Capítulo 2

Virou-se na escuridão e sentiu por baixo do corpo os lençóis molhados pela sua própria transpiração. Acordou repentinamente de um sono pesado e por momentos não soube onde estava. Ouvia ao lado dele o som lento e regular de uma respiração áspera. Estendeu a mão, que tocou a carne tépida e ali ficou, subindo e descendo levemente conforme a respiração dela a fazia mover-se.

Will Andrews estava com Francine há cinco dias e cinco noites no pequeno quarto acanhado, saindo apenas para comer ou beber ou comprar alguma roupa no desfalcado sortido da Loja de Tecidos Bradley. Depois da primeira noite com Francine perdera por completo a noção do tempo, mais ou menos como lhe acontecera nas montanhas, durante a tempestade, no seu abrigo de neve e peles de búfalo. No quarto obscurecido, com uma única janela que se mantinha sempre de cortinas corridas, a manhã tornava-se indistinguível da tarde, e desde que o candeeiro se mantivesse aceso era-lhe difícil diferençar o dia da noite.

Mergulhou naquele mundo restrito de crepúsculo perpétuo. Raramente falava com Francine; apertava-a contra si e só se ouviam um ao outro na respiração acelerada e nos gemidos inarticulados, até que por fim ele se persuadiu de que tinha encontrado a sua única existência ali. Para lá das quatro paredes que os rodeavam só conseguia imaginar um vazio que era uma luminosidade e um ruído que o constrangiam ameaçadoramente. Se olhasse durante muito tempo e com demasiada fixidez, dir-se-ia que as próprias paredes o apertavam e os objetos que havia à vista — o sofá vermelho, a carpete, as bugigangas espalhadas pelas mesas — ameaçavam confusamente o conforto que sentia na semiobscuridade em que vivia. Despido na escuridão ao lado do corpo passivo de Francine, de olhos fechados, parecia flutuar, leve, dentro de si próprio; e mesmo no sono desperto partilhava alguma da qualidade do sono profundo que encontrava nos momentos depois de fazer amor com Francine.

Aos poucos acabou por encarar as suas frequentes e desesperadas relações amorosas com Francine como se fossem consumadas por outra pessoa. Dir-se-ia que de longe e cego, observava a sua pessoa e as suas sensações ao satisfazer as suas necessidades num corpo ao qual, sem qualquer significado, associava um nome. Por vezes, deitado ao lado de Francine, percorria com os olhos o seu próprio corpo pálido como se nada tivesse que ver com ele; tocava no peito, onde os pelos finos, como uma penugem, se distribuíam, esparsamente encaracolados, pela pele branca, e admirava-se com a sensação da sua mão a roçar levemente sobre a pele. Ao seu lado, nesses momentos, Francine parecia não ter nenhuma afinidade com ele; era uma presença que satisfazia uma necessidade que ele mal sabia que tinha, até ela aparecer. Por vezes, em peso sobre ela e perdido na obscuridade da sua paixão, surpreendia-se ao encontrar no seu interior certas sensações das quais nunca se apercebera; e quando abria os olhos, ao descobrir debaixo dele os olhos de Francine, abertos, rasgados e insondáveis, sentia-se mais uma vez quase surpreendido por ela estar ali. Depois recordava-se da expressão dos olhos dela e perguntava a si mesmo em que estaria ela a pensar, o que estaria a sentir, nos momentos íntimos da sua paixão.

Estas interrogações fizeram com que finalmente desviasse a mente e a atenção do centro da sua pessoa e se concentrasse em Francine. Observava-a discretamente quando andava pelo quarto sombrio, escassamente coberta pelo roupão cinzento, ou quando estava nua na cama, ao seu lado. Sem lhe tocar, deixava os olhos vaguearem pelo seu corpo, pelo rosto redondo e impávido esparsamente emoldurado pelo cabelo loiro que nas trevas parecia escuro nos lençóis brancos, pelos seios fartos, delicadamente rendilhados por uma intrincada rede de veias azuis, pelo ventre suavemente arredondado, que desaguava abaixo do delicado e claro púbis iluminado pelos ténues raios de luz que se infiltravam no quarto, pelas firmes e compridas pernas que iam adelgaçando até aos pés miúdos. Por vezes adormecia serenamente a olhar para ela e acordava com igual serenidade, novamente com os olhos poisados nela, mas poisados nela sem a reconhecer, de modo que lhe perscrutava novamente o rosto e as formas como se nunca a tivesse visto antes.

