Quando acordou o quarto estava às escuras; a cortina de pano da janela deixava entrar uma claridade vacilante da rua. Ouviu gritos distantes por baixo do rabugento sussurro de muitas vozes, o resfolegar de um cavalo e o toque-toque de cascos. Por instantes, não conseguiu lembrar-se de onde estava.
Levantou-se abruptamente e sentou-se na borda da cama. O colchão emitiu um sussurro por baixo dele; descontraiu-se, correu os dedos pelo cabelo até à nuca e fletiu a cabeça para trás, acolhendo com prazer a sensação de dorido que lhe ia produzindo um calor agradável entre as omoplatas. Às escuras, atravessou o quarto até à pequena mesa, cujos contornos se percebiam indistintamente ao lado da janela. Encontrou um fósforo na mesa e acendeu o candeeiro que estava ao lado do lavatório. Ao espelho, o seu rosto fazia um nítido contraste de claridade amarela na sombra escura. Meteu as mãos na água morna do lavatório e enxaguou a cara. Limpou as mãos e a cara à mesma camisa que vestira no dia anterior. À luz trémula do candeeiro pôs o laço preto, vestiu o largo casaco castanho, que começava a cheirar a suor, e contemplou-se ao espelho como se fosse um estranho. Depois apagou o candeeiro e saiu do quarto.
A rua estava banhada de sombras compridas, projetadas pelas luzes amarelas que vinham das portas e janelas abertas dos poucos edifícios de Butcher’s Crossing. Uma luz solitária provinha da loja de tecidos fronteira ao hotel; à volta dela moviam-se figuras corpulentas, exageradamente ampliadas pelas sombras. Mais luz, e o som de risadas e de passos de andar pesado saíam do bar que ficava ao lado. Havia uns quantos cavalos amarrados à barra toscamente desbastada que se erguia a dois ou três metros do passeio em frente do Jackson; estavam imóveis, mas as luzes vacilantes reluziam nos seus globos oculares e no pelo liso dos flancos. Ao fundo da rua, para lá do casebre, viam-se duas lanternas penduradas em troncos diante da estrebaria; logo a seguir à estrebaria, escapava-se da oficina de ferreiro um mortiço fulgor vermelho e ouviam-se o sonoro tinir de um martelo no ferro e o assobio raivoso do metal quente ao ser mergulhado em água. Andrews atravessou a rua numa lenta diagonal, dirigindo-se ao Jackson.
A sala onde entrou era estreita e comprida; no sentido do comprimento ficava perpendicular à rua e a largura era tal que quatro homens não cabiam comodamente lado a lado. Havia uma dúzia de candeias penduradas nas vigas, cobertas de fuligem; a luz que emitiam refletia-se cruamente em baixo, de modo que a superfície de tudo o que existia na sala bruxuleava com uma luz amarela e tudo quanto havia por baixo dessa superfície se perdia em vagas sombras. Andrews seguiu em frente. À sua direita estendia-se um longo balcão, quase a todo o comprimento do salão; o tampo do balcão consistia em duas grossas pranchas encostadas uma à outra e sustentadas por troncos cortados sem qualquer acabamento, diretamente assentes no soalho de tábuas irregulares. Respirou fundo e a intensa mistura de cheiros a querosene queimado, suor e álcool invadiu-lhe os pulmões; tossiu. Dirigiu-se ao balcão, que lhe chegava apenas ligeiramente acima da cintura; o encarregado do bar, um sujeito baixo e calvo de grandes bigodes e pele amarelada, olhou-o sem falar.
— Uma cerveja — pediu Andrews.
O encarregado do bar tirou uma pesada caneca debaixo do balcão e virou-se para um de vários barris assentes sobre grandes caixotes de madeira. Abriu uma torneira e deixou a cerveja correr em bolhas brancas pela borda da caneca. Colocando a caneca diante de Andrews, anunciou:
— São vinte e cinco cêntimos.
Andrews provou a cerveja; parecia mais quente do que o salão e tinha um sabor aguado. Poisou uma moeda no balcão.
— Ando à procura dum tal Mr. Miller — disse. — Disseram-me que talvez o encontrasse aqui.
— Miller? — o encarregado do bar voltou-se com indiferença e olhou para o fundo da sala, onde, na penumbra, havia duas mesinhas à volta das quais estavam meia dúzia de homens sentados a beber tranquilamente. — Acho que não está cá. É amigo dele?
— Não o conheço — respondeu Andrews. — Quero falar com ele sobre uma questão de… negócios. Mr. McDonald disse que era capaz de o encontrar aqui.
O encarregado do bar acenou afirmativamente.
