Capítulo 5

Quando Andrews acordou, Charley Hoge estava já de pé e vestido; enroscado junto à fogueira, juntava galhos às brasas que tinham ficado a arder durante a noite junto ao talude. Andrews deixou-se ficar deitado, por momentos, no relativo calor do saco-cama, vendo a sua respiração soltar vapor. A seguir atirou os cobertores para o lado e, tremendo, calçou as botas, que estavam tesas e duras devido ao frio. Sem apertar os atacadores, caminhou pesadamente até à fogueira. O sol ainda não galgara a montanha ao lado da qual o acampamento fora instalado, mas no cimo da montanha oposta uma porção de pinheiros era já iluminada pelo sol da manhã; uma mancha de faias a mudar de cor fazia irromper uma tonalidade dourada no meio do verde dos pinheiros.

Miller e Schneider levantaram-se antes de o café de Charley Hoge começar a ferver. Miller fez sinal a Andrews; os três homens dirigiram-se penosamente do seu abrigo de árvores até ao vale plano, onde a cerca de noventa metros os cavalos peados estavam a pastar. Trouxeram os animais para o acampamento e selaram-nos antes de o café, o toucinho fumado e as papas de milho fritas estarem prontos.

— Não se deslocaram muito — disse Miller, apontando por entre as árvores. Andrews viu a estreita linha preta da manada que se alongava em fila pela curva do vale. Bebeu apressadamente o café, escaldando a língua. Miller tomou o pequeno-almoço com calma. Quando terminou, internou-se um pouco na floresta e de um ramo baixo escolheu um galho bifurcado, que cortou a cerca de meio metro da ramificação; com a faca aparou a forquilha de modo a que os dois pequenos galhos que a formavam distassem uns quinze centímetros do galho principal; depois desbastou a grossa base deste. Tirou a espingarda do monte de pertences que tinha ao lado do saco-cama e desenrolou o oleado que a protegia da humidade noturna. Examinou meticulosamente a arma e enfiou-a no comprido coldre preso à sela. Os três homens montaram os cavalos.

Na amplidão do vale, Miller aproximou o cavalo e falou com os dois homens que seguiam de um lado e doutro.

— Vamos direitos a eles. Metam os vossos cavalos atrás do meu e não os deixem afastar-se da linha. Desde que nos mantenhamos mesmo direitos a eles, não se assustam.

Andrews pôs-se atrás de Miller, com o cavalo a passo calmo. Doíam-lhe as mãos. Olhou para os nós dos dedos: tinham a pele branca, retesada sobre os ossos. Abrandou a força com que segurava as rédeas e deixou descair os ombros; respirava com dificuldade.

Quando iam a meio da extensão do vale, a manada, ainda a pastar, tinha já dobrado a curva. Miller conduziu os outros dois até próximo do sopé da montanha.

— A partir daqui temos de avançar com cuidado — disse. — Nestas montanhas nunca se sabe de que lado sopra o vento. Amarrem os cavalos; continuamos a pé.

Caminhando uns atrás dos outros, com Miller na dianteira, os três homens contornaram o abrupto sopé rochoso da montanha. Miller deteve-se repentinamente e levantou a mão. Sem virar a cabeça, dirigiu-se aos que vinham atrás, num tom normal de conversa:

— Estão mesmo ali à frente, a menos de trezentos metros. Avancem com cuidado, agora.

Agachou-se, arrancou um punhado de ervas e com a mão levantada deixou-as cair no solo. O vento trouxe as ervas novamente na sua direção. Fez um aceno com a cabeça.

— O vento é favorável.

Ergueu-se e avançou, mais devagar.

Andrews, que trazia ao ombro o saco com as munições de Miller, mudou a posição da carga; ao fazê-lo, viu um movimento na manada à sua frente.

De novo sem virar a cabeça, Miller instruiu-os:

— Continuem a avançar a direito. Desde que não saiam da fila, eles não se assustam.

Agora, Andrews via distintamente a manada. Contra o desmaiado verde-amarelado da erva, o fosco tom sombrio dos búfalos sobressaía nitidamente, mas fundia-se com a tonalidade mais escura do pinhal que se avistava na íngreme encosta da montanha atrás deles. Muitos dos búfalos estavam tranquilamente deitados na erva macia do vale; esses eram simples corcovas, semelhantes a negros pedregulhos, sem identidade nem forma. Alguns, porém, achavam-se de pé na orla da manada, como sentinelas; uns quantos pastavam despreocupadamente e outros mantinham-se imóveis, com as grandes cabeças peludas enterradas entre as patas dianteiras, tão recobertas de pelo escuro e comprido que mal se lhes distinguia a forma. Um macho velho exibia grandes cicatrizes nos costados e nas ilhargas, que se viam mesmo à distância a que os homens avançavam; esse búfalo encontrava-se um tanto afastado dos outros animais; estava virado para os homens que se aproximavam, com a cabeça descaída e os arrebitados chifres de marfim a brilhar ao sol, sobressaindo do pelo escuro que lhe coroava a cabeça. Quando eles se aproximaram não se mexeu.

Miller parou novamente.

— É escusado continuarmos juntos. Espere aqui, Fred. Você venha atrás de mim, Will; temos de procurar flanqueá-los. Os búfalos estão sempre virados contra o vento; deste ângulo não consigo atirar como deve ser.

Schneider ajoelhou-se e foi-se deitando lentamente no chão de barriga para baixo; com o queixo apoiado nas mãos cruzadas observou a manada. Miller e Andrews viraram à esquerda. Tinham andado uns treze metros quando Miller levantou a mão, com a palma para fora; Andrews parou.

— Estão a começar a ficar agitados — disse Miller. — Vamos devagarinho.

Muitos dos búfalos das orlas exteriores da manada tinham-se posto de pé, erguendo-se rigidamente sobre as patas dianteiras e depois nas traseiras, bamboleando-se por momentos até darem uns passos em frente. Os dois homens mantiveram-se imóveis.

— É o movimento que os faz agitarem-se — elucidou Miller. — Uma pessoa podia passar o dia inteiro mesmo à frente deles e não os perturbar, desde que conseguisse lá chegar sem se mexer.

Os dois homens iniciaram a sua vagarosa progressão. Quando a manada mostrou novo sinal de inquietação, Miller pôs-se de gatas; Andrews colocou-se atrás dele, arrastando desajeitadamente à ilharga o saco das munições.

Ao chegarem a uns cento e cinquenta metros do flanco da manada, pararam. Miller espetou no chão o galho bifurcado que trazia e apoiou o cano da espingarda na forquilha. Andrews rastejou até junto dele.

Miller sorriu-lhe.

— Veja como eu faço, rapaz. Aponta-se um bocadinho atrás da omoplata e a uns dois terços da altura a partir do cimo da bossa; isto se estivermos a disparar de trás, como agora. É o tiro ao coração. É melhor acertar-lhes um pouco de frente, nos bofes; assim não morrem tão depressa, mas não correm tanto depois de serem atingidos. Se houver vento, o caçador arrisca e tenta pôr-se diante deles. Vigie o macho grande, aquele que está cheio de cicatrizes. A pele dele não vale um chavo, mas parece ser o chefe. Tenta-se sempre identificar o chefe da manada e abatê-lo primeiro. Sem o chefe, eles tendem a não correr tanto.

Andrews observou atentamente Miller a fazer pontaria ao macho velho. Mantinha os olhos abertos no prolongamento da mira do cano da espingarda e a coronha bem encostada ao rosto. Os músculos da sua mão direita tinham-se retesado; a espingarda emitiu um forte crrac e a coronha deu um coice contra o ombro de Miller, ao mesmo tempo que da boca da arma se soltava uma pequena nuvem de fumo.