Perto do final da semana apoderou-se dele a inquietude. Não se satisfazendo já em ficar apaticamente deitado no escuro e tépido quarto, saía cada vez mais amiúde para vaguear pela única rua de Butcher’s Crossing. Raramente falava com quem quer que fosse; nunca se demorava mais que uns minutos em qualquer lugar em que parasse. Bastava-lhe deixar a luz do sol infiltrar-se nele, piscando os olhos perante a luminosidade. Uma vez foi ao Hotel Butcher’s para ir buscar o saco-cama, pagar a sua curta estada e informar o empregado de que não voltaria; outra vez vagueou pela rua fora, para oeste da vila, e pôs-se a descansar debaixo do maciço de choupos, contemplando a zona cheia de fardos de peles que fora dantes o local de trabalho de McDonald; entrou por diversas vezes no Bar Jackson e bebeu uma caneca de cerveja tépida. Certa vez, ao balcão, viu Charley Hoge sentado a uma mesa do fundo, sem outra companhia além de uma garrafa de uísque e um copo meio cheio. Embora Andrews tivesse ficado durante alguns minutos ao balcão, a beberricar a sua cerveja, Charley Hoge não deu mostras de o ter visto, conquanto o seu olhar tivesse passado diversas vezes por ele.

Andrews atravessou o bar e sentou-se a uma mesa; fez um aceno a Charley Hoge e dirigiu-lhe uma saudação.

Charley Hoge olhou inexpressivamente para ele e não respondeu.

— Onde para o Miller? — perguntou Andrews.

— Miller? — Charley Hoge abanou a cabeça. — Onde está sempre, na nossa cabana ao pé do rio.

— Está muito zangado com aquilo?

— Com o quê? — perguntou Charley Hoge.

— Com aquilo das peles — elucidou-o Andrews. Poisou o copo quase vazio na mesa diante dele e rodou-o ociosamente entre as mãos. — Deve ter sido um golpe duro para ele. Acho que nunca percebi o que tudo isto significava para ele.

— Peles? — perguntou vagamente Charley Hoge, piscando os olhos. — O Miller está bem. Está na cabana, a descansar. Não tarda, está aí a aparecer.

Andrews começou a falar, mas depois olhou bem para os olhos inexpressivos que se fixavam nele.

— Você está bem, Charley? — perguntou.

Pelo rosto de Charley Hoge perpassaram pequenas rugas de perplexidade; mas logo a sua expressão ficou desanuviada e ausente.

— Claro que sim. Estou bem. — Acenou rapidamente com a cabeça. — Ora vejamos. Você é o Will Andrews, não é?

Andrews não conseguia desviar o olhar dos olhos que pareciam tornar-se maiores ao fitarem-no.

— O Miller anda à sua procura — continuou Charley Hoge, numa voz monótona e esganiçada. — O Miller diz que vamos todos a um sítio qualquer, para matar búfalos. Conhece um sítio no Colorado. Acho que quer falar consigo.

— Charley — disse Andrews; tremeu-lhe a voz e apertou as mãos com força à volta do copo para as impedir de tremer. — Acalme-se, Charley.

— Vamos partir numa expedição — prosseguiu Charley, na sua voz cantante. — Você, eu e o Miller. O Miller conhece um esfolador que podemos ir buscar a Ellsworth. Vai correr tudo bem. Eu já não tenho medo de ir até lá. O Senhor providenciará. — Sorriu e acenou com a cabeça, continuando a fazê-lo na direção de Andrews, embora tivesse baixado os olhos para o copo de uísque.

— Não se lembra, Charley? — perguntou Andrews com voz cava. — Não se lembra de nada?

— Do quê? — inquiriu Charley Hoge.

