dos climas quentes sublinhou a importância dos princípios científicos na luta contra os agentes das doenças transmissíveis e seus vetores. A adesão aos princípios relativamente simples com vistas a impedir o contato com os agentes e os vetores das doenças pode tornar os trópicos habitáveis para os europeus, sem que eles precisem de uma longa aclimatação, da adesão a um modo de vida predeterminado e, menos ainda, do desenvolvimento de uma "raça resistente" por meio da mestiçagem. Se a abordagem antiga pregou a adaptação "positiva" aos trópicos, por meio da modificação gradual das condições de vida, o elemento crucial da nova abordagem foi a adaptação "negativa": a vigilância dos corpos, especialmente dos corpos nativos.55

Nas colônias, a medicina tornou-se muitas vezes o lugar privilegiado para os contatos entre a cultura ocidental e as culturas autóctones. Ainda que dominados pelo sentimento de superioridade dos médicos e pesquisadores ocidentais, os contatos com as populações locais não eram necessariamente unilaterais; a resistência dos habitantes das regiões quentes, mas também as práticas de saúde locais influenciaram, ocasionalmente, as práticas ocidentais. Além disso, as classes dominantes nos países do Sul por vezes se apropriaram, em seu próprio interesse, das práticas e da imagem de distinção da medicina ocidental - ou, em outras circunstâncias, das resistências populares à medicina ocidental. A medicina e, mais largamente, a ação sanitária, pode portanto ser descrita como "uma zona de trocas" (desiguais, é verdade) entre as culturas, e como um espaço de debates sobre objetivos políticos e práticas sociais56 Este papel de espaço de troca, assim como a apropriação das ações sanitárias pelas elites locais para realizar seus próprios objetivos, são particularmente perceptíveis nos países que, no fim do século XIX, não estiveram submetidos a um regime colonial, como o Brasil.

Duas escolas de medicina (ou, antes, duas abordagens do estudo das doenças tropicais) coexistiram no Brasil no século XIX: a do Rio de Janeiro e a de Salvador, na Bahia. Médicos ligados a esta última desenvolveram, na segunda metade do século XIX, reflexões originais sobre as doenças tropicais. O ponto de partida dessas reflexões foram as pesquisas de um médico alemão instalado no Brasil, o Dr. Otto Wucherer, sobre a origem parasitária de algumas afecções tropicais. Em 1866-1868, Wucherer publica, na Gazeta Médica da Bahia, os primeiros resultados de suas investigações sobre o papel do verme Anchylostomum duodenale na produção da anemia. Seus trabalhos insistem na causalidade única da anemia, destacando dessa forma uma doença tropical particular do contexto geral das reflexões sobre as afecções tropicais, que associaram tais patologias às condições climáticas e à constituição dos indivíduos afetados. Era o início do desenvolvimento da "Escola Tropicalista Baiana" (nome proposto ulteriormente pelos historiadores que estudaram esta escola), ativa entre 1866 e 1890, e que publicou seus trabalhos na Gazeta Médica da Bahia. A originalidade dessa escola está no fato de que seus membros - Otto Wucherer, Julio de Moura, Pedro Severiano de Magalhães, Silva Araújo - centraram suas investigações sobre as doenças tropicais, algumas induzidas pelos parasitas (filariose, ancilostomíase), e outras, tais como o beribéri, por uma causa então desconhecida (outros médicos brasileiros preferiram estudar as doenças freqüentes nos climas temperados). Suas pesquisas tiveram por objeto as causas diretas das doenças típicas do Brasil, mas também a adaptabilidade das pessoas às diversas condições climáticas. Os médicos da Escola Tropicalista opuseram-se simultaneamente ao determinismo climático, freqüente no pensamento médico europeu da época, que viu os trópicos como um lugar de inevitável degenerescência dos seres humanos, e a qualquer determinismo racial. Sobre este último ponto, convém notar que a sociedade da Bahia era mestiça, e que muitos médicos da cidade eram negros ou mulatos. A resistência dos membros da Escola Tropicalista a qualquer determinismo biológico lhes permitiu manter uma visão da flexibilidade e da maleabilidade dos seres humanos. Tal visão sublinhou o papel da medicina no fortalecimento das tendências positivas, e na neutralização eficaz dos efeitos nefastos do clima e da mistura de raças. Ela permitiu, assim, aos médicos da Bahia afirmar sua fé na possibilidade de transformar o Brasil em uma nação civilizada, e sublinhar o lugar da profissão médica em tal transformação. Incidentalmente, tal percepção correspondeu também aos interesses de algumas camadas da burguesia da Bahia confrontadas, na segunda metade do século XIX, com a rápida industrialização da região, com a imigração em massa e com a necessidade de integrar e controlar seus trabalhadores.57