Ao ouvir o som da espingarda, o velho macho deu um pinote, como que sobressaltado por uma forte pancada na garupa; sem pressas, começou a afastar-se a trote dos dois homens deitados de barriga para baixo.

— Raios! — exclamou Miller.

— Falhou o tiro — disse Andrews; havia um tom de espanto na sua voz.

Miller soltou uma curta risada.

— Não falhei nada. É o problema dos búfalos que são atingidos no coração. Às vezes chegam a andar mais uns cem metros.

Os outros búfalos começaram a agitar-se com o movimento do macho. Primeiro devagar, uns quantos levantaram-se sobre as grossas patas dianteiras; depois, subitamente, a manada converteu-se numa escura amálgama de pelo em movimento, quando os animais largaram a correr na direção que o macho tomara. Na manada compacta, os dorsos dos animais ondulavam ritmadamente, e os homens que estavam deitados a observar ouviram o rugido dos seus cascos. Miller berrou qualquer coisa que Andrews não conseguiu distinguir, com o barulho.

Os búfalos ultrapassaram o macho ferido e avançaram mais uns duzentos metros; depois acabaram por se cansar e ficaram no mesmo sítio, às voltas, inquietos. O velho macho estava parado, solitário, atrás deles, com a volumosa cabeça pendida; agitou uma ou duas vezes o rabo e abanou a cabeça. Rodopiou várias vezes, como qualquer outro animal faria antes de se deitar, e ficou por fim postado de frente para os homens, que estavam a mais de cem metros dele. Deu três passos na sua direção e voltou a parar. Depois, rigidamente, tombou de lado, com as patas tesas a sobressair da barriga. Agitou-as convulsivamente e a seguir ficou imóvel.

Miller levantou-se do chão, onde estivera encolhido, e sacudiu a erva da roupa.

— Bem, já apanhámos o chefe. Da próxima vez já não correm tanto. — Pegou na espingarda, no pau que servia para fazer pontaria e numa comprida vareta de arame com um trapo de limpeza na ponta que poisara ao seu lado. — Quer ir lá dar uma vista de olhos?

— Não vamos assustar os outros?

Miller abanou a cabeça.

— Já apanharam o susto deles. Agora já estão menos espantadiços.

Caminharam pela erva até onde jazia o búfalo morto. Miller lançou-lhe uma olhadela descuidada e roçou-lhe o pelo com a biqueira da bota.

— Não vale a pena esfolá-lo — decretou. — Mas temos de tirar o chefe do caminho, se queremos caçar alguma coisa de jeito.

Andrews olhou para o búfalo abatido com um certo misto de sentimentos. No solo, imóvel, já não possuía aquela espécie de bravia dignidade e poder que ainda uns minutos antes lhe imputara. E conquanto o corpo fizesse um grande monte escuro no terreno, as suas dimensões pareciam de algum modo reduzidas. A hirsuta cabeça negra estava um pouco de banda, mantida assim por um chifre que ficara assente numa irregularidade do terreno; o outro chifre tinha a ponta quebrada. Os pequenos olhos, semicerrados mas ainda luzidios ao sol, olhavam mansamente para diante. Os cascos eram surpreendentemente pequenos, quase delicados, perfeitamente fendidos como os de um bezerro; as pernas finas pareciam incapazes de suportar o peso do enorme animal. O largo flanco entumescido estava coberto de cicatrizes; algumas eram tão antigas que o pelo quase as cobrira, mas outras eram recentes e a sua cor azul-escura sobressaía nitidamente na pelagem. A escorrer de uma narina, uma gota de sangue engrossou e tombou na erva.

— Fosse como fosse, já não ia durar muito — observou Miller. — Daqui a um ou dois anos perderia as forças e os lobos dariam cabo dele. — Cuspiu na erva ao lado do animal. — Os búfalos nunca morrem de velhos. Ou o homem os mata ou são apanhados por um lobo.

Andrews lançou uma olhadela ao corpo do búfalo e viu a manada ao fundo. Tinha serenado; alguns animais continuavam a andar à roda, mas a maior parte pastava ou repousava na erva.

— Vamos dar-lhes uns minutos — disse Miller. — Ainda estão um bocadinho espantadiços.

Deram a volta ao búfalo que Miller matara e dirigiram-se para a manada. Caminhavam lentamente mas com menos cautela do que haviam tido na aproximação inicial. Quando chegaram a cerca de duzentos metros, Miller parou e arrancou um punhado de erva, que ergueu no ar e a seguir largou. A erva caiu lentamente, espalhando-se para um lado e para outro. Miller acenou com a cabeça, satisfeito.

— O vento caiu — concluiu. — Podemos ir para o outro lado e empurrá-los na direção do acampamento; assim teremos menos trabalho a carregar as peles.

Descreveram um amplo círculo, aproximaram-se e pararam a pouco mais de cem metros da compacta manada. Andrews deitou-se de barriga para baixo ao lado de Miller, que assentou a espingarda Sharps na forquilha de apoio.

— Desta vez devemos apanhar dois ou três, antes de desatarem todos a fugir — disse.

Durante uns minutos examinou criteriosamente a disposição da manada. Houve mais búfalos que se deitaram na erva. Miller concentrou a atenção nos que andavam às voltas nas orlas da manada. Apontou a espingarda a um grande macho que parecia mais ativo que os outros e premiu suavemente o gatilho. Ao ouvirem o barulho do disparo, uns quantos búfalos puseram-se de pé; viraram todos a cabeça na direção de onde o tiro partira e pareceu que ficavam a olhar para a pequena nuvem de fumo que se erguia do cano da espingarda e se esvaía no éter. O macho deu um salto para diante e correu um pouco, parou e voltou o focinho para os dois homens deitados no chão. Começou a escorrer-lhe sangue de ambas as narinas, lentamente, mas depois mais depressa, até formar dois jorros de cor escarlate. Ao verem o novo chefe vacilar, os búfalos que tinham principiado a afastar-se ao ouvir o som do disparo pararam, à sua espera.

— Acertei-lhe nos bofes — disse Miller. — Olhe.

Tornou a carregar a espingarda ao mesmo tempo que falava e rodou-a à procura do búfalo mais ativo da manada.

Enquanto ele falava, o búfalo ferido oscilou em desequilíbrio, assustado, e, numa guinada, tombou de lado. Três animais mais pequenos aproximaram-se curiosos do macho caído; por momentos ficaram a olhar e farejaram o sangue morno. Um deles levantou a cabeça e berrou, começando a afastar-se a trote. Ao lado de Andrews soou mais um disparo e o macho mais novo deu um salto, assustado, correu um pouco e estacou, com o sangue a escorrer-lhe pelas narinas.

Numa rápida sucessão, Miller abateu mais três búfalos. Na altura em que atingiu o terceiro já toda a manada estava de pé, às voltas, mas os animais não fugiam. Andavam mais ou menos à roda, berrando, à procura de um chefe que os tirasse dali.

— Apanhei-os! — sussurrou Miller furiosamente. — Meu Deus, estão desorientados!

Virou o saco das munições ao contrário a fim de ficar com dúzias de balas à mão. Quando pôde chegar-lhes, Andrews apanhou os cartuchos vazios. Depois de abater o sexto búfalo, Miller puxou a culatra da espingarda e com um trapo atado na ponta de uma vareta de arame comprida limpou a pólvora que ficara agarrada ao cano.