— Das montanhas. Da caçada. Do Schneider…

— É como ele se chama — disse Charley Hoge. — Schneider. É o esfolador, de Ellsworth, que o Miller vai arranjar.

— Não se lembra? — perguntou Andrews, com voz entrecortada. — O Schneider morreu.

Charley Hoge olhou para Andrews, abanou a cabeça e sorriu; apareceu-lhe um pouco de saliva no lábio inferior, que se foi avolumando e escorreu pela penugem grisalha que lhe guarnecia o queixo.

— Ninguém morre — disse baixinho. — O Senhor providenciará.

Durante mais uns instantes, Andrews perscrutou os olhos de Charley Hoge; mortiços e azuis, eram como pedaços de céu vazio refletidos num charco sujo; não havia nada por detrás deles, nada que impedisse o olhar de Andrews de continuar cravado neles. Com um sentimento próximo do horror, Andrews recuou e sacudiu a cabeça num gesto brusco. Levantou-se da mesa e afastou-se; sem que o seu olhar vago se alterasse, Charley Hoge não deu quaisquer mostras de se ter apercebido do movimento de Andrews. Este deu meia volta e saiu rapidamente do bar. No passeio, à luz clara do dia, a sensação permanecia: sentia as pernas fracas e tremiam-lhe as mãos. Rápida e inseguramente, subiu a rua, mudou de direção e subiu a escada lateral do edifício do Bar Jackson que conduzia ao quarto de Francine.

Abriu muito os olhos na escuridão do quarto; vinha ainda ofegante. Francine, deitada na cama, soergueu-se num cotovelo e olhou para ele; com esse movimento, o largo roupão cinzento abriu-se a descaiu-lhe um seio para cima do antebraço, pálido contra o tecido cinzento; quase com brusquidão, ele arredou-lhe o roupão do corpo e deixou as mãos percorrerem, veloz e desesperadamente, o corpo dela. Um leve sorriso animou o rosto de Francine; cerrando as pálpebras, estendeu as mãos para Andrews, começando atabalhoadamente a despi-lo e puxando-o para cima dela.

Mais tarde, deitado junto dela, o tumulto que havia dentro de si aquietou-se; tentou falar-lhe do encontro com Charley Hoge e da sensação de horror que esse encontro suscitara no seu íntimo. Procurou fazer-lhe compreender que isso não se devia tanto à noção de que aquilo que Charley Hoge lhe revelava num olhar cego e envolvente era algo que todos eles — Miller, Charley Hoge, Schneider e ele próprio — sempre tinham tido dentro de si. Tratava-se de alguma coisa — tentou dizer-lhe — que McDonald dissera, à luz bruxuleante de uma candeia, na grande albergaria deserta, na noite em que tinham regressado a Butcher’s Crossing. Era qualquer coisa que tinha visto no rosto de Schneider quando ele ficara teso e imóvel no meio do rio, assim que o casco do cavalo lhe abrira o crânio. Era qualquer coisa…

Nos lábios carnudos e descorados de Francine pairou a débil insinuação de um sorriso. A rapariga acenou com a cabeça e a sua mão deslizou suave e apaziguadoramente pelo peito nu de Andrews.

Era qualquer coisa, continuou ele, falando em frases entrecortadas que não diziam o que pretendia, era qualquer coisa que ele sentira até em si mesmo, instante após instante, durante a longa marcha pela planície, no decurso da chacina dos búfalos, quando os grandes animais estremeciam e caíam por terra, no quente e sufocante mau cheiro que se soltava ao serem esfolados, no panorama da brancura durante o nevão e na visão da ausência de rasto a seguir à tormenta. Estaria dentro de todos? — perguntava a si mesmo, sem dizer essas palavras. Estaria oculta, à espreita, dentro de todos, à espera de devorar e estraçalhar, até restar apenas o vazio que vira nos olhos azuis inexpressivos com que Charley Hoge olhava agora para tudo? Ou aguardaria fora, agachada como um lobo cinzento atrás de um penedo, para saltar súbita e aterradoramente, sem nenhuma razão, sobre quem quer que por ali passasse? Ou, sem o saber, seria a própria pessoa que buscava essa forma de terror e por ela passava, na obscura e perversa esperança de que saltasse? Naquele fugaz momento no rio, teria sido o tronco lascado a procurar a barriga do cavalo de Schneider, e o casco do cavalo a buscar o crânio de Schneider? Ou seria, pelo contrário, Schneider que tinha ido justamente à procura da forma cinzenta e a encontrara? O que significava aquilo? — queria ele saber. Onde estivera?