— Talvez o encontre no salão grande. — Indicou com os olhos um ponto atrás de Andrews; este voltou-se e viu que havia uma porta fechada que devia dar para outra sala. — É um homem corpulento, de barba feita. É capaz de estar com o Charley Hoge, um sujeito baixinho, de cabelo grisalho.
Andrews agradeceu ao encarregado do bar, terminou a cerveja e transpôs a porta que havia do lado mais estreito do bar. O compartimento em que entrou era amplo e ainda mais mal iluminado que aquele de onde saíra. Embora houvesse muitas candeias penduradas em ganchos nas vigas enegrecidas pelo fumo, só algumas estavam acesas; a sala dividia-se em zonas de luz e espaços maiores e irregulares na penumbra. As mesas, de configuração tosca, estavam dispostas de tal modo que havia um espaço oval vazio no centro da sala; ao fundo, uma escada direita conduzia ao segundo andar. Andrews avançou, de olhos muito abertos por causa da escuridão.
Numa das mesas encontravam-se cinco homens a jogar às cartas; não levantaram os olhos para Andrews nem tão-pouco falavam uns com os outros. O bater das cartas e o pequeno estalido das fichas de póquer quebravam o silêncio. Noutra mesa estavam duas raparigas, de cabeças muito juntas, a murmurar. Ali perto sentavam-se um homem e uma mulher; havia mais uns quantos grupos reunidos em mesas sombrias noutras zonas do grande salão. Pairava sobre aquele cenário uma serena e lenta fluidez que era estranha a Andrews e que o absorveu de tal maneira que por instantes se esqueceu da razão por que ali viera. Ao fundo do salão, no meio da obscuridade e do fumo, viu dois homens e uma mulher sentados a uma mesa. Estavam um tanto apartados dos outros e o mais corpulento dos homens olhava diretamente para ele. Andrews deslocou-se pelo espaço livre até junto deles.
Quando parou diante da mesa, estavam os três a olhar para ele. Durante algum tempo mantiveram-se os quatro imóveis e mudos; Andrews tinha a atenção concentrada no homem corpulento que estava mesmo na sua frente, mas apercebia-se do rosto roliço e bastante pálido e do cabelo amarelo da rapariga, que parecia escorrer pelos arredondados ombros nus, e do nariz comprido e do rosto cinzento e de barba por fazer do homem mais franzino.
— Mr. Miller? — perguntou Andrews.
O homem corpulento fez um aceno afirmativo.
— Sou eu — disse. As suas pupilas eram negras e sobressaíam nitidamente do branco dos olhos e as sobrancelhas que as coroavam, muito juntas, franziam-se numa expressão carrancuda que lhe enrugava a ampla cana do nariz. Possuía uma tez levemente amarelada e lisa como couro curtido e nas comissuras da boca larga viam-se sulcos fundos que se prolongavam numa curva ascendente até à grossa base do nariz. O cabelo era basto e negro, de risca ao lado, e chegava-lhe em volumosas réstias até meio das orelhas. — Sou eu — tornou a dizer.
— O meu nome é Will Andrews. Eu… a minha família é amiga de longa data de J. D. McDonald. Mr. McDonald disse que o senhor talvez estivesse na disposição de falar comigo.
— McDonald? — as pesadas e quase glabras pálpebras de Miller desceram sobre os olhos num lento pestanejar. — Sente-se, filho.
Andrews sentou-se numa cadeira vaga entre a rapariga e Miller.
— Espero não estar a interromper nada.
— O que é que o McDonald quer? — perguntou Miller.
— Perdão?
— Foi o McDonald que o mandou cá, não foi? O que é que ele quer?
— Não, senhor — retorquiu Andrews. — Não está a perceber. Eu só queria falar com alguém que conhecesse esta região. Mr. McDonald teve a amabilidade de me dar o seu nome.
Miller olhou fixamente para ele durante um bocado, após o que acenou com a cabeça.
— Há dois anos que o McDonald anda a tentar que eu chefie uma expedição por conta dele. Julguei que estivesse a tentar outra vez.
— Não, senhor — disse Andrews.
— Você trabalha para o McDonald?
— Não, senhor — respondeu Andrews. — Ele ofereceu-me emprego, mas eu recusei.
— Porquê? — inquiriu Miller.
Andrews hesitou.
— Não queria ficar amarrado. Não foi para isso que vim até cá.
Miller disse que sim com a cabeça e ajeitou o corpo volumoso; Andrews apercebeu-se de que o homem que estava ao lado dele se mantivera imóvel até então.
— Este é o Charley Hoge — informou Miller, movendo ligeiramente a cabeça na direção do homem grisalho sentado do outro lado de Andrews.
