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Havia décadas, a Espanha inteira vivia o drama da chamada “contribuição de sangue”, uma sombra funesta que pairava sobre gerações de jovens. Na cidade de Alicante, assim que completou dezessete anos, Francisco Xavier Balmis y Berenguer foi sorteado para ser um dos recrutas do Exército como “primeira classe de vizinho pechero”. Pechero era uma condição social determinada não pela riqueza, mas pela obrigação de contribuir com o pagamento de algum tipo de imposto pessoal ou de servir ao Exército — a famosa “contribuição de sangue”. Pechero era o oposto de isento, fundamentalmente um privilegiado, fosse porque pertencia à nobreza ou ao clero, fosse por desígnio real. Eram isentos os quinhentos mil fidalgos e todos os que recebiam tratamento de “vossa senhoria” ou “vossa excelência”. Balmis foi medido na sede da Administração Municipal — cinco pés, três polegadas e quatro linhas, ou seja, um metro e sessenta centímetros — e inscrito no livro do serviço militar. Desesperado diante da perspectiva de ser recrutado, percebeu que, embora tivesse estudado muito e pertencesse a uma família bastante querida na cidade, integrava o mais baixo escalão social. Foi a primeira grande decepção de sua vida.

Baixo de estatura e de porte robusto, com um tique que o fazia piscar a intervalos regulares, ainda mais quando ficava nervoso, o jovem Balmis, batizado Francisco Xavier em homenagem ao santo do dia em que nasceu, 3 de dezembro de 1753, gostava muito de estudar, ler e pesquisar. A vida ao ar livre e os exercícios físicos não faziam o seu feitio — era lerdo ao correr, carecia de agilidade e sempre havia sido motivo de chacota para os garotos que brincavam com ele na praça. Imaginava aterrorizado os assédios a que seria submetido no Exército, com o agravante de não poder buscar refúgio em casa.

Havia nascido em uma família cujos membros — o pai, o avô, o tio e o cunhado — pertenciam ao grêmio de sangradores-barbeiros-cirurgiões. Teve uma infância feliz, à sombra de uma mãe bastante protetora e rodeado de uma família numerosa e bem relacionada. Sua casa estava sempre repleta de pacientes que iam se curar, purificar o sangue com sanguessugas ou para que seu pai ou seu avô costurassem alguma ferida na pele. Sua brincadeira favorita era fingir-se de ajudante, organizando os instrumentos e a gaze para entregá-los ao pai quando solicitado. Muitos pacientes voltavam com um presente — um pote de mel, nêsperas, uma peça de queijo — como forma de agradecimento por terem melhorado. Assim, foi contagiado pela vocação familiar de maneira cada vez mais intensa, respaldado por uma memória excepcional para guardar datas e informações.

“Nosso ofício é ajudar as pessoas”, dizia o avô. Essa frase impactou o garoto, que sonhava em salvar pessoas assim como pai, o avô ou os Mataix, outra família de cirurgiões, amigos íntimos dos Balmis que moravam perto e cujos filhos foram seus companheiros de brincadeiras antes que acendesse dentro dele a chama da vocação. Ele logo perdeu o interesse pelas outras crianças, preferindo o contato com os adultos. Salvar pessoas era algo próprio dos heróis, e ele sonhava em ser um herói da cirurgia. Tendo testemunhado tantas operações em casa e na residência dos Mataix, acostumou-se desde pequeno a ver sangue, músculos rasgados, veias cortadas como se fossem tubulações, abscessos extirpados a golpes de bisturi. Isso não o impressionava — pelo contrário, atiçava seu interesse pela complexidade do corpo humano.

— Pai, por que esse homem tem um nódulo aqui? Por que você costura isso antes? Por que não tem como limpar tudo?

— Fique quieto, garoto, você vai me atrapalhar.

— Para que serve o baço?

Perguntava tanto, e com vocabulário tão pedante, que deixava o pai, o avô e a mãe exasperados.

— Rapaz, não seja tão curioso. Vá brincar na praça.

A mãe ficava preocupada por seu filho preferir o convívio com adultos a passar tempo com garotos de sua idade. Haviam dito a ela que o pequeno Francisco Xavier gostava de ganhar sempre e de impor as próprias regras. Por isso, acabava se desentendendo com os companheiros, que, além de tudo, zombavam da maneira desajeitada como ele amarrava os cadarços. Sempre que voltava da praça, estava chorando devido a um acesso de raiva. Enfiava-se no quarto para ler livros de medicina, e era capaz de ficar absorto nos próprios pensamentos durante horas, revirando-se feito um cavalo maltratado. Quando escutava os pacientes chegarem, corria para perto do pai. Quando o garoto fazia uma pergunta diante de um dos numerosos casos que não tinham solução, o pai dizia a ele:

— Se não é possível curar, deve-se ajudar; se não der, deve-se consolar; se não também não houver a chance, fazemos companhia.