Virou-se na cama. Ao seu lado, Francine mergulhara num sono leve; respirava regularmente pelos lábios entreabertos e tinha as mãos frouxamente fechadas ao longo do corpo. Ele levantou-se silenciosamente, atravessou o quarto, baixou o pavio do candeeiro e soprou pela chaminé, apagando a luz. Pela janela única tapada por uma cortina, ao fundo, coava-se uma derradeira luz cinzenta; lá fora estava a ficar escuro. Voltou para a cama e deitou-se devagar ao lado de Francine, olhando para ela.

O que significava aquilo? — voltou a interrogar-se. Mesmo isto, este — hesitava em chamar-lhe amor — anseio por Francine, o que significava? Pensou novamente em Schneider; e de repente imaginou Schneider no seu lugar, vivo, deitado ao lado de Francine. Sem raiva nem ressentimento viu-o ali deitado, e viu-o estender a mão e acariciar o seio de Francine. Sorriu; porque sabia que Schneider não se teria questionado, como ele se questionava; não se teria interrogado, não teria permitido que um olhar de Charley Hoge suscitasse dentro dele essas dúvidas e esses receios. Com uma espécie de tosca e azeda amizade, teria tido o seu prazer com Francine e seguido o seu caminho, sem voltar a pensar nela de nenhuma maneira especial.

Tal como Francine não voltaria a pensar nele. E, acrescentou subitamente, tal como Francine provavelmente não voltaria a pensar nele, Will Andrews, que estava deitado ao lado dela.

Durante o sono, num murmúrio, Francine pronunciou uma palavra que ele não conseguiu entender; sorriu, suspendeu a respiração, respirou fundo e mexeu-se um pouco ao seu lado.

Ainda que não quisesse que esse pensamento lhe ocorresse, sabia que também ele, tal como Schneider, a deixaria e seguiria o seu caminho, embora, ao contrário de Schneider, fosse pensar nela, recordá-la, de uma maneira que ainda não conseguia predizer. Deixá-la-ia e não a conheceria; nunca a reconheceria. Agora a escuridão do quarto era quase total; mal conseguia ver-lhe o rosto. De olhos abertos no escuro, deslizou a mão pelo braço dela até lhe encontrar a mão, e deixou-se ficar deitado ao lado dela. Pensou nos homens que tinham conhecido o seu desejo e a sua carne, como ele os conhecera, sem conhecerem mais nada; pensou nesses homens sem ressentimento. Na escuridão não tinham rosto, não falavam nem respiravam, como ele. Decorrido muito tempo, com a mão ainda a agarrar frouxamente a de Francine, adormeceu.

Acordou de súbito sem saber o que o fizera despertar. Piscou os olhos na escuridão. Ao fundo do quarto surgiu um fulgor indistinto na janela coberta pelo cortinado, que desapareceu e voltou a tremeluzir. Adensado pela distância, ouviu-se um grito no quarto; na rua soaram os cascos de um cavalo. Andrews levantou-se da cama e ficou de pé por momentos, sacudindo bruscamente a cabeça. Vindo da rua, ouviu-se outra explosão de vozes excitadas; soou o martelar de pés nas tábuas do passeio. Localizou a roupa às escuras e vestiu-a apressadamente. Pôs-se à escuta de outros sons; ouviu a respiração calma e regular de Francine. Saiu velozmente do quarto, fechando a porta devagar atrás de si, e atravessou o corredor em bicos dos pés em direção ao patamar do exterior do edifício.