— Vá num instante ao acampamento buscar-me outra espingarda e mais cartuchos — ordenou a Andrews. — E traga um balde de água.

Andrews afastou-se de Miller, rastejando. Passados uns minutos olhou para trás, por cima do ombro; pôs-se de pé e descreveu em passo de corrida um amplo círculo à volta da manada. Ao dobrar a curva do vale, viu Schneider sentado com as costas apoiadas numa pedra e o chapéu puxado para cima dos olhos. Ao dar pela aproximação de Andrews, Schneider empurrou o chapéu para trás e ergueu os olhos para ele.

— O Miller desorientou-os — anunciou Andrews, ofegante. — Estão para ali parados a deixá-lo disparar sobre eles. Nem sequer correm.

— Com os diabos! — exclamou Schneider baixinho. — Conseguiu fixá-los no terreno. Eu já calculava. Dava a impressão que os disparos eram muito regulares e próximos.

Ouviram ao longe o som de um tiro; no sítio em que o ouviram parecia ténue e inofensivo.

— Estão para ali parados — voltou a dizer Andrews.

Schneider puxou o chapéu para os olhos e recostou-se na pedra.

— Esperemos que daqui a pouco comecem a correr, senão temos de trabalhar a noite inteira.

Andrews dirigiu-se aos cavalos, que estavam juntos, de cabeças levantadas e orelhas espetadas devido ao som dos disparos de Miller. Montou o seu e meteu-o a galope pelo vale fora até ao acampamento.

À sua aproximação, Charley Hoge levantou os olhos do trabalho que estava a fazer; na ausência dos companheiros passara a manhã a abater uma porção de faias e a arrastá-las para junto das árvores dispersas que bordejavam o acampamento.

— Dê-me uma ajuda com estas estacas — pediu-lhe Charley quando ele desmontou. — Estou a tentar montar uma cerca para o gado.

— O Miller tem os búfalos fixados no terreno — anunciou Andrews. — Quer outra espingarda e cartuchos. E água.

— Meu Deus! — exclamou Charley Hoge. — Louvado seja o Seu nome! — Deixou cair a estaca de faia que tinha começado a levantar com o coto do braço aleijado para a assentar no tronco de um pinheiro e correu para a tenda coberta pela lona junto da chaminé natural de pedra. — Quantas cabeças?

— Duzentas e cinquenta, trezentas. Talvez mais.

— Meu Deus! — tornou Charley Hoge. — Se eles não se espalharem, vai ser a melhor caçada que alguma vez tivemos. — Tirou da armação de troncos de pinheiro coberta uma espingarda antiga cuja coronha estava riscada, manchada e um pouco rachada, remendada com um arame bem apertado à volta. — Isto aqui é só uma velha Ballard, nada que se compare com a Sharps, mas é uma Fifty e ele pode usá-la o suficiente para deixar arrefecer a espingarda boa. E tome lá mais munições, duas caixas, tudo o que temos. Com as que enchemos a noite passada, há de chegar.

Andrews pegou na espingarda e nas munições e, com a pressa e o nervosismo, deixou cair uma caixa de munições.

— E água — recordou, parando para apanhar a caixa de munições.

Charley Hoge fez um aceno afirmativo e dirigiu-se à nascente, onde encheu uma pequena barrica de madeira. Ao entregá-la a Andrews, disse:

— Aqueça-a um bocadinho antes de a usar no cano da espingarda; ou então não deixe o cano aquecer demasiado. A água fria no cano muito quente pode dar cabo dele num abrir e fechar de olhos.

Montado a cavalo, Andrews acenou afirmativamente. Agarrou na barrica com um braço contra o peito e conduziu o cavalo para fora do acampamento. Fê-lo seguir na direção de onde vinha o som dos disparos, que continuavam a soar debilmente no extenso e plano vale, e deixou-o à vontade; segurava firmemente nos braços a barrica de água e a espingarda sobressalente e agarrava frouxamente as rédeas com uma das mãos. Perto da curva do vale onde Schneider dormitava ainda parou o cavalo e desmontou desajeitadamente, quase deixando cair a barrica ao apear-se. Amarrou as rédeas a uma pequena árvore e continuou a pé, descrevendo um largo semicírculo à volta da curva do vale, até ao sítio onde Miller, envolto agora na névoa cinzento-clara do fumo da arma, estava deitado no solo e disparava cada dois ou três minutos sobre a manada de búfalos que andava às voltas. Andrews rastejou para junto dele, segurando a barrica de água com um braço e fazendo deslizar a espingarda pela erva luzidia com a outra mão, que lhe servia de apoio.

— Quantos já matou? — perguntou.

Miller não respondeu; virou para ele os olhos dilatados e orlados de negro, que se fixavam algures para lá dele, inexpressivamente, como se ele não existisse. Pegou na espingarda sobressalente e enfiou a Sharps nas mãos de Andrews; este agarrou-a pela coronha e pelo cano, deixando-a cair imediatamente. O cano estava a ferver.

— Limpe-a — ordenou Miller, em voz monocórdica e áspera, empurrando a vareta de limpeza na sua direção. — Está a ficar empastada por dentro.

Tomando a precaução de não tocar no metal do cano, Andrews abriu a arma e enfiou a vareta de limpeza pela boca.

— Assim não — disse-lhe Miller, numa voz desapaixonada. — Assim suja o percutor. Molhe a ponta da vareta em água e enfie-a pela culatra.

Andrews abriu a barrica de água e molhou a extremidade do trapo da vareta de limpeza. Quando enfiou a vareta pela culatra, o metal quente assobiou e as gotas de água que escorreram pelo exterior do cano bailaram por momentos no metal azulado e desapareceram. Esperou uns instantes e voltou a introduzir a vareta. Da extremidade do cano saíram gotas de água enegrecidas pelo fumo. Depois de limpar a arma, tirou um lenço do bolso, mergulhou-o na água da nascente, ainda fresca, e deslizou-o pelo exterior do cano até arrefecer a arma. A seguir passou-a de novo a Miller.

Miller disparava, recarregava a arma, tornava a disparar e carregava-a de novo. A névoa acre de fumo adensou-se à volta deles; Andrews tossiu e aproximou o rosto do solo, onde o fumo era mais ralo. Quando levantou a cabeça viu o terreno à sua frente juncado de carcaças de búfalos, amontoadas, e a manada restante — aparentemente pouco diminuída — a andar em círculos, agora quase mecânicos, numa espécie de ritmo silencioso, como que impelida pelas explosões regulares das espingardas de Miller. O som das armas a disparar ensurdecia-o; entre os tiros, sentia os ouvidos vibrarem embotadamente e esperava, tenso no latejante silêncio, quase receando o próximo disparo que lhe estilhaçaria os ouvidos com uma súbita explosão muito próxima da dor.

Aos poucos, no seu movimento rodopiante, a manada foi-se afastando deles; perante essa deslocação, os dois homens rastejaram na sua direção, avançando uns metros de cada vez e mantendo a posição relativamente aos búfalos que iam andando à roda. Durante alguns minutos, para lá da densa nuvem de fumo dos tiros, conseguiram respirar livremente, mas não tardou que se formasse outra neblina, que novamente os fez respirar com dificuldade e tossir.

Decorrido um pedaço, Andrews começou a aperceber-se de um certo ritmo na chacina de Miller. Primeiro, com um vagaroso e cauto movimento, que consistia em retesar os músculos do braço, firmar a cabeça e apertar a mão devagar, Miller disparava a espingarda; depois, ejetava rapidamente o cartucho ainda fumegante e voltava a carregar a arma. Examinava o animal que alvejara e, se via que ele fora atingido em cheio, buscava no meio da rodopiante manada um búfalo que parecesse particularmente inquieto; passados uns segundos, o animal ferido cambaleava e caía por terra. Nessa altura, ele voltava a disparar. Todo este procedimento se assemelhava, aos olhos de Andrews, a uma dança, a um estrepitoso minueto criado pela terra bravia que o rodeava.