Os membros da chamada Escola Tropicalista Baiana foram inicialmente vistos como marginais, mas suas idéias foram gradualmente incorporadas pela comunidade médica de sua cidade, e depois pelo conjunto dos médicos brasileiros. Tal aceitação está ligada, entre outros, ao crescente reconhecimento da especificidade das afecções tropicais e à necessidade de desenvolver no Brasil uma medicina nacional que se interessasse pelas patologias locais. A implantação das "disciplinas pasteurianas" no Brasil e, notadamente, o papel exercido pelo laboratório decorriam da preocupação em adquirir um saber local sobre as doenças e em desenvolver uma ciência especificamente brasileira, integrando os conhecimentos do saber universal. A especialização dos pesquisadores ligados à Escola Tropicalista Baiana assegurou uma boa recepção dos médicos europeus a seus trabalhos. Essa estratégia, que se revelou profissionalmente importante, encerrou, entretanto, os médicos brasileiros no gueto do "tropicalismo", único nicho aberto aos médicos vindos da periferia.58 Os esforços empreendidos no fim do século XIX (1880-1900) pelos cientistas brasileiros para descobrir o "germe da febre amarela", a rápida importação e a adaptação das conclusões da Comissão Reed sobre o papel do mosquito Stegomyia na transmissão da doença, a campanha de erradicação levada adiante por Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro (1903-1907), assim como a luta contra esta patologia ao longo dos anos 1920-1930 e sua inserção nas tentativas de criar uma nação brasileira unificada, se inscrevem nas características particulares do contexto brasileiro; trata-se, com efeito, de um país subdesenvolvido, mas autônomo e potencialmente rico, dotado de identidade e de cultura nacionais próprias, mesmo que ela esteja reservada às camadas superiores da população, elites locais que aspiravam a se tornar tanto quanto possível semelhantes às dos países desenvolvidos, fazendo progredir seus objetivos nacionais.

Nesse tipo de região, a medicina tropical tem um estatuto complexo; meio de integrar a comunidade internacional afirmando sua especificidade nacional, ela é ao mesmo tempo fonte de orgulho e de embaraço, com a contribuição largamente reconhecida dos cientistas autóctones à ciência mundial atraindo, contudo, a atenção para precária situação sanitária do país e para a distância que o separa dos países desenvolvidos. Aproximação que pode abrir aos especialistas (e aos políticos) estrangeiros possibilidades de intervenção e alargar a zona de influência dos especialistas (e dos políticos) locais, ela constitui, enfim, um meio de homogeneizar, de "civilizar" e de "modernizar" as populações, de adaptá-las às exigências da economia mundial, mas também de enquadrar e legitimar a especificidade local. Um estudo que se interesse pela circulação dos conhecimentos científicos entre países do Norte e países do Sul e ao destino da "ciência universal" nos trópicos deverá dar atenção também aos múltiplos usos - políticos, sociais, culturais e econômicos - da noção de universalidade da ciência e das práticas de pretensões universais.59

As campanhas contra a febre amarela no Brasil foram moldadas pelas complexas interações entre os saberes e as práticas desenvolvidas em laboratório pelos bacteriologistas e virólogos e aquelas elaboradas em campo pelos epidemiologistas e os especialistas em saúde pública, assim como pelas múltiplas interações com o ambiente (social, cultural, político) destas práticas. Tais interações estão no cerne desta obra. Seu tema está situado na interseção entre as pesquisas de laboratório e as investigações de campo, entre as políticas de saúde e as práticas administrativas. Em conseqüência, este trabalho se apóia na rica tradição da história social da medicina, que desempenhou um papel-chave no desenvolvimento dos estudos recentes sobre a medicina colonial, e na tradição dos estudos sociais e culturais da ciência que se interessam de perto pelas práticas dos pesquisadores e dos médicos, pelas culturas de laboratório, instrumentos, técnicas e registros, menos presente nas pesquisas sobre a medicina tropical e colonial.

