Deixar sua condição social para trás e se tornar médico ia contra o interesse do Exército: em 1773, Balmis foi considerado apto a ingressar nos Exércitos Reais. Mais uma vez, a sorte esteve a seu lado. Foi convocado à Administração Municipal de Alicante para se apresentar a um médico-cirurgião, que calhou de ser o pai de Josefa. O laudo médico assinado por Tomás Mataix dizia: “Examinado pelos facultativos, que disseram que sofre de reumatismos frequentes e tem limitações de visão, ficando assim inabilitado para trabalhar no ofício de sangrador, motivo pelo qual foi liberado”.
Foi excluído de novo da lista, mas por pouco tempo. Alguns meses mais tarde, chegou uma admoestação do comando de Valência: havia sido novamente incluído na lista porque o laudo anterior fora considerado inconclusivo. A partir desse momento, Balmis poderia ser declarado prófugo e até ser preso. Um irmão de Josefa, seu amigo de infância, encontrava-se na mesma situação. O ambiente em Alicante estava tenso, e não havia dia em que os rapazes não provocassem algum tipo de tumulto diante da injustiça que representava a