— Muito prazer em conhecê-lo, Mr. Hoge — cumprimentou Andrews, estendendo a mão por cima da mesa. Hoge dirigia-lhe um sorriso enviesado, com o rosto afundado entre as estreitas omoplatas. Levantou o braço direito devagar e estendeu repentinamente o antebraço sobre a mesa. O braço terminava no punho por um coto branco meticulosamente pregueado e cheio de cicatrizes. Involuntariamente, Andrews encolheu a mão. Hoge riu-se; o seu riso era um assobio quase mudo que parecia arrancado do peito magro.
— Não ligue ao Charley, filho — interveio Miller. — Faz sempre isto. Acha que tem piada.
— Perdi-a no inverno de sessenta e dois — esclareceu Charley Hoge, ainda a ofegar de riso. — Congelou e ter-me-ia caído por si, se… — Estremeceu subitamente e continuou a tremer como se estivesse a sentir de novo o frio.
— Podia oferecer uma pinga de uísque ao Charley, Mr. Andrews — disse Miller, quase com suavidade. — É outra das coisas a que ele acha piada.
— Com certeza — tornou Andrews. Soergueu-se da cadeira. — Quer que eu…?
— Não se incomode — atalhou Miller. — A Francine vai buscar as bebidas. — Dirigiu um aceno de cabeça à rapariga loura. — Esta aqui é a Francine.
Andrews estava ainda meio levantado sobre a mesa.
— Muito prazer — disse, fazendo uma ligeira vénia. A rapariga sorriu, com os lábios pálidos a descobrirem uns dentes muitos brancos e ligeiramente irregulares.
— Com certeza — prontificou-se Francine. — Mais alguém quer alguma coisa? — falava devagar e com uns laivos de sotaque alemão.
Miller abanou a cabeça.
— Um copo de cerveja — disse Andrews. — E a senhora, quer alguma coisa?
— Não — respondeu Francine. — Neste momento não estou a trabalhar.
Pôs-se de pé e afastou-se da mesa; por momentos os olhos de Andrews seguiram-na. Era forte, mas movia-se com graciosidade ao longo do salão; trazia um vestido de um tecido brilhante de listas largas, azuis e brancas. O corpete era justo e fazia transbordar a opulência das carnes. Ao sentar-se, Andrews voltou-se interrogativamente para Miller.
— Ela… trabalha aqui? — perguntou Andrews.
— A Francine? — Miller olhou para ele inexpressivamente. — A Francine é puta. Há nove ou dez na vila; seis trabalham aqui, e há um par de índias que fazem os casinhotos ao pé do rio.
— Uma mulher da vida — disse Charley Hoge; continuava a tremer. — Uma mulher fácil. — Não sorriu.
— O Charlie é muito amigo da Bíblia — esclareceu Miller. — Consegue lê-la bastante bem.
— Uma… puta — concluiu Andrews, engolindo em seco. Sorriu. — Não sei porquê, não parece nada… uma…
Os lábios da larga boca de Miller ergueram-se levemente.
— De onde é que disse que era, filho?
— De Boston — respondeu ele. — Boston, no Massachusetts.
— E há putas em Boston, no Massachusetts?
Andrews enrubesceu.
— Acho que sim — disse. — Acho que sim — tornou a dizer. — Há.
Miller acenou afirmativamente.
— Em Boston há putas. Mas uma puta de Boston e uma puta de Butcher’s Crossing, bem, não tem nada que ver uma coisa com a outra.
— Estou a perceber — comentou Andrews.
— Não me parece — tornou Miller. — Mas há de vir a perceber. Em Butcher’s Crossing, uma puta é uma parte necessária da economia. Um homem tem de ter mais alguma coisa além de álcool e comida onde gastar o dinheiro, e alguma coisa que o traga de volta à vila depois de ter andado lá por fora. Em Butcher’s Crossing, uma puta pode ser esquisita e escolher os clientes e mesmo assim ganhar bom dinheiro; e isso torna-a quase respeitável. Algumas até chegam a casar e dão boas esposas, ao que me consta, para os que querem esposas.
Andrews não falou.
Miller recostou-se na cadeira.
— Além disso, esta é uma época morta e a Francine não está a trabalhar. Quando uma puta não está a trabalhar, acho que tem um aspeto mais ou menos igual ao de toda a gente.
— Pecado e corrupção — proferiu Charley Hoge. — Ela tem a mancha dentro de si. — Com a mão sã, agarrou a borda da mesa com tanta força que os nós dos dedos adquiriram um branco azulado contrastante com o tom acastanhado da pele.
Francine regressou à mesa com as bebidas. Debruçou-se por cima do ombro de Andrews para poisar o copo de uísque de Charley Hoge diante dele. Andrews sentiu-lhe o calor e o cheiro e agitou-se. Ela pôs-lhe a cerveja à frente e sorriu; os seus olhos eram claros e grandes e as pestanas louras avermelhadas, macias como uma penugem, faziam com que os olhos parecessem grandes e nunca pestanejassem. Andrews tirou umas moedas do bolso e depositou-as na palma da mão dela.