A poente, na direção do rio, claramente visíveis por cima dos atarracados edifícios de Butcher’s Crossing, erguiam-se labaredas na escuridão. Por momentos, Andrews agarrou-se ao corrimão da escada, incrédulo. O incêndio vinha da cabana de McDonald. Ateado por uma fresca brisa de oeste, iluminava a alta moita de choupos que ficava do outro lado da estrada, de tal modo que os troncos cinzento-claros e a folhagem verde-escura se desenhavam nitidamente contra a escuridão que os circundava. O fogo iluminava o seu próprio fumo, que se elevava em grossas espirais negras e se dispersava e era impelido pela brisa na direção da vila. Andrews sentiu um cheiro fétido e acre arder-lhe nas narinas. O som de passos a correr lá em baixo arrancou-o à imobilidade; desceu velozmente as escadas, alcançou tropegamente o passadiço e correu pela estrada de terra em direção ao incêndio.

Mesmo no ponto em que o trilho das carroças abandonava a estrada, imediatamente a seguir ao maciço de choupos, assaltou-o o bafo quente do fogo. Parou ali, nos sulcos paralelos de terra escalvada, distintamente visíveis sob o clarão vermelho-amarelado do incêndio; respirava ofegantemente da corrida, mas apesar disso os densos resquícios do sono ainda não se tinham dissipado da sua mente. Espalhadas num amplo semicírculo irregular à volta da cabana em chamas estavam quinze ou vinte pessoas, imóveis e tensas, recortadas com nitidez contra o fulgor das labaredas. Isoladas ou em pequenos grupos de duas ou três pessoas observavam, sem gritar e sem se moverem; só o denso e sonoro crepitar das chamas quebrava a quietude da noite, e só as grandes pulsações do fogo agitavam as sombras que os homens projetavam atrás de si. Andrews esfregou os olhos, que lhe ardiam da névoa que ia caindo das rodopiantes volutas de fumo, e correu para os grupos de pessoas. Em plena corrida, o calor intenso obrigou-o a desviar a cabeça para o lado, fazendo-o colidir com um dos pequenos grupos e dar um encontrão a um dos espectadores. O homem contra o qual chocou não olhou para ele; tinha a boca aberta e os olhos cravados nas enormes chamas, cuja luz se projetava no seu rosto, tingindo-o de carregadas e caprichosas tonalidades de vermelho.

— Que foi que aconteceu? — perguntou Andrews, arquejante.

Os olhos do homem não se moveram e dos seus lábios não saiu nenhum som. Limitou-se a abanar a cabeça.

Andrews perscrutou as outras faces e não viu nenhuma que reconhecesse. Deslocava-se entre as pessoas, examinando os rostos que pareciam máscaras distorcidas por efeito da luz saltitante.

Quando chegou ao pé de Charley Hoge, encolhido diante do calor e da luz e contudo agachado como se fosse saltar, quase não o reconheceu. Charley Hoge tinha a boca muito aberta e de lado, como que paralisada num grito de terror e êxtase; os olhos, a lacrimejar por causa do fumo, estavam arregalados e não pestanejavam. Andrews conseguiu ver neles o reflexo em ponto pequeno do incêndio, quase parecendo que era ali, no interior dos olhos de Charley Hoge, que o fogo grassava.

Andrews agarrou-o pelos ombros e sacudiu-o.

— Charley! O que foi? Como é que isto começou?

Charley Hoge esquivou-se ao seu aperto e deu precipitadamente alguns passos para trás.

— Deixe-me em paz — rouquejou, com os olhos ainda presos na visão que tinha diante de si. — Deixe-me em paz.

— Que foi que aconteceu? — voltou a perguntar Andrews.

Por instantes, Charley Hoge voltou-se para ele, desviando os olhos do incêndio; ensombrados pelas sobrancelhas, os seus olhos eram mortiços e vazios.

— O fogo — disse. — O fogo, o fogo.

Andrews principiou a abaná-lo de novo, mas depois parou, deixando as mãos levemente poisadas nos ombros de Charley Hoge. Soltou-se da multidão um murmúrio, baixo mas intenso, que ia aumentando em concerto por cima do silvo e da crepitação das chamas; mais do que ver, sentiu um ligeiro impulso para diante das pessoas que tinha à sua volta.