Os Balmis, assim como os Mataix e as pessoas que viviam de um trabalho científico e intelectual, estavam impregnados da influência humanista do século do Iluminismo. O jovem Balmis começou a estudar latim e fisiologia, matérias indispensáveis para um aspirante a cirurgião, profissional que por sinal era chamado de “cirurgião latino”. Aos dezesseis anos, havia sido aprovado no teste de latim e estudado dois anos de filosofia; então, conseguiu um estágio no Real Hospital Militar de Alicante. Continuava sonhando em se tornar famoso pelos serviços prestados à humanidade.

Bom estudante que era, tinha um futuro promissor. Sua vida era confortável e prazerosa desde que Josefa Mataix, a filha mais velha da família amiga de seu pai, havia declarado seu amor a ele. Ela era sete anos mais velha que ele, tinha um físico pouco agraciado, um rosto comprido e ossudo e havia fracassado em diversas tentativas de encontrar um marido, mas era desenvolta e mais culta que a média das mulheres.

— É que... vejo que você sempre tem as ideias tão claras, é tão decidido que... que... — Ele não se alterou. Josefa prosseguiu: — Olhe no fundo de meus olhos, vai. Nem que seja uma vez só...

Tinha dificuldade para entender as emoções dos outros. Josefa lembrava-se de ter escutado a mãe de Balmis dizer: “Esse garoto não sente nem padece!”. Era ingênuo e desprovido de malícia. Balmis teve de fazer um esforço sobre-humano para olhar Josefa nos olhos, e ela deu um beijo em sua boca como um toureiro que crava uma estocada. Quando os rostos se separaram, parecia que Balmis, em vez de ter vivenciado a emoção de tal surpresa, terminara um exame bucal de rotina em um paciente. “Esse é o encanto dele”, disse Josefa a si mesma. Ela o arrastou a um baile em que, rígida como uma escova, deixou-se guiar por ele, que cambaleava por ser descoordenado e ter ouvido ruim para a música.

No entanto, fora do baile, deslumbrava-a com sua curiosidade insaciável, principalmente para tudo o que, de maneira óbvia ou distante, fosse ligado à saúde. Se passeavam pelo campo, interessava-se apenas pelas plantas que pudessem ter algum efeito curativo. Suas lojas preferidas eram as boticas, e ficava tão absorto em frente às fileiras de potes e frascos que Josefa, entediada, precisava tirá-lo de lá puxando-o pelo braço. Se o relacionamento deu certo, foi porque ambos pertenciam ao mesmo mundo, eram quase familiares, e sobretudo porque, à noite, Josefa se esquecia das convenções e soltava as rédeas de seus irrefreáveis impulsos sexuais. Fosse na praia, fosse em algum alpendre, o fato é que iniciou Balmis nos prazeres do amor. Não existia postura ou ato que não conhecesse e de que não desfrutasse com ardor, como se temesse um dia ficar sem aquele elixir de vida. Ao sexo, como em tudo na vida, Balmis direcionava um olhar clínico. Conseguia ter prazer, e muito, mas sempre depois de ter apalpado, manuseado e escrutinado com os dedos os rincões mais recônditos do corpo de sua companheira. Era como se precisasse experimentar o terreno antes de se deixar levar. Também era uma maneira de aproveitar a experiência para acumular conhecimentos sobre o corpo humano. Balmis não dava ponto sem nó.

Assim, pelas manhãs, chegava esgotado para desempenhar suas funções de meritório ao lado do cirurgião-chefe do hospital. No fundo, o que fazia era continuar a mesma tarefa: a de decifrar os segredos do corpo. Ali aprendia a arte de sangrar, abrir ventosas, posicionar sanguessugas e arrancar dentes.

— A cirurgia e a barbearia não deveriam andar misturadas... — disse um dia ao cirurgião-chefe.

— Por quê?

— Porque um cirurgião é mais que um barbeiro. Consideram a nós, cirurgiões, trabalhadores braçais.

— Assim como os sangradores.

— Mas eu quero trabalhar com a mente, como os doutores em medicina.

— Então terá de estudar muito.

— É o que pretendo.

Por isso, para Balmis, o resultado do sorteio e a decorrente convocação para as fileiras ameaçava acabar com sua carreira e destroçar sua vida.

— Não sou contra o Exército — dizia ao chefe, que o entendia perfeitamente. — Como poderia, se trabalho no Hospital Militar?

— Você só não quer servir de bala de canhão, eu entendo.

A família, como tantas outras, encarava aquela convocação com grande tensão, pois temia não voltar a ver o filho caso ele fosse enviado a algum campo de batalha. Para evitar que um parente fosse recrutado, as famílias recorriam a todos os tipos de esquemas, incluindo subornos e falsificações. As autoridades participavam da fraude, sobretudo quando a convocação afetava algum familiar. Subornar o encarregado pela medição era algo tão corriqueiro que houve até mesmo um caso em que um povoado inteiro só registrou homens com menos de um metro e quarenta de altura; oficialmente, todos eram anões.1

Com a cumplicidade do pai, conseguiu livrar-se dessa primeira convocação alegando ser aprendiz no Real Hospital Militar e “ser filho único de pai inválido, que obtém o mínimo sustento por meio de seu trabalho”. No entanto, nos anos seguintes, seria chamado novamente.