— Queres que eu me vá embora? — perguntou Francine a Miller.
— Senta-te — retrucou Miller. — Mr. Andrews só quer falar.
A visão do uísque acalmara Charley Hoge; pegou no copo e bebeu rapidamente, com a cabeça atirada para trás e a maçã-de-adão a deslocar-se como um pequeno animal por baixo dos pelos cinzentos da garganta barbada. Uma vez terminada a bebida recostou-se, curvado, na cadeira e ficou quieto, a observar os outros com os seus frios olhinhos cinzentos.
— Do que é que queria falar, Mr. Andrews? — perguntou Miller.
Andrews olhou constrangidamente para Francine e Charley Hoge. Sorriu.
— É uma maneira um bocado brusca de fazer a pergunta — observou.
Miller acenou afirmativamente.
— Era essa a minha intenção.
Andrews fez uma pausa e disse:
— Acho que só queria conhecer a região. Nunca aqui estive; quero conhecer o mais que puder.
— Para quê? — perguntou Miller.
Andrews olhou inexpressivamente para ele.
— Você fala como um homem instruído, Mr. Andrews.
— Pois é — respondeu ele. — Andei três anos no Harvard College.
— Ora bem — retorquiu Miller. — Três anos. Não é coisa pouca. Há quanto tempo é que saiu de lá?
— Pouco. Saí para vir até cá.
Miller olhou-o por momentos.
— Harvard College. — Abanou a cabeça. — Eu aprendi a ler num inverno que fiquei isolado pela neve numa cabana de caça do Colorado. Sei escrever o meu nome num papel. Que acha você que pode aprender comigo?
Andrews franziu o cenho e reprimiu um tom de contrariedade que sentia infiltrar-se-lhe na voz.
— Eu nem sequer o conheço, Mr. Miller — disse, com um certo calor. — É como eu disse. Quero conhecer alguma coisa desta região. Mr. McDonald disse que o senhor era a pessoa indicada para falar, que conhecia esta região como ninguém. Esperava que o senhor tivesse a amabilidade de conversar comigo durante uma hora, ou coisa assim, para me familiarizar com…
Miller tornou a abanar a cabeça e sorriu.
— Não há dúvida de que você fala bem, filho. Fala mesmo. Foi isso que aprendeu a fazer no Harvard College?
Por momentos, Andrews fitou-o constrangidamente. Depois sorriu.
— Não, senhor. Acho que não. No Harvard College não se fala, só se ouve.
— Ora bem — tornou Miller. — Isso é razão suficiente para sair de lá. Uma pessoa tem de dizer aquilo que pensa, de vez em quando.
— É verdade, senhor — disse Andrews.
— Portanto veio até aqui. A Butcher’s Crossing.
— É verdade, senhor.
— E quando souber aquilo que quer saber, o que é que vai fazer? Voltar para casa e impressionar a família? Escrever qualquer coisa nos jornais?
— Não, senhor — redarguiu. — Não é por nenhuma dessas razões. É por mim.
Por instantes, Miller não falou. A seguir disse:
— Podia oferecer outro copo de uísque ao Charley; e desta vez eu também bebo um.
Francine levantou-se. Dirigiu-se a Andrews:
— Mais uma cerveja?
— Uísque — respondeu Andrews.
Quando Francine saiu da mesa, Andrews manteve-se calado durante algum tempo; não olhou para nenhum dos homens que estavam na mesa com ele.
Miller disse:
— Com que então não se envolveu com o McDonald.
— Não era o que eu queria.
Miller fez um aceno afirmativo.
— Isto é uma vila de caçadores, rapaz. Se ficar por aqui, não há muito por onde escolher. Pode ir trabalhar para o McDonald e ganhar algum dinheiro, ou pode montar um pequeno negócio e esperar que o caminho-de-ferro passe mesmo por aqui, ou pode juntar-se a um grupo de caçadores e ir à caça aos búfalos.
— Isso foi mais ou menos o que Mr. McDonald disse.
— E a última ideia não lhe agradou.
Andrews sorriu.
— Pois não.
— Ele não gosta de caçadores — disse Miller. — E eles também não gostam dele.
— Porquê?
Miller encolheu os ombros.
— Eles é que se esforçam e ele é que recebe o dinheiro todo. Eles acham que ele é um aldrabão, ele acha que eles são uns patetas. Não podemos censurar nenhum dos lados; ambos têm razão.
— Mas o senhor também é caçador, não é, Mr. Miller? — perguntou Andrews.