Virou-se na direção desse movimento. Por momentos ficou ofuscado pela intensidade das labaredas — azuis, brancas e amarelo-alaranjadas, sulcadas de laivos negros — e semicerrou os olhos diante daquele fulgor. Depois, entre os fardos dispersos de peles de búfalo, por cima dos quais as chamas se retorciam, compactas, distinguiu um furioso movimento sombrio. Era Miller, num cavalo que se empinava e relinchava de terror frente às chamas, mas que a pura força de Miller conseguia dominar. Com furiosos puxões das rédeas, que cravavam o freio bem fundo na boca ensanguentada do cavalo, e com fortes golpes das esporas contra os seus flancos, Miller obrigava o cavalo a correr por entre os fardos dispersos. Durante alguns momentos, Andrews ficou boquiaberto, a observar sem compreender; insensatamente, Miller precipitava-se em pleno incêndio e a seguir deixava o cavalo afastar-se, para logo disparar de novo em frente.

Andrews virou-se para Charley Hoge.

— O que está ele a fazer? Ainda se mata. Ele…

A boca de Charley Hoge ergueu-se num sorriso ausente.

— Olhe — disse. — Olhe para ele.

Andrews viu, sem conseguir compreender, mas depois apercebeu-se do que Miller estava a fazer. Obrigando o cavalo a arremeter contra os fardos empilhados junto à cabana a arder, ia-os empurrando de modo a precipitarem-se na boca aberta do incêndio. Forçava o cavalo a avançar o peito contra os fardos que estavam espalhados por terra e espicaçava-lhe os flancos sem trégua, a fim de impelir o fardo pelo terreno fora até à orla do holocausto.

Soltou-se um grito da garganta seca de Andrews.

— Louco! — exclamou. — Está doido! Ainda se mata! — e fez menção de avançar.

— Deixe-o em paz — atalhou Charley Hoge. A voz dele era aguda e clara e repentinamente desabrida. — Deixe-o em paz — repetiu. — É o incêndio dele. Deixe-o em paz.

Andrews deteve-se e encarou Charley Hoge.

— Quer dizer… que foi ele que o ateou?

Charley Hoge acenou afirmativamente.

— É o incêndio do Miller. Deixe-o em paz.

Após uma primeira reação em acudir, os habitantes da vila não se mexiam. Agora, estavam imóveis e observavam Miller a galopar temerariamente por entre os fardos fumegantes. Andrews deixou descair o corpo para diante, débil e impotente. Tal como os outros, ficou a assistir à enlouquecida cavalgada de Miller.

Depois de ter arrastado os fardos mais próximos da cabana para o fogo, Miller afastou-se um pouco das chamas, saltou do cavalo e prendeu as rédeas à lança de uma das carroças abandonadas que juncavam o terreno. A sua figura sombria, desprovida de formas sob as extremidades da luz do fogo, correu precipitadamente para um dos fardos tombados perto da carroça. Baixou-se e, na penumbra, tornou-se indistinguível do fardo. Endireitou-se e as formas tornaram-se mais distintas; o fardo elevou-se ao mesmo tempo que ele se endireitava, dando aos homens que observavam a cena a impressão de ser um enorme apêndice dos seus ombros. Por instantes, oscilou por baixo daquela forma gigantesca; depois lançou-se em frente e desatou a correr, parando abruptamente ao lado da carroça, de forma que a carga se lhe soltou dos ombros e caiu sobre a carroça, que estremeceu por momentos sob o impacto. Miller correu várias vezes à volta da carroça, juntando os fardos, a cambalear sob o seu peso, correndo aos ziguezagues e de joelhos fletidos em direção ao veículo.

— Meu Deus! — exclamou um dos habitantes da vila atrás de Andrews. — Aqueles fardos devem pesar cerca de cem a duzentos quilos!

Ninguém mais falou.

