Foi o que ocorreu durante o inverno seguinte à morte de Ignacia. Confirmando o velho ditado que diz que desgraça atrai desgraça, em outubro começaram as chuvas mais intensas de que os velhos se lembravam de já ter visto. Dia após dia, nuvens baixas e cinzentas passavam pelos campos despejando água. Os arroios se tornaram intransponíveis, e chegavam notícias do transbordamento de rios. As goteiras transformavam o chão das casas em um lodo permanente. Era impossível limpar. Com o frio, a fome e a imundície, apareceram também as pulgas e os percevejos. O ruído dos estômagos vazios, das pessoas se coçando e das tosses constituíam a trilha sonora daquela existência. Apesar de tudo, os camponeses soterravam o cura de presentes — castanhas, brotos etc. — porque acreditavam que assim o incentivavam a preparar novas rogativas. Quanto mais famintos e magros ficavam os vizinhos, mais engordava o cura.
Tampouco se tinha visto frio tão persistente como o daquele ano, que arruinou as colheitas. A água da chuva e o vento gélido adentravam pelas rachaduras das casas. A umidade era tanta que, em muitas noites, a família Zendal dormia com as vestes molhadas, pois o calor do fogo não havia sido suficiente para secá-las. As roupas por si só já não serviam para aquecer, pois eram feitas de linho e haviam sido lavadas e remendadas tantas vezes que estavam se desfazendo. Acordavam na madrugada com a sensação de os ossos estarem congelando.
As crianças eram as primeiras vítimas dos açoites da fome. Pululavam por todos os cantos, sujas de barro, com ranho escorrendo, cobertas por farrapos ou nuas, fizesse o tempo que fosse. Certo dia, ao voltar do paço do amo carregando uma tigela de mel como se fosse um tesouro (duramente providenciado em troca de um maço de estopa), Isabel avistou próximo à igreja o filho de uns vizinhos, um garoto de sete anos que ela conhecia bem e que estava chorando inconsolavelmente, tentando impedir que dom Cayetano o levasse pelo braço. A mãe se afastava pelo caminho, cobrindo o rosto com as mãos, como se não quisesse escutar os gritos de seu rebento. Desapareceu com uma mescla de vergonha e desespero.
Isabel ficou tão perturbada que mal dormiu. No dia seguinte, após a missa, foi perguntar pelo garoto. O pároco lhe explicou que a mãe se vira obrigada a abandonar o pequeno porque não tinha como alimentá-lo, que ele fora enviado a um orfanato em Santiago e que provavelmente acabaria adotado por uma família que o livraria da fome e das privações. Era fácil tranquilizar uma menina com mentiras piedosas. O que dom Cayetano se absteve de contar foi a elevada taxa de mortalidade que fazia estragos nos orfanatos. Tampouco informou o que soubera pela via privilegiada do confessionário: o fato de que algumas famílias, em épocas de fome, recorriam ao infanticídio. Amarravam o filho mais novo à cama enquanto todos dormiam e, sem fazer barulho e sem que ninguém ficasse sabendo, como que por acidente, sufocavam-no até a morte. “Acidente”, diziam os pais às autoridades. Por isso, em suas pregações, ele insistia que os filhos não dormissem na mesma cama que os pais se ainda fossem muito pequenos, devido ao perigo de sufocá-los. Assim, seguia a recomendação do manual de confissão, que, diante da proporção que o problema assumira, apontava essa questão como uma das mais importantes a ser lembrada aos fiéis pelos clérigos.