Miller abanou a cabeça
— Não como esses que andam por aí, nem como o McDonald. Ele equipa as suas próprias expedições e paga-lhes cinquenta cêntimos por cabeça pelas peles em bruto: peles de verão, que não são muito mais que couro fino. Tem sempre trinta ou quarenta expedições; consegue uma data de peles, mas da maneira como as coisas são repartidas os homens têm muita sorte se conseguirem ganhar o suficiente para se aguentarem no inverno. Eu ou caço por minha conta ou não caço. — Miller calou-se; Francine voltara com uma garrafa cheia até um quarto e copos lavados e um copinho de cerveja para ela. Charley Hoge deitou rapidamente a mão ao copo de uísque que ela lhe pusera à frente; Miller pegou no seu com a mão grossa e peluda e envolveu-o; Andrews bebeu uma pequena golada. O álcool ardeu-lhe nos lábios e na língua e aqueceu-lhe a garganta; com o ardor, não sentiu sabor algum.
— Vim para aqui há quatro anos — prosseguiu Miller —, no mesmo ano que o McDonald. Meu Deus! Só queria que visse esta região na altura. Na primavera, via-se daqui toda a terra coberta de negro, dos búfalos, compactos como a erva, quilómetros e quilómetros. Nesse tempo éramos poucos e não era admiração nenhuma um grupo caçar mil, mil e quinhentas cabeças num par de semanas. Ainda por cima peles de primavera, bem boas. Agora já não resta grande caça. Os búfalos deslocam-se em manadas mais pequenas e se a pessoa conseguir duzentas ou trezentas cabeças por expedição, já vai com sorte. Mais um ou dois anos e deixará de haver caça no Kansas.
Andrews bebeu mais um gole de uísque.
— E que fará o senhor nessa altura?
Miller encolheu os ombros.
— Voltar a colocar armadilhas, ou explorar minas, ou caçar outra coisa qualquer. — Olhando para o copo, franziu o sobrolho. — Ou caçar búfalos. Ainda há sítios onde se encontram, desde que se saiba onde procurar.
— Aqui por perto? — perguntou Andrews.
— Não — respondeu Miller. Agitou impacientemente na cadeira o vasto corpo vestido de preto e afastou a bebida ainda intacta para o exato centro da mesa. — No outono de sessenta e três, andava a colocar armadilhas para castores no Colorado. Foi no ano seguinte àquele em que o Charlie ficou sem a mão, e ele estava em Denver e não andava comigo. Nesse ano os castores criaram pelo muito tarde, de maneira que eu deixei as minhas armadilhas perto do rio onde estava a trabalhar e fui na minha mula até às montanhas; contava apanhar uns quantos ursos. Constara-me que nesse ano a pele deles era boa. Durante quase três dias acho que calcorreei toda a vertente da montanha e não vi um único urso. No quarto dia estava a tentar chegar mais acima e mais para norte e fui parar a um sítio onde a montanha descia bruscamente até um pequeno desfiladeiro. Pensei que talvez houvesse ali um riacho onde os animais fossem beber, de maneira que desci até lá; demorei quase um dia inteiro. Não havia nenhum curso de água. Era um leito plano de terreno escalvado, com uns três a três metros meio de largura, compacto e rijo como pedra, que parecia uma estrada que tivesse sido aberta pela montanha adentro. Mal o vi, soube do que se tratava, mas não podia acreditar no que via. Eram búfalos; tinham calcado a terra com força, nas suas idas e vindas, ao longo dos anos. Durante o resto do dia segui o leito pela montanha fora e por volta do anoitecer cheguei ao fundo dum vale plano como um lago. Aquele vale serpenteava para um lado e para outro, bordejando a montanha, até onde a vista alcançava, e havia búfalos espalhados por todo ele, em pequenas manadas, a perder de vista. Pele de outono, mas mais grossa e melhor do que a pele de inverno dos animais que pastavam na planície. Do sítio onde estava calculei que fossem umas três ou quatro mil cabeças; e havia mais, para lá das curvas do vale, que não se viam. — Tirou o copo do centro da mesa e bebeu um trago rápido, estremecendo ligeiramente ao engolir. — Tive a sensação de que nunca nenhum homem tinha estado naquele vale. Talvez alguns índios, há muito, mas homens não. Fiquei dois dias por ali e nunca vi sinais de vida humana, nem os vi no regresso. Próximo do rio, o trilho descrevia uma curva ao longo da vertente da montanha e ficava oculto pelo arvoredo; caminhando rio acima, um homem nunca o veria.
Andrews aclarou a garganta. Quando falou, a voz pareceu-lhe estranha e cava.
— Alguma vez lá voltou?
Miller abanou a cabeça.