O segundo e o terceiro capítulos propõem um sobrevôo rápido pela história dos esforços empreendidos no Brasil para controlar a febre amarela. O segundo capítulo é centrado na descoberta do papel do mosquito em sua transmissão, nas atividades da missão do Instituto Pasteur no Rio (1901-1905) e na campanha contra a febre amarela dirigida por Oswaldo Cruz. O terceiro capítulo retoma as atividades da Fundação Rockefeller no Brasil entre 1920 e 1940 e examina detalhadamente dois períodos: o de 1923-1929, dominado pelas campanhas antimosquito de alcance limitado conduzidas no Nordeste; e o de 1930-1936, marcado pela organização de uma campanha de grande envergadura para a eliminação do mosquito Aedes ægypti. Paralelamente, ele expõe o desenvolvimento do movimento sanitário brasileiro que teve como objetivo o "saneamento do país" e sua transformação em um país moderno, e suas ressonâncias nas atividades dos especialistas norte-americanos. O quarto capítulo está vinculado aos métodos de visualização da presença da febre amarela no Brasil. Ele segue os relatos de viajantes pelo interior do país, do princípio do século até os anos 1940, e estuda a integração entre elementos (paisagens, pessoas doentes, mosquitos, casas, cidades, vilarejos, florestas e campos) e habitantes nas descrições da febre amarela fornecidas pelos pesquisadores brasileiros, franceses e norte-americanos. Tem em vista, mais especificamente, as mudanças trazidas à percepção da febre amarela pela introdução das técnicas de laboratório (pesquisa de anticorpos específicos, exames patológicos) que tornaram possíveis as investigações epidemiológicas de grande envergadura.

O quinto capítulo é dedicado à questão do controle dos mosquitos e dos humanos. Estuda os laços entre as percepções científicas da febre amarela e o desenvolvimento da luta contra esta doença e analisa os métodos utilizados no Brasil para controlá-la, a passagem do controle dos mosquitos ao controle das populações, o quadro político no qual tal passagem se insere - o regime autoritário de Getúlio Vargas - e as conseqüências da generalização do modelo de controle das doenças transmissíveis pelos insetos por meio da erradicação destes últimos. O sexto capítulo relata o desenvolvimento da vacina antiamarílica e as campanhas de vacinação em massa. Uma vacina pode ser apresentada como a entidade transferível por excelência, mas é, efetivamente, muitas vezes utilizada de maneira distinta. Esse capítulo se volta mais especificamente para a gestão diferencial dos riscos inerentes à vacinação. As práticas vacinais desenvolvidas no Rio de Janeiro contrastam com as advindas do laboratório central da febre amarela da Fundação Rockefeller em Nova York, e com as abordagens elaboradas no mesmo período pelos franceses nas campanhas de vacinação na África.

O volume se conclui com o rápido acompanhamento das políticas de saúde pública desenvolvidas após a Segunda Guerra Mundial com base nas tentativas levadas adiante no período precedente, e com uma discussão sobre o papel - ou, antes, sobre os papéis - das práticas científicas de pretensões universais no controle local das doenças transmissíveis.

As afecções induzidas por bactérias, por vírus ou por parasitos deram sólidos argumentos para se proclamar a unidade do gênero humano e a universalidade do saber sobre as doenças. A progressão das doenças transmissíveis esteve estreitamente ligada ao desenvolvimento dos meios de transporte - navio, trem ou avião - e à intensificação da circulação de pessoas e de bens. A propagação de epidemias legitimou o desenvolvimento de um saber científico válido para todos os lugares que permita eliminar as doenças epidêmicas onde quer que elas grassem (ou, numa versão mais restritiva, proteger o "mundo civilizado" dos males vindos de outra parte). A circulação dos saberes e das práticas relativas ao controle das doenças transmissíveis foi inicialmente tratada como uma resposta à difusão dos agentes de tais doenças e seus vetores entre as novas populações (as dos países ocidentais, os colonos); ela se estendeu até a vigilância das doenças dos nativos. A difusão das técnicas de laboratório e, paralelamente, dos novos métodos de gestão da saúde pública contribuiu, por sua vez, para uma certa homogeneização das populações humanas.60 Tal homogeneização foi apenas parcial, pois esbarrou em múltiplos obstáculos: a história das tentativas de controlar a febre amarela pode estimular reflexões sobre a possibilidade, a pertinência e os limites do desenvolvimento de um saber universal sobre as doenças transmissíveis e das práticas mundialmente válidas de controle de tais doenças. Reflexões sobre as modalidades de transferência de conhecimentos e das práticas científicas, médicas e administrativas do centro para a periferia, assim como as circulações no sentido inverso, adquirem hoje em dia uma gravidade especial no contexto de um crescente distanciamento entre os países industrializados e os países em desenvolvimento.