No campo, só escapavam da fome os donos de terras, a nobreza e o clero. Todos os demais sofriam em maior ou menor grau, porque metade do que a terra dava era destinada ao pagamento do arrendamento e das sementes. Na escala da miséria, depois das crianças, que ficavam com a pior parte, estavam as mulheres. Como a tradição determinava que deviam deixar a melhor parte da comida para os homens, elas acabavam se alimentando pouco e mal. Isabel e as irmãs se contentavam com algumas couves boiando em um caldo claro e ralo, porque o toucinho acabara no verão. Como resultado, a jovem começou a sentir os joelhos frágeis. Tinha de se sentar ou buscar apoio em face do menor esforço, feito uma idosa. Às vezes, sentia cãibras no intestino e, quando andava muito, enjoava. Outras vezes, começava a chorar sem motivo aparente, por pura fraqueza. Se estava sozinha, continuava chorando sem parar; cada vez sentia mais pena de si mesma. Quando as lágrimas estavam quase secando, lembrava-se da mãe. “Meu Deus, que desgraça!”, dizia a si mesma e, repetindo essas palavras, voltava a chorar. Percebia o tanto que a mãe a havia protegido das mazelas da vida.
Em sua trágica ausência, Ignacia estava mais presente que nunca. “O que ela teria feito?”, perguntavam-se os Zendal diante de cada nova dificuldade, porque lhes custava imaginar que ela não entraria mais pela porta. Seu espírito pairava sobre as colinas e pelo interior da casa, entre o chão sujo de barro e as vigas enegrecidas do teto, e sobreviviam seus conselhos, como o de engolir saliva para tentar saciar a fome — truque que funcionava de início, pois proporcionava algum alívio — ou de mastigar farpas para enganar o intestino — o efeito durava até que as mandíbulas se cansassem de tanto esforço inútil. O fato é que sentiam uma saudade terrível dela, porque, mesmo com o mau tempo, Ignacia estava sempre bem-disposta. Com ela, a barriga doía menos, a fome era uma brincadeira cruel do destino, e o frio, um inconveniente passageiro. Sem ela, aquela vida era um inferno.
Além das cãibras no intestino e dos enjoos, a fome provocava uma avalanche de sentimentos perversos. Primeiro, surpresa e injustiça: “Por que isso está acontecendo comigo?”, perguntavam-se. “Cumpro meus deveres de bom cristão, trabalho feito uma mula...” Então, a fome causava desonra. Isabel e o pai sentiam vergonha de admitir que não tinham o bastante para se alimentar e, por isso, no início, escondiam dos vizinhos a situação. Mas isso não durava muito, porque necessitavam uns dos outros — um dia, trocavam um ovo por um pedaço de carne, caso o vizinho houvesse decidido sacrificar um animal. Ou uma tigela de leite por um pedaço de toucinho. Ninguém estava a salvo da humilhação da fome.
Após esse estágio, eram tomados pela ira.
— Isso está acontecendo conosco porque não pagamos o dízimo! — clamava Francisca, aludindo à taxa cobrada pela Igreja.
Jacobo, como a maioria dos lavradores que se rebelavam contra os abusos do clero, resistia a pagá-la, o que indignava sua filha Francisca, muito supersticiosa. Também colocavam a culpa nas taxas que pagavam ao amo, na que deviam ao rei, nas alcavalas e em todas as forças que se conjuravam no mundo contra os pobres camponeses da Galícia — mas esse princípio de rebelião era sufocado pelo esgotamento físico. Por fim, restava apenas um desespero silencioso. Não raro, algum membro da família acordava durante a noite dizendo que sentia o cheiro delicioso de pão de centeio. Do desespero ao delírio, era apenas um passo.
Apesar de tudo, Jacobo fazia o impossível para que a vida seguisse com resquícios de normalidade. Coube a ele tomar as decisões mais difíceis, como sacrificar a bezerra esquelética antes que morresse de inanição. Com o que conseguiram em troca dela, compraram toucinho, sementes para o ano vindouro, farinha e um pouco de chouriço para fazer uma oferenda de Páscoa ao cura. Uma coisa era não pagar o dízimo, outra era esquecer-se da relação pessoal. Podia-se até odiar a Igreja, mas se dar bem com dom Cayetano era senso comum.
Assim, atravessaram os meses mais difíceis. Jacobo sentia-se cansado de viver à mercê de acontecimentos que não podia controlar. Um ano sem colheitas... E o seguinte? E se o frio voltasse? Por mais que não quisesse encarar a ideia, a possibilidade de uma catástrofe ainda maior despontava no horizonte. Todos sabiam que, na carona da fome, vinham as pestes e a varíola.