A certa altura, durante a imobilização dos animais, muitas horas depois de Miller ter abatido o primeiro búfalo, Schneider apareceu a rastejar atrás deles e chamou por Miller, que não deu sinais de ter ouvido. Schneider tornou a chamá-lo, mais alto, e Miller voltou ligeira e sacudidamente a cabeça para ele, mas continuou a não responder.

— Desista — disse Schneider. — Já caçou setenta ou oitenta. São mais que suficientes para nos manter a mim e a Mr. Andrews metade da noite ocupados.

— Não — ripostou Miller.

— Já fez uma boa caçada — volveu Schneider. — Já chega. Não precisa de…

A mão de Miller crispou-se e soou um tiro que abafou as palavras de Schneider.

— Aqui o Mr. Andrews não vai ser de grande ajuda, bem sabe — insistiu Schneider, uma vez dissipado o eco do disparo. — Não vale a pena continuar a caçar animais para lá dos que nós conseguimos esfolar.

— Vamos esfolar todos os que caçarmos, Fred — disse Miller. — Nem que eu esteja aqui a caçar até amanhã.

— Com os diabos! — exclamou Schneider. — Eu não estou aqui para esfolar búfalos já tesos.

Miller voltou a carregar a arma e girou-a impacientemente sobre o pau que lhe servia para assentar a arma.

— Eu ajudo-vos a esfolar, se for preciso. Mas quer eu vos ajude quer não, vão esfolá-los, Fred, quentes ou frios, moles ou rijos. Vão esfolá-los se estiverem inchados e vão esfolá-los se estiverem gelados. Vão esfolá-los nem que tenham de lhes arrancar a pele a pé-de-cabra. Agora cale-se e ponha-se a andar daqui para fora, que ainda me faz falhar o tiro.

— Com os diabos! — bradou Schneider, pregando um murro na terra. — Está bem — disse, erguendo-se até ficar acocorado. — Continue a matá-los até se fartar, mas eu não vou…

— Fred — atalhou-o mansamente Miller —, quando se esgueirar daqui, faça-o em silêncio. Se estes búfalos se espantarem, prego-lhe um tiro a si.

Por momentos, Schneider manteve-se agachado. Depois abanou a cabeça, pôs-se de joelhos e afastou-se dos dois homens a rastejar em linha reta, murmurando de si para si. A mão de Miller crispou-se, o dedo apertou o gatilho e soou o estampido de um tiro na surda quietude.

Já a tarde ia a meio quando a imobilização dos animais se quebrou.

A manada inicial tinha sido reduzida a dois terços, ou mais. Numa comprida faixa irregular que se estendia quase um quilómetro para lá da manada, o terreno estava juncado de montículos escuros de búfalos abatidos. Andrews tinha os joelhos em carne viva, de tanto rastejar atrás de Miller, ao avançarem, palmo a palmo, seguindo lentamente o descaimento da rodopiante manada para sul. Ardiam-lhe os olhos, de os piscar por causa do fumo, e doíam-lhe os pulmões, de o respirar. A cabeça latejava-lhe devido ao som dos disparos e começavam a aparecer-lhe bolhas na palma de uma das mãos, de segurar os canos quentes. Durante a última hora cerrara os dentes para não trair qualquer expressão de dor que o corpo sentia.

À medida que a dor física recrudescia, porém, a mente parecia desligar-se da dor e situar-se acima dela, de tal forma que conseguia ver-se a si próprio e ver Miller com mais nitidez do que antes. No decurso da última hora de caçada acabara por encarar Miller como um mecanismo, um autómato, que se movia de acordo com o movimento da manada, e acabara por encarar a chacina praticada por Miller não como uma ânsia de sangue ou uma ânsia das peles ou uma ânsia do que as peles renderiam, ou sequer, enfim, como uma cega ânsia de fúria que se revolvesse obscuramente dentro dele: acabara por encarar a matança como uma fria e indiferente reação à vida em que Miller se tinha embrenhado. E olhava para si mesmo, a rastejar em silêncio atrás de Miller pela planura do vale, a apanhar os cartuchos vazios que ele ia consumindo, a arrastar a barrica de água, a tratar da espingarda, a limpá-la, a passá-la a Miller quando ele precisava dela — olhava para si mesmo e não sabia quem era, nem para onde ia.

A espingarda de Miller emitiu um estampido; uma jovem fêmea, pouco mais que uma cria, tropeçou, pôs-se de pé e desatou a correr erraticamente aos ziguezagues para longe da manada.

— Raios! — exclamou Miller sem emoção. — Um tiro na pata. Com este já acabo com ela.

Ao mesmo tempo que falava, carregava de novo a arma; alvejou uma vez mais o animal ferido, mas era demasiado tarde. Ao segundo tiro a fêmea guinou e correu para o meio da manada, aos ziguezagues. Quebrado o círculo, a manada ficou parada por momentos. Nessa altura, um jovem macho destacou-se e a manada seguiu-o: a massa de animais escorria do amplo círculo como água de uma bica, até Miller e Andrews só conseguirem ver uma estreita e escura linha de bossas ondulando a afastar-se deles, num ruído surdo, pelo sinuoso vale.

Puseram-se os dois de pé. Andrews alongou os músculos entorpecidos e por pouco não soltou um grito de dor ao endireitar as costas.

— Pensei nisso — disse Miller, voltado para a manada que se ia sumindo, e não para Andrews. — Pensei no que poderia acontecer se não acertasse em cheio. Foi por isso que não acertei em cheio. Parti-lhe uma perna. Se não tivesse pensado nisso, podia ter dado conta da manada inteira. — Voltou-se para Andrews; tinha os olhos muito abertos e inexpressivos, com as pupilas desfocadas e a bailarem nas córneas. A pele do rosto por escanhoar estava negra da cinza da pólvora, a qual se lhe agarrara também à barba. — Da manada inteira — voltou a dizer, e os seus olhos focaram-se em Andrews ao mesmo tempo que lhe aparecia um leve sorriso nas comissuras dos lábios.

— Foi uma grande caçada? — perguntou Will Andrews.

— A maior que alguma vez tive — disse Miller. — Vamos contá-los.

Começaram os dois a caminhar de novo rumo ao vale, seguindo o vago e esparso rasto de búfalos abatidos. Andrews conseguiu contar até perto de trinta, mas a sua atenção dispersou-se perante a quantidade de animais mortos e os números que repetia para si espalharam-se pela mente, formando um remoinho; e ele desistiu de contar. Desorientado, caminhava ao lado de Miller enquanto iam percorrendo o terreno entre os búfalos, alguns dos quais tinham tombado tão perto uns dos outros que os corpos se tocavam. Um macho caíra de tal maneira que a sua enorme cabeça estava poisada no flanco de outro búfalo; a cabeça parecia observá-los ao passarem, com os brilhantes e inexpressivos olhos escuros a fitá-los desinteressadamente e continuando depois a olhar para lá deles quando passaram adiante. Ao caminharem penosamente sobre a espessa erva esponjosa, o sol quente do dia de céu limpo mortificava-os e o calor fazia desprender-se dos animais mortos um fétido odor a sangue e a algo de selvagem; o leve som sibilante que as botas faziam na erva crescida intensificava o silêncio à volta deles; o surdo latejar da cabeça de Andrews começou a diminuir e, depois do cheiro acre da pólvora, o intenso odor dos búfalos era quase bem-vindo. Deslocou a barrica de água vazia que levava ao ombro para uma posição mais cómoda e prosseguiu a caminhada, com o corpo direito, ao lado de Miller.