— Nunca lá voltei. Sabia que se manteria assim. Uma pessoa só o poderia encontrar se soubesse onde ficava, ou a menos que desse acidentalmente com ele, como me aconteceu a mim, e isso não era muito provável.
— Dez anos — comentou Andrews. — Porque é que nunca lá voltou?
Miller encolheu os ombros.
— As coisas não se proporcionaram. Num ano o Charley ficou de cama com febre, noutro tinha-me comprometido com outra pessoa e noutro não tinha participação no negócio. Sobretudo não consegui juntar o tipo de equipa certo.
— De que tipo de equipa precisa? — perguntou Andrews.
Miller não olhou para ele.
— Do tipo que deixe que a caçada seja minha. Já não há muitos sítios daqueles e eu nunca quis levar nenhum dos outros caçadores.
Andrews sentiu crescer uma obscura agitação dentro de si.
— Quantos homens seriam precisos para uma equipa dessas?
— Depende de quem a formasse — respondeu Miller. — Cinco, seis ou sete homens, na maioria dos grupos. Eu por mim, nessa caçada, preferia-o pequeno. Um caçador bastaria, porque teria todo o tempo necessário para abater os seus alvos; podia manter os búfalos no vale durante o tempo que fosse preciso. Um par de esfoladores e um encarregado do acampamento. Quatro homens deviam dar conta do recado. E quantos menos forem, maior será o lucro.
Andrew não falou. No extremo do seu campo de visão, Francine adiantou-se e poisou os cotovelos na mesa. Charley Hoge tomou rapidamente fôlego e tossiu com suavidade. Passado um bom bocado, Andrews perguntou:
— Seria capaz de arranjar um grupo nesta altura tão adiantada do ano?
Miller acenou afirmativamente e olhou por cima da cabeça de Andrews.
— Acho que era possível.
Fez-se um silêncio. Andrews inquiriu:
— Quanto dinheiro seria preciso?
Miller baixou o olhar, cruzando-o com o de Andrews, e exibiu um leve sorriso.
— Fala por falar, filho, ou está interessado nalguma coisa?
— Estou interessado — respondeu Andrews. — Quanto dinheiro seria preciso?
— Ora bem — tornou Miller. — Não tinha pensado seriamente em sair este ano. — Tamborilou com os dedos descorados no tampo da mesa. — Mas acho que podia pensar nisso, agora.
Charley Hoge voltou a tossir e acrescentou dois centímetros de uísque ao copo já meio.
— A minha participação é bastante baixa — disse Miller. — Quem entrasse teria de pôr praticamente o dinheiro todo.
— Quanto? — perguntou Andrews.
— E mesmo assim — continuou Miller —, teria de perceber que continuava a ser a minha caçada. Teria de perceber isso.
— Sim — volveu Andrews. — Quanto seria preciso?
— Quanto é que você tem, filho? — perguntou mansamente Miller.
— Pouco mais de mil e quatrocentos dólares — respondeu Andrews.
— Você também quereria ir, claro.
Andrews hesitou. A seguir fez um aceno afirmativo.
— Para trabalhar, quero eu dizer. Para ajudar a esfolar.
Andrews voltou a acenar em sinal de assentimento.
— Continuaria a ser a minha caçada, estamos entendidos? — tornou Miller.
— Entendido — disse Andrews.
— Bem, talvez se arranjasse — volveu Miller —, se você estivesse disposto a entrar com o dinheiro para os animais e os mantimentos.
— De que precisaríamos? — perguntou Andrews.
— Precisaríamos de uma carroça e de uma parelha de animais — respondeu lentamente Miller. — A maioria das vezes são duas mulas, mas as mulas precisam de cereais. Os bois podem alimentar-se dos pastos, na ida e na volta, e são capazes de aguentar uma carga bastante pesada. Os bois são lentos, mas nós não teríamos grande pressa. Você tem um cavalo?
— Não — respondeu Andrews.
— Precisaríamos dum cavalo para si, e talvez para o esfolador, seja lá quem for. Sabe disparar?
— O quê? pistolas?
Miller fez um sorriso ténue.
— Ninguém no seu perfeito juízo usaria esses brinquedos — disse —, a não ser que quisesse morrer. Refiro-me a uma espingarda.
— Não — disse Andrews.
— Temos de lhe arranjar uma espingardazita. Vou precisar de pólvora e chumbo: uma tonelada de chumbo e aí uns duzentos quilos de pólvora. Se não usarmos tudo, podemos receber o reembolso. Na montanha, podemos alimentar-nos do que a terra dá, mas temos de ter comida para o caminho e depois para o regresso. Dois sacos de farinha, uns quatro quilos de café, oito de açúcar, aí meio quilo de sal, toucinho fumado e oito quilos de feijão. Algumas chaleiras e umas quantas ferramentas. Cereais para os cavalos. Eu diria que quinhentos ou seiscentos dólares fariam a festa.