Depois de ter atirado o quarto fardo para cima da carroça, Miller voltou para junto do cavalo, soltou um pedaço de corda do chifre da sela e passou-o pelo vértice do triângulo de carvalho que prendia a lança da carroça à armação. Com a ponta da corda na mão, regressou ao cavalo, montou-o e enrolou a ponta da corda, com duas voltas, no chifre da sela. Deu um grito ao cavalo e enterrou-lhe violentamente as esporas nos flancos. O cavalo avançou impetuosamente; a corda retesou-se e, com a tensão, a lança da carroça levantou-se. Miller voltou a gritar e bateu com a palma da mão na garupa do cavalo; o som da palmada sobrepôs-se ao silvo e ao rumor do fogo. As rodas moveram-se devagar, chiando nos eixos enferrujados. Miller voltou a gritar e cravou as esporas no cavalo. A carroça moveu-se com maior rapidez; o cavalo respirava com sonoros gemidos e os cascos enterravam-se na terra seca. Depois carroça e cavalo, como que disparados por uma catapulta, inclinaram-se na terra plana. Miller gritou uma vez mais e conduziu o cavalo e a carroça a direito contra as labaredas que se erguiam da cabana e das peles empilhadas. Um momento antes do que parecia ser homem e cavalo a precipitarem-se em pleno vermelho-vivo do fogo, Miller fez a montada guinar subitamente para o lado, desenrolando a corda do chifre da sela num rápido movimento, de forma que a carroça, solta, se precipitou, devido à sua própria inércia, no âmago do incêndio, projetando faíscas numa área de trinta metros de diâmetro. Bastante tempo depois de a carroça e a sua carga de peles embaterem contra ele, o incêndio escureceu, como se a fúria do ataque o tivesse extinguido; depois, quando a carroça pegou fogo, recomeçou a arder ainda com mais fúria e a gente da vila recuou uns passos perante a intensidade do calor.

Atrás de si, Andrews ouviu o som de passos a correr e uma exclamação que era quase um grito, estridente e animal na sua intensidade. Atordoadamente, virou-se. McDonald, com as abas da sobrecasaca preta a esvoaçarem, os braços a agitarem-se descontroladamente no ar e o cabelo escasso desgrenhado, corria direito ao monte de gente da vila que se encontrava à volta do incêndio — mas os seus olhos estavam desvairadamente fixados para lá deles, cravados no escritório em chamas e nas peles que ardiam lentamente. Irrompeu pelo meio do grupo de homens e teria continuado a correr para lá deles, não fosse Andrews tê-lo agarrado e retido.

— Meu Deus! — exclamou McDonald. — Está a arder! — olhou tresloucadamente em volta, fitando os homens silenciosos e imóveis. — Porque é que ninguém faz nada?

— Não podem fazer nada — disse Andrews. — Deixe-se ficar aqui sossegado, senão ainda acontece uma desgraça.

Nessa altura, McDonald viu Miller a arrastar outra carrada de peles para o círculo em chamas cada vez mais alargado. Voltou-se inquisitivamente para Andrews.

— É o Miller — gritou. — Que está ele a fazer? — E de seguida, ainda a olhar para Andrews, descaiu-lhe o maxilar e os olhos arregalaram-se-lhe por baixo das sobrancelhas encrespadas. — Não — disse roucamente McDonald, abanando a cabeça como um animal ferido, de um lado para outro. — Não, não. Miller. Foi ele…?

Andrews disse que sim com a cabeça.

Da garganta de McDonald soltou-se outro grito, quase de paroxismo. Libertando-se de Andrews, com as mãos enclavinhadas como maças sobre a cabeça, correu pelo campo a arder na direção de Miller. Montado no seu cavalo, Miller virou-se para o enfrentar; o seu rosto enegrecido pelo fumo exibiu um largo sorriso triste. Esperou que McDonald estivesse quase ao pé dele, de punhos impotentemente erguidos para atacar; nessa altura enterrou as esporas nos flancos do cavalo, esquivando-se de tal forma que McDonald acertou no ar. Fez o cavalo parar uns metros para lá do sítio onde tinha aguardado; McDonald deu meia volta e correu novamente direito a ele. Agora a rir, Miller esporeou o cavalo e, mais uma vez, os punhos de McDonald só encontraram o vazio. Durante uns três minutos os dois homens moveram-se espasmodicamente como marionetas no espaço aberto diante do grande incêndio, McDonald, quase soluçando por entre os dentes amarelos cerrados, perseguindo obstinada e inutilmente Miller, e este, com os lábios distendidos numa careta sem graça, sempre ligeiramente fora do seu alcance.