Schneider esperava-os no sítio onde a longa faixa de búfalos terminava. Estava sentado no bojudo flanco de um grande macho; os seus pés mal chegavam ao solo. Atrás dele os cavalos pastavam tranquilamente, com as rédeas frouxamente amarradas umas às outras e a arrastar pelo chão.

— Quantos? — perguntou desconsoladamente Schneider.

— Cento e trinta e cinco — respondeu Miller.

Schneider acenou sombriamente com a cabeça.

— Mais ou menos o que eu calculava. — Deixou-se escorregar pelo flanco do búfalo e recolheu o seu estojo de facas de esfolar, que tinha poisado no chão ao lado do búfalo abatido. — O melhor é começarmos já — disse para Andrews. — Temos uma longa tarde e uma longa noite à nossa frente. — Virou-se para Miller. — Você vai ajudar?

Por momentos, Miller não respondeu. Tinha os braços pendentes ao longo do corpo, os ombros descaídos e uma expressão de vazio no rosto; com a boca ligeiramente aberta, rodava a cabeça para um lado e para outro, olhando para o campo semeado de búfalos mortos que ia ficando para trás. Virou-se para Schneider.

— O quê? — perguntou, atordoadamente.

— Vai ajudar?

Miller levantou as mãos à altura do peito e abriu-as. Tinha o indicador da mão direita inchado, curvado para dentro na direção da palma da mão; endireitou-o com lentidão. Tinha na palma da mão esquerda uma comprida e estreita bolha que sobressaía pela palidez do tom negro granulado da carne circundante e a atravessava em diagonal desde a base do indicador até ao canto junto ao pulso. Miller fletiu as mãos e sorriu, muito direito.

— Vamos começar — disse.

Schneider fez um sinal a Andrews.

— Traga as suas facas e venha comigo.

Andrews seguiu-o até junto de um jovem macho; ajoelharam-se os dois diante dele.

— Veja só o que eu faço — disse Schneider.

Escolheu uma comprida lâmina curva e agarrou-a firmemente com a mão direita. Com a esquerda puxou o grosso colar de pelo à volta do pescoço do búfalo; servindo-se da outra mão fez uma pequena incisão na pele e deslizou rapidamente a faca do pescoço até à barriga. A pele abriu-se por completo com um débil som de rasgadura. Usando uma faca mais curta fez um corte à volta do saco que alojava os testículos, cortou os tendões que prendiam estes e o pénis à carne; separou das outras partes do saco os testículos, que eram do tamanho de maçãs bravas, e atirou-os para o lado; depois continuou a abrir até ao orifício anal.

— Aproveito sempre os tomates — disse. — São muito gostosos e põem a piça tesa. A não ser que sejam dum macho velho. Nessa altura é deixá-los estar.

Com outra faca ainda, Schneider fez um corte à volta do pescoço do animal, a começar no ponto em que fizera a incisão na barriga, levantando a enorme cabeça e apoiando-a num joelho a fim de poder cortar completamente à volta da garganta. A seguir fez outro golpe à volta dos cascos e rasgou o interior de cada perna até a faca encontrar a primeira incisão na barriga. Soltou a pele dos tornozelos até conseguir agarrar no couro e a seguir puxou-o até ele cair em pregas soltas sobre o flanco do búfalo. Depois de voltar a cobrir as patas com a pele, ajeitou o couro na zona da bossa até conseguir agarrá-lo com a mão. Feito isto, atou-lhe uma corda fina que tirou do alforge, amarrando a outra extremidade ao chifre da sela. Trepou para cima da sela e fez o cavalo andar para trás. Quando o cavalo recuou, a pele soltou-se do búfalo; os músculos duros do búfalo estremeciam e davam esticões à medida que o couro se descolava.

— E não tem mais nada que saber — disse Schneider, desmontando do cavalo. Desatou a corda da pele do búfalo. — Depois estendemo-la no chão a secar. Com o pelo para cima, de modo a não secar depressa demais.

Andrews calculou que Schneider levara pouco mais de cinco minutos a completar o processo de esfolar o animal. Olhou para o búfalo. Sem a pele, parecia muito mais pequeno. Viam-se camadas branco-amareladas dispersas sobre os lisos tendões azuis dos músculos; aqui e além, nos sítios em que a carne tinha vindo atrás da pele, apareciam escuros coágulos de sangue sobre a carne. A cabeça, com a sua gola de pelo e a comprida barba sob o queixo, parecia monstruosamente grande. Andrews desviou os olhos.

— Acha que consegue? — inquiriu Schneider.

Andrews acenou afirmativamente.

— Não tente fazer as coisas à pressa — alertou-o Schneider. — E não escolha um macho velho; para principiar, fique-se pelos jovens e leves.

Andrews escolheu um macho mais ou menos do tamanho daquele que Schneider tinha esfolado. Ao aproximar-se dele, pareceu-lhe que se encolhia dentro da roupa, que de repente sentia tesa sobre a pele. Cautelosamente, tirou do estojo uma faca semelhante à que Schneider usara e obrigou as mãos a descreverem os movimentos que vira momentos antes. A pele, aparentemente muito mole na barriga, oferecia uma resistência surpreendente à faca; forçou-a e sentiu-a penetrar na pele e mais fundo na carne do animal. Incapaz de movimentar a faca com a mesma facilidade e fluidez que vira Schneider empregar, fez um corte irregular atravessado na barriga. Não foi capaz de tocar nos testículos do búfalo; ao invés, cortou cautelosamente à volta do saco de ambos os lados.

Quando já tinha cortado a pele das pernas e do pescoço, estava a suar. Puxou pela pele de uma das pernas, mas escorregaram-lhe as mãos; com a faca, afastou a carne da pele e tornou a puxar. A pele soltou-se da perna trazendo grandes pedaços de carne atrás. Conseguiu juntar uma porção suficiente de pele no dorso para atar a corda, mas quando fez o cavalo recuar para a soltar, o nó desfez-se e o cavalo por pouco não ficou sentado sobre os quadris. Puxou um pouco mais a pele solta e amarrou a corda com maior firmeza. O cavalo tornou a puxar. A pele separou-se da carne, quase fazendo o búfalo rodopiar; obrigou o cavalo a recuar e a pele rasgou-se, desprendendo-se do flanco do búfalo e trazendo agarrados grandes pedaços de carne.

Andrews olhou desamparadamente para a pele estragada. Passado um momento, virou-se para procurar Schneider, que se atarefava uns metros atrás a abrir a barriga a um grande macho. Andrews contou seis carcaças que Schneider tinha esfolado enquanto ele esfolara apenas uma. Schneider olhou na sua direção, mas não se deteve no trabalho. Amarrou a corda à volta da pele, fez o cavalo recuar e estendeu a pele esfolada sobre a erva. Depois dirigiu-se ao local onde Andrews aguardava. Olhou para a pele inutilizada ainda agarrada ao dorso do búfalo.

— Não a arrancou como deve ser — disse. — E não cortou bem à volta do pescoço. Se cortar muito fundo, chega à carne, e essa parte solta-se com demasiada facilidade. O melhor é deixar este.

Andrews acenou afirmativamente, afrouxou o nó à volta da pele e aproximou-se de outro búfalo. Desta feita fez os cortes com mais cuidado; quando, porém, tentou puxar a pele, esta voltou a rasgar-se como acontecera antes. Vieram-lhe lágrimas de raiva aos olhos.