— Isso é praticamente metade do dinheiro que eu tenho — disse Andrews.
Miller encolheu os ombros.
— É uma data de dinheiro. Mas tem hipóteses de ganhar muito mais. Com uma boa carroça, devemos conseguir carregar perto de um milhar de peles. Isso deve render perto de dois mil e quinhentos dólares. Se houver muita caça, podemos deixar algumas das peles invernar e voltar lá na primavera para as ir buscar. Eu fico com sessenta por cento e você recebe quarenta. Eu recebo um pouco mais do que é costume, mas a caçada é minha, e além disso trato aqui do Charley. Você trata do outro esfolador. Quando voltarmos, você deve poder vender os animais e a carroça mais ou menos pelo preço que pagou por eles; por isso, não fica nada mal.
— Eu não vou — disse Charley Hoge. — Aquilo é uma região do diabo.
Miller esclareceu prazenteiramente:
— O Charley perdeu a mão lá para as Montanhas Rochosas; desde essa altura nunca mais gostou da região.
— Fogo do inferno e gelo — disse Charley Hoge. — Não é para seres humanos.
— Conta lá a Mr. Andrews como perdeste a mão, Charley — incitou-o Miller.
Charley Hoge exibiu um sorriso por entre a curta barba grisalha. Poisou o coto da mão na mesa e foi-o aproximando lentamente de Andrews à medida que falava.
— No princípio do inverno, o Miller e eu andávamos a caçar e a pôr armadilhas no Colorado. Estávamos numa pequena elevação, quase a chegar às montanhas, quando veio uma tempestade de neve. O Miller e eu separámo-nos e eu escorreguei num pedregulho, bati com a cabeça e perdi os sentidos. Não sei durante quanto tempo para ali estive. Quando voltei a mim, a tempestade de neve continuava e ouvi o Miller a gritar.
— Andava há quase quatro horas à procura do Charley — disse Miller.
— Devo ter perdido uma luva ao cair — continuou Charley Hoge —, porque tinha a mão descalça e congelada. Mas não estava fria. Sentia só uma espécie de formigueiro. Chamei pelo Miller e ele veio ter comigo e encontrámos abrigo atrás duns rochedos; até havia uns toros secos e conseguimos acender uma fogueira. Olhei para a mão e estava azul, um azul mesmo claro. Nunca vi coisa assim. Depois aqueceu e daí a pouco começou-me a doer. Não sei dizer se doía como gelo ou se doía como fogo; depois ficou vermelha, como um retalho de fazenda de fantasia. Ficámos ali dois ou três dias e a tempestade de neve não amainava. Depois a mão ficou outra vez azul, quase preta.
— Começou a cheirar mal — disse Miller —, de maneira que eu percebi que tinha de ser cortada.
Charley Hoge riu-se com um som ofegante e entrecortado.
— Ele não parava de me dizer que tinha de ser cortada, mas eu não lhe dava ouvidos. Discutimos quase meio dia acerca disso, até que ele por fim me venceu pelo cansaço. Nunca teria conseguido convencer-me se eu não estivesse tão cansado. Por fim deitei-me e pedi-lhe que a cortasse.
— Meu Deus! — exclamou Andrews, numa voz que pouco mais era que um sussurro.
— Não foi tão mau como se poderia pensar — disse ele. — Naquela altura as dores já eram tantas que eu quase não senti a faca. E quando ela chegou ao osso, desmaiei e nessa altura não custou nada.
— O Charley descuidou-se — comentou Miller. — Não devia ter escorregado naquele pedregulho. Desde essa altura nunca mais se descuidou, pois não, Charley?
Ele riu-se.
— Desde essa altura tenho tido imenso cuidado.
— Portanto já vê — tornou Miller — porque é que o Charley não gosta da região do Colorado.
— Se vejo, meu Deus! — exclamou Andrews.
— Mas ele vai connosco — continuou Miller. — Mesmo com uma mão só, é melhor encarregado de acampamento do que muitos que por aí andam.
— Não — declarou Charley Hoge. — Eu não vou. Desta vez, não.
— Vai correr tudo bem — retorquiu Miller. — Nesta altura do ano, quase faz calor por lá; antes de novembro não neva. — Olhou para Andrews. — Ele vai; só precisamos dum esfolador. Precisamos dum bom, porque vamos ter de o iniciar a si.
— Está bem — tornou Andrews. — Quando é que partimos?
— Devemos chegar às montanhas lá para meados de setembro; nessa época há de fazer frio por lá e as peles devem estar mais ou menos no ponto. Devemos partir daqui a umas duas semanas. Depois é um par de semanas até chegar lá, passamos uma semana ou dez dias a caçar e levamos um par de semanas a voltar.