Depois, repentinamente, McDonald imobilizou-se; deixou pender frouxamente os braços ao longo do corpo, endereçou um olhar sereno, quase contemplativo, a Miller e abanou a cabeça. Deixou descair os ombros; de joelhos frouxos, virou as costas e dirigiu-se até ao local onde Andrews e Charley Hoge se encontravam. Tinha o rosto sulcado de fuligem e uma das sobrancelhas chamuscada no sítio em que uma fagulha a atingira.

— Ele não sabe o que faz, Mr. McDonald — disse Andrews. — Parece que enlouqueceu.

McDonald acenou afirmativamente.

— Parece que sim.

— E além disso — continuou Andrews —, como o senhor disse, as peles não valiam nada.

— Não é isso — tornou calmamente McDonald. — Não é que valessem alguma coisa. Mas eram minhas.

Os três homens ficaram imóveis, calados e quase abstraídos, a ver Miller arrastar os fardos e as peles e a empurrar as carroças para atear o fogo. Não olharam uns para os outros e não falaram. Com um interesse quase indiferente, McDonald viu Miller rebocar as carroças e atirar com elas contra os destroços das outras carroças que se erguiam como formas esqueléticas no meio do fogo. Fardo após fardo, carroça após carroça, a pira foi aumentando, até a fogueira atingir mais do dobro da sua dimensão inicial. Miller demorou mais de uma hora a levar a sua tarefa a cabo. Quando a última carroça com a sua carga de fardos se abateu na fogueira, Miller deu meia volta e cavalgou lentamente em direção aos três homens que estavam juntos, a observá-lo.

Fez o cavalo parar; o animal estacou subitamente, com os flancos a arfarem tão violentamente que as pernas de Miller se moviam percetivelmente sobre os estribos; da boca do cavalo, repuxada e rasgada pelo freio entre os dentes, soltava-se sangue, que fez um charco no solo. O cavalo está exausto, pensou Andrews, alheadamente; não passa do alvorecer.

Miller tinha a cara enegrecida do fumo, as sobrancelhas quase completamente queimadas, o cabelo crespo e chamuscado e a testa sulcada por um comprido vergão vermelho que formava uma empola. Durante um longo pedaço, Miller olhou por cima da cabeça baixa do cavalo, fitando sombriamente McDonald. Depois descerrou os lábios sobre os dentes brancos e riu-se asperamente, com um som gutural. Olhou para McDonald, para Charley Hoge e para Andrews, regressando a McDonald. Aos poucos, morreu-lhe o sorriso no rosto. Os quatro homens olharam-se entre si, circunvagando lenta e inquisitivamente o olhar pelos rostos que os cercavam. Não se mexeram nem falaram.

Temos qualquer coisa a dizer uns aos outros, pensou confusamente Andrews, mas não sabemos o que é; há qualquer coisa que devíamos dizer.

Abriu a boca e estendeu a mão, movendo-se na direção de Miller, como se fosse falar. Miller olhou para ele; o seu olhar era indiferente, distante e vazio, como se não o reconhecesse. Descontraiu-se na sela e fincou as esporas nos flancos do cavalo; este deu um salto em frente. O movimento apanhou Andrews desprevenido; ficou ali postado, de braço ainda estendido no ar. O peito do cavalo embateu no seu ombro esquerdo e fê-lo rodopiar sobre si mesmo; cambaleou, mas não caiu. Quando os olhos se desanuviaram, viu Miller, curvado sobre a montada, a cavalgar inseguramente para longe, no meio da escuridão. Quando Miller se afastou, Charley Hoge afastou-se dos outros dois e pôs-se a andar tropegamente atrás dele. Muito depois de eles se perderem na escuridão, e quando o som dos cascos se extinguira já ao longe, Andrews continuou parado a olhar na direção que eles haviam tomado. Virou-se para McDonald; olharam um para o outro em silêncio. Decorrido algum tempo, McDonald abanou a cabeça e afastou-se também.