Schneider aproximou-se novamente dele.

— Escute — disse, sem acrimónia —, hoje não tenho tempo para me empatar consigo. Se o Miller e eu não conseguirmos arrancar estas peles dentro de umas horas, estes búfalos ficarão tesos como tábuas. Que tal se trouxesse uma cria até ao acampamento e tentasse desmanchá-la? Assim como assim, precisamos de carne, e você pode trabalhar na carcaça, apanhar-lhe o jeito. Eu ajudo-o a montar um aparelho.

Não sabendo bem se seria capaz de falar, Andrews fez um aceno de concordância; sentia subir-lhe pela garganta um aceso e irracional ódio por Schneider.

Schneider escolheu uma fêmea jovem, que era pouco mais que uma cria, e passou-lhe uma corda pelo queixo e pelo pescoço; amarrou-a curta e passou-a à volta do chifre da sela de Andrews, de forma que quando o cavalo puxasse a cabeça da fêmea não arrastasse pelo chão.

— Tem de levar o cavalo a pé — avisou Schneider. — Bem lhe basta arrastar esta fêmea.

Andrews voltou a acenar com a cabeça, sem olhar para Schneider. Puxou as rédeas e o cavalo inclinou-se para diante, com os cascos a escorregar na erva, mas a carcaça do búfalo deslizou ligeiramente e o cavalo firmou-se e começou penosamente a andar pelo vale fora. Andrews caminhava com dificuldade à frente do cavalo, puxando-o frouxamente pelas rédeas.

Quando regressou ao acampamento, o sol tinha-se posto atrás da cordilheira a poente; corria um vento gélido, que se lhe infiltrava pelas roupas e chegava à pele suada. Charley Hoge veio a correr do acampamento ao seu encontro.

— Quantos? — inquiriu.

— O Miller contou cento e trinta e cinco — respondeu Andrews.

— Meu Deus! — exclamou Charley Hoge. — Foi das grandes!

Perto do acampamento, Andrews fez parar o cavalo e desatou a corda do chifre da sela.

— Tem aí uma bela cria — comentou Charley Hoge. — Dará um bom petisco. Vai desmanchá-la ou quer que o faça eu?

— Eu desmancho-a — volveu Andrews, mas não fez qualquer movimento. Ficou a olhar para a cria, cujos transparentes olhos abertos estavam velados por uma inexpressiva camada de poeira.

Passado um momento, Charley Hoge disse:

— Eu ajudo-o a montar um andaime.

Dirigiram-se ambos à zona onde Charley Hoge tinha estado antes a trabalhar na cerca para o gado. De forma aproximadamente hexagonal, estava terminada, mas havia ainda umas quantas estacas de faia espalhadas no solo. Charley Hoge indicou três de igual comprimento, que os dois arrastaram até ao sítio onde estava a cria de búfalo. Enterraram as estacas no chão e dispuseram-nas em forma de tripé. Andrews montou o cavalo e atou as extremidades superiores das estacas umas às outras. Charley Hoge passou a corda, ainda amarrada à cabeça da cria, por cima do tripé e Andrews atou a ponta solta ao chifre da sela. Fez o cavalo recuar até a cria ficar suspensa, com os cascos quase a roçar a erva rasteira. Charley Hoge segurou a corda até Andrews voltar ao tripé e amarrar bem a corda na parte superior, a fim de que o búfalo não tombasse.

O búfalo ficou pendurado e os dois homens examinaram-no por momentos em silêncio. Charley Hoge regressou para junto da fogueira e Andrews ficou postado diante da cria suspensa. Ao longe, ao fundo do vale, distinguiu um movimento: era Schneider e Miller que regressavam. Os cavalos atravessavam o leito do vale a passo rápido. Andrews respirou fundo e enfiou cautelosamente a faca na barriga exposta da cria.

Desta feita trabalhou com mais vagar. Depois de ter feito os golpes na barriga, em torno do pescoço e à volta dos cascos, esfolou meticulosamente a pele de modo a ficar frouxamente pendurada nos flancos do animal. Depois, estendendo as mãos bem acima do dorso, puxou a pele dos costados, que saiu facilmente, trazendo apenas uns quantos pedaços de carne agarrados. Servindo-se da faca, retirou o maior desses pedaços e estendeu a pele sobre a erva, com o lado da carne para baixo, como vira Schneider fazer. Quando recuou, a olhar para a pele, Miller e Schneider vieram até junto dele e desmontaram.

Miller, com a cara mascarrada do fumo da pólvora e manchada de sangue vermelho-acastanhado, olhou para ele apaticamente durante uns instantes, após o que desviou os olhos para a pele estendida no chão. Virou as costas e dirigiu-se a passo trôpego e incerto para o acampamento.

— Parece um trabalho bem feito — comentou Schneider, rodeando a pele. — Não vai ter problemas. Claro que é mais fácil quando a carcaça está pendurada.

— Como é que lhes correram as coisas, a si e ao Miller? — perguntou Andrews.

— Não chegámos sequer a metade. Vamos passar a maior parte da noite a trabalhar.

— Gostava de poder ajudar — declarou Andrews.

Schneider avançou até à cria esfolada e deu-lhe uma palmada na garupa descoberta.

— Uma cria bem gordinha. Vai dar um bom petisco.

Andrews dirigiu-se à cria, ajoelhou e rebuscou entre as facas do estojo. Levantou os olhos para Schneider, mas não o fitou.

— O que é que faço?

— O quê?

— O que é que faço primeiro? Nunca desmanchei um animal.

— Meu Deus! — exclamou Schneider baixinho. — Esqueço-me sempre. Bem, o melhor é tirar-lhe as tripas. Depois já lhe digo como há de cortar.

Charley Hoge e Miller contornaram a pedra alta que servia de chaminé e encostaram-se a ela, à espera. Andrews hesitou por instantes e a seguir pôs-se de pé. Enfiou a ponta da faca no esterno da cria e tateou até encontrar a maciez do estômago. Cerrou os dentes, enterrou a faca na carne e cortou até abaixo. A espessa espiral de intestinos azul e branca, mais grossa que o seu braço, transbordou a impecável linha do corte. Andrews fechou os olhos e empurrou a faca para baixo o mais depressa que conseguiu. Quando se endireitou, sentiu uma coisa quente no peitilho da camisa: uma golfada de sangue escuro e meio coagulado jorrou da cavidade. Derramou-se sobre a camisa e pingou para as calças. Andrews deu um salto para trás. O movimento brusco fez a cria baloiçar vagarosamente na corda e, aos poucos, as grossas tripas do bicho emergiram do amplo corte. Com um baque líquido, pesado e mole, espalharam-se pelo chão; como se fosse uma coisa viva, a orla daquela massa deslizou até Andrews e cobriu-lhe a biqueira das botas.

Schneider soltou uma sonora gargalhada, batendo com a mão na perna.

— Arranque-as! — gritou. — Arranque-as todas antes que comecem a subir por si acima!

Andrews engoliu a saliva espessa que lhe veio à boca. Com a mão esquerda percorreu o grosso e peganhento intestino ao longo da cavidade; viu o antebraço desaparecer no calor húmido da carcaça. Quando a mão esquerda encontrou o extremo dos intestinos, enfiou a outra mão que segurava a faca e cortou cega e desajeitadamente o rijo tubo. Soltou-se um cheiro a podre da comida meio digerida; reteve a respiração e pôs-se a cortar mais desesperadamente com a faca. O tubo separou-se e as entranhas espalharam-se, acumulando-se na parte inferior da carcaça. Com as mãos em concha, levantou as tripas na cavidade até conseguir encontrar a outra ponta; cortou-a e, com movimentos desesperados, arrancou as entranhas da cria, que se derramaram no solo formando um grande monte à volta dos seus pés. Deu uns passos atrás, pálido, respirando ofegantemente pela boca aberta; os braços e as mãos, afastados do corpo, a escorrer sangue, tremiam.

Miller, ainda encostado à pedra que servia de chaminé, gritou a Schneider:

— Vamos lá comer um bocado daquele fígado, Fred.

Schneider acenou afirmativamente e deu uns passos em direção à oscilante carcaça. Imobilizou-a com uma mão e introduziu a outra na cavidade aberta. Sacudiu o braço e trouxe na mão uma grande peça de carne de um roxo-acastanhado. Com uns quantos golpes rápidos da faca, partiu-a ao meio e atirou o pedaço maior a Miller, que o apanhou com ambas as mãos em concha e o apertou contra o peito a fim de não se lhe escapar. A seguir levou-o à boca e deu-lhe uma grande dentada; soltou-se da carne um sangue escuro, que lhe escorreu pelos cantos da boca e gotejou até ao chão. Ainda a sorrir, mastigando devagar, com os lábios vermelhos do sangue, estendeu-o a Andrews.

— Vai um bocadinho? — perguntou, soltando uma risada.

Andrews sentiu um sabor amargo vir-lhe à boca; o estômago apertou-se-lhe num repentino espasmo e os músculos da garganta contraíram-se, sufocando-o. Virou as costas aos dois, afastou-se uns passos, a correr, encostou-se a uma árvore e vomitou, dobrado ao meio. Passados uns momentos, virou-se para eles.

— Acabem vocês — gritou. — Para mim chega.

Sem esperar pela resposta, virou-se de novo e encaminhou-se para a nascente que corria a uns setenta metros do acampamento. Ali chegado, despiu a camisa; o sangue do búfalo começava a ficar empastado na camisola interior. Despiu o resto da roupa o mais depressa que pôde e ficou de pé, na obscuridade do final da tarde, tremendo de frio. Cobria-o desde o peito até abaixo do umbigo a mancha vermelho-acastanhada do sangue do búfalo e, ao despir a roupa, os braços e as mãos tinham roçado outras partes do corpo, deixando manchas em tons vermelho desmaiado a um escarlate-acastanhado. Enfiou as mãos na gélida água da nascente. A água fria coagulou o sangue, que por momentos receou não ser capaz de remover da pele. Depois, porém, começou a desprender-se e a flutuar na água formando uma espécie de gavinhas sólidas; então enxaguou os braços, o peito e o estômago, arfando devido ao frio e forçando a entrada do ar nos pulmões, apesar de esse frio lhe cortar repetidamente a respiração.

Uma vez removidos do corpo nu os últimos salpicos de sangue que conseguia ver, ajoelhou-se no chão e cruzou os braços à volta do corpo; tremia violentamente e a pele adquirira um tom levemente azulado. Pegou na roupa, peça por peça, e mergulhou-a na pequena poça, esfregando-a com quanta força tinha, espremendo bem cada peça e voltando a mergulhá-la várias vezes, até a água ficar barrenta e tingida de vermelho. Finalmente, com pedaços de saibro fino e terra apanhados nas estreitas bordas do charco, esfregou as botas sujas de sangue. Mas o sangue e o muco do búfalo tinham penetrado no couro e não conseguiu remover as manchas. Vestiu de novo as peças molhadas e amarrotadas e regressou ao acampamento. Por essa altura já era quase noite, e quando chegou ao pé da fogueira a roupa estava tesa, do frio.

O búfalo já estava desmanchado; as vísceras, a cabeça, os cascos e os magros e ossudos costados tinham sido varridos do acampamento e espalhados. Num espeto sobre a fogueira, que fumegava e ardia mais do que era devido, estava enfiado um grande naco de carne; ao lado do lume, num quadrado de lona suja, formando uma pilha irregular, via-se o resto da carne. Andrews aproximou-se da fogueira e chegou o corpo ao calor; dos vincos da roupa soltaram-se pequenas linhas de vapor. Nenhum dos homens lhe dirigiu a palavra e ele não olhou diretamente para eles.

Decorridos uns momentos, Charley Hoge tirou uma pequena caixa da tenda coberta com a lona e examinou-a à luz da fogueira; Andrews viu que continha um fino pó branco. Charley Hoge contornou a pedra que servia de chaminé em direção aos restos espalhados do búfalo, murmurando de si para si pelo caminho.

— O Charley foi aos lobos — disse Miller, sem se dirigir a ninguém. — Era capaz de jurar que ele acha que o lobo é o diabo em carne e osso.

— Aos lobos? — Andrews falou sem se voltar.

— Deita-se estricnina em cima de carne crua — elucidou-o Miller. — Se a espalharmos à volta do acampamento e a deixarmos lá ficar uns dias, durante muito tempo não temos de nos preocupar com os lobos.

Andrews virou-se, de forma que as costas recebessem o calor da fogueira; mal se virou, a parte da frente da roupa arrefeceu de repente e ele sentiu o contacto gélido da roupa ainda molhada na pele.

— Mas não é por isso que o Charley o faz — continuou Miller. — Para ele, um lobo morto é como se fosse o próprio diabo liquidado.

Agachado sobre os quadris, Schneider levantou-se e ficou de pé ao lado de Andrews, cheirando esfomeado a carne, que começava a enegrecer nas bordas.

— Uma peça grande demais — decretou. — Nem daqui a uma hora está assada. Uma pessoa que passou o dia a esfolar fica cheia de fome e precisa de comer para continuar a esfolar pela noite fora.

— Não vai ser assim tão mau — disse Miller. — Há luar e podemos descansar um bocado até a carne estar assada.

— Se vier mais frio — tornou Schneider —, ainda vamos ter de tirar peles tesas.

Charley Hoge surgiu à vista depois de contornar a pedra que servia de chaminé, que agora se recortava, escura, contra o céu ainda iluminado. Voltou a colocar cuidadosamente a caixa de estricnina na tenda, limpou as mãos às calças e inspecionou o assado. Fez um aceno afirmativo e colocou a cafeteira na borda do lume, onde algumas brasas brilhavam mortiçamente. Não tardou que o café fervesse; os homens que esperavam pela comida sentiram, misturados, o aroma do café e o intenso cheiro da carne, cujo suco ia pingando no lume. Miller sorriu, Schneider praguejou indolentemente, e Charley Hoge soltou um risinho abafado.

Instintivamente, recordando a sua repugnância inicial perante a visão e o odor do búfalo, Andrews virou as costas àqueles cheiros penetrantes, mas de um momento para outro apercebeu-se de que eles lhe eram agradáveis. Sentiu apetite pela comida que estava a ser preparada. Pela primeira vez desde que regressara do banho frio na nascente, virou-se e olhou para os outros.

— Acho que não fiz grande obra a desmanchar o búfalo — disse acanhadamente.

Schneider riu-se.

— Esforçou-se o mais que pôde, Mr. Andrews.

— Não é coisa que nunca se tenha visto — interveio Miller. — Já vi quem fizesse pior.

A lua, quase cheia, ia avançando sobre a cordilheira a nascente; à medida que o lume ia esmorecendo, a sua pálida luz azulada alastrava pelas árvores e tocava a superfície da roupa dos homens, de forma que o intenso fulgor vermelho das brasas se casava com a fria luz clara nos sítios onde as duas cores contactavam nos seus corpos. Permaneceram em silêncio até a lua surgir por entre as árvores. Miller avaliou a distância da lua e disse a Charley Hoge que tirasse a carne do espeto, assada ou não. Charley Hoge cortou grandes nacos de carne mal assada, que colocou nos respetivos pratos. Miller e Schneider pegaram na carne com as mãos e cortaram-na com os dentes, segurando-a por vezes na boca ao mesmo tempo que sacudiam os dedos, ao queimarem-se. Andrews cortou a carne com uma das suas facas de esfolar; era dura mas suculenta, e tinha um forte sabor a carne de vaca, se bem que meio crua. Os homens acompanharam-na com goladas de café amargo e escaldante.

Andrews comeu apenas parte da carne que Charley Hoge lhe servira. Poisou o prato e a caneca ao lado da fogueira e deitou-se no saco-cama, que arrastou para perto do lume, ficando a ver os outros a empanturrarem-se, em silêncio, de carne e café. Deram-se conta do que Charley Hoge lhes tinha servido e repetiram. Quanto a Charley Hoge, comeu quase com delicadeza uma delgada fatia de carne assada, que cortou em pedaços muito pequenos. Acompanhava os bocadinhos que comia com frequentes goles de café, ao qual tinha adicionado uma boa dose de uísque. Quando Miller e Schneider acabaram o último pedaço do cachaço assado, o primeiro estendeu a mão para a botija de Charley Hoge, bebeu um longo trago e passou a botija a Schneider, que a empinou e deixou o álcool gorgolejar pela garganta; depois de beber vários goles, passou a botija a Andrews, que levou o bocal aos lábios fechados durante alguns segundos antes de beber um pequeno e cauteloso trago.

Schneider suspirou, espreguiçou-se e deitou-se de barriga para o ar diante da fogueira. Falou guturalmente, numa voz que era um ronco suave e lento:

— Uma barrigada de carne de búfalo e uma boa golada de uísque. A única coisa que agora faz falta é uma mulher.

— Não há pecado nenhum na carne de búfalo nem no uísque de milho — observou Charley Hoge. — Já numa mulher, é outra conversa. É uma tentação da carne.

Schneider bocejou e voltou a espreguiçar-se no chão.

— Lembra-se daquela putéfia em Butcher’s Crossing? — olhou para Andrews. — Como é que ela se chama?

— Francine — respondeu Andrews.

— Isso, Francine. Meu Deus, é uma puta bem bonita. Não estava um bocado embeiçada por si, Mr. Andrews?

Andrews engoliu em seco e olhou para o lume.

— Não dei por isso.

Schneider riu-se.

— Não me diga que não reparou. Meu Deus, da maneira como ela olhava para si podia ter ido com ela praticamente de graça… Aliás, pensando bem, mesmo de graça. Ela disse que não estava a trabalhar… Como é que foi, Mr. Andrews? Foi bom?

— Deixe-se disso, Fred — interveio calmamente Miller.

— Quero saber como é que foi — insistiu Schneider. Soergueu-se sobre um cotovelo; virou para Andrews o rosto redondo, tingido de vermelho pelo fulgor mortiço das brasas; animava-o um sorriso tenso que não se apagava. — Toda macia e branquinha — disse roucamente, lambendo os lábios. — Que fez o senhor? Conte-me lá o que…

— Já chega, Fred — atalhou secamente Miller.

Schneider olhou raivosamente para Miller.

— O que é que foi? Tenho o direito de falar, ou não?

— Sabe muito bem que aqui não se deve falar de mulheres — disse Miller. — Pensar no que não se pode ter estraga o apetite.

— Jezabéis — declarou Charley Hoge, enchendo outra caneca de uísque, que destemperou com um pouco de café. — Obras do demónio.

— Não se sente a falta daquilo em que não se pensa — sentenciou Miller. — Vamos. Toca mas é a tratar daquelas peles enquanto ainda temos luz.

Schneider pôs-se de pé e sacudiu-se como faria um animal depois de ter estado mergulhado em água. Riu-se, aclarando a garganta.

— Que raio — disse —, estava só a divertir-me um bocado com Mr. Andrews. Eu sei-me dominar.

— Pronto — volveu Miller. — Toca a andar.

Afastaram-se os dois da fogueira para o local em que os cavalos estavam amarrados a uma árvore. Momentos antes de saírem do mortiço círculo de luz da fogueira, Schneider voltou-se e sorriu para Andrews.

— Mas a primeira coisa que vou fazer quando voltarmos a Butcher’s Crossing é engatar uma rapariguinha alemã por um par de dias. Se estiver com muita pressa, Mr. Andrews, é capaz de ter que ir arrancar-me de lá.

Andrews aguardou até ouvir os dois homens afastarem-se a cavalo e ficou a vê-los cavalgar pelo pálido leito do vale, até as suas ondulantes silhuetas se fundirem com as elevações mais escuras da cordilheira a poente. Nessa altura enfiou-se no saco-cama e fechou os olhos; permaneceu à escuta durante muito tempo, enquanto Charley Hoge lavava os utensílios que usara para cozinhar e arrumava o acampamento. Decorrido um pedaço fez-se o silêncio. Na escuridão, Andrews correu a mão pela cara; era áspera e estranha ao tato; a barba, que constantemente o surpreendia sentir no rosto, confundia-lhe as mãos e tornava-lhe as feições inusitadas. Perguntava a si mesmo que aspeto teria; perguntava a si mesmo se Francine o reconheceria se pudesse vê-lo agora.

Desde a noite em que subira ao seu quarto em Butcher’s Crossing, varrera-a da ideia. Porém, ao ouvir Schneider mencionar o seu nome há pouco, ela avassalara-lhe o pensamento; não era capaz de arredar a sua imagem do espírito. Via-a como a vira naqueles últimos instantes no quarto, antes de ter virado as costas e fugido; visualizando-a mentalmente, revolvia-se intranquilo no rude leito.

Por que razão tinha fugido? De onde viera aquele entorpecimento dentro de si que lhe dera a saber que tinha de fugir? Recordou a náusea na boca do estômago, a repugnância que se seguira imediatamente ao afluxo vital do sangue quando a vira nua, de pé, a oscilar levemente, como que suspensa do desejo que ele sentia, diante dele.

Pouco antes de o sono se abater sobre ele, estabeleceu uma ténue ligação entre o virar as costas a Francine naquela noite em Butcher’s Crossing e o virar as costas ao búfalo esventrado nesse mesmo dia, ali nas Montanhas Rochosas do Colorado. Percebeu que se sentira nauseado e virara as costas não devido a uma efeminada náusea perante o sangue, o mau cheiro e as víceras a saírem; percebeu que se sentira nauseado e virara as costas devido ao choque de ver o búfalo, momentos antes orgulhoso, nobre e repleto da dignidade da vida, agora hirto e indefeso, feito um monte de carne inerte, destituído de si próprio, ou da sua noção de si próprio, a baloiçar grotesca e zombeteiramente diante dele. Não era ele próprio; ou não era o ser que ele imaginara que fosse. Esse ser fora assassinado; e nesse assassínio ele sentira a destruição de algo dentro de si próprio, que não conseguira enfrentar. Por isso lhe virara as costas.

Mais uma vez, na escuridão, as suas mãos saíram debaixo das cobertas e passaram pelo rosto, procuraram a saliência fria e áspera da testa, seguiram o nariz, percorreram os lábios gretados e afagaram a barba crescida, buscando as feições. Quando o sono o venceu tinha ainda a mão poisada no rosto.