Andrews acenou afirmativamente.
— E quanto ao animais e aos mantimentos?
— Vou buscá-los a Ellsworth — esclareceu Miller. — Conheço lá um homem que tem uma carroça sólida e há de haver bois à venda; compro também lá os mantimentos, porque hão de ser mais baratos. Devo estar de volta daqui a quatro ou cinco dias.
— O senhor trata de tudo — disse Andrews.
— Sim. Deixe tudo comigo. Eu arranjo-lhe um bom cavalo e uma espingarda de caça. E arranjo um esfolador.
— Quer já o dinheiro? — perguntou Andrews.
Os lábios de Miller contraíram-se num sorriso contido.
— Você não perde tempo a decidir-se, pois não, Mr. Andrews?
— Não, senhor — respondeu Andrews.
— Francine — disse Miller —, temos de tomar outra bebida para comemorar isto. Traz-nos mais uísque… e traz um também para ti.
Francine olhou por um momento para Miller e depois para Andrews; os seus olhos mantiveram-se fixos em Andrews enquanto se levantava e afastava da mesa.
— Podemos beber para comemorar — disse Miller — e depois pode dar-me o dinheiro. Assim fica fechado o negócio.
Andrews fez um aceno de concordância. Olhou para Charley Hoge e para além dele; estava tonto do calor e dos efeitos estimulantes do uísque que bebera; na sua mente havia fragmentos da conversa de Miller sobre a região montanhosa para onde se dirigiam, e esses fragmentos reluziam, rodopiavam e caíam suavemente em estranhas e inopinadas configurações. Como pequenos fragmentos de vidro colorido de um caleidoscópio, iam-se ampliando à medida que giravam e captavam a luz de fontes descabidas e acidentais.
Francine regressou com outra garrafa e poisou-a no centro da mesa; ninguém falou. Miller levantou o copo e manteve-o por momentos num sítio onde a luz de uma lanterna lhe emprestava um fulgor vermelho de âmbar. Os outros ergueram silenciosamente os copos e beberam, não os poisando antes de ficarem vazios. Andrews sentiu as lágrimas chegarem aos olhos com o ardor na garganta; através da humidade viu o rosto de Francine a tremeluzir palidamente diante de si. Tinha os olhos cravados nele e sorria levemente. Ele pestanejou e olhou para Miller.
— Tem o dinheiro consigo? — perguntou Miller.
Andrews disse que sim com a cabeça. Desapertou um botão inferior da camisa e extraiu um molho de notas da bolsa do cinto. Contou seiscentos dólares sobre a mesa riscada e devolveu as outras notas ao cinto.
— Está feito — disse Miller. — Amanhã vou até Ellsworth, compro aquilo de que precisamos e daqui a menos de uma semana estou de volta. — Contou as notas, escolheu uma e passou-a a Charley Hoge. — Toma. Com isto governas-te até eu voltar.
— Como? — exclamou Charley, com voz aturdida. — Eu não vou contigo?
— Eu vou estar ocupado — retorquiu Miller. — Com isto governas-te uma semana.
Charley Hoge assentiu lentamente; depois arrebatou a nota da mão de Miller, amarfanhou-a e enfiou-a no bolso da camisa.
Andrews afastou a cadeira da mesa e pôs-se de pé. Sentia as pernas entorpecidas e relutantes em moverem-se.
— Acho que me vou recolher, se não há mais nada de que seja preciso falarmos.
Miller abanou a cabeça.
— Nada que não possa esperar. Parto de manhã cedinho, de maneira que só o vejo quando voltar. Mas o Charley fica por cá.
— Boa noite — despediu-se Andrews. Charley Hoge soltou um resmungo e olhou sombriamente para ele.
— Boa noite, minha senhora — disse Andrews a Francine, fazendo uma ligeira vénia desajeitada, só com os ombros.
— Boa noite, Mr. Andrews — respondeu Francine. — Felicidades.
Andrews virou-lhes as costas e atravessou o comprido salão. Estava quase deserto e os clarões de luz no soalho de tábuas grosseiras e as mesas talhadas a machado pareciam mais brilhantes e as sombras à volta desses clarões mais profundas e mais densas do que antes. Cruzou o salão e saiu para a rua.
O brilho da oficina de ferreiro quase se sumira e as candeias penduradas nos postes em frente da estrebaria tinham-se extinguido, de forma que apenas se difundia uma faixa de luz amarela do fundo de bolbos de vidro; os poucos cavalos que se mantinham amarrados diante do bar estavam quietos, de cabeças afundadas quase entre as pernas. As botas de Andrews produziam um som intenso que ressoava no passadiço; descendo para a rua, dirigiu-se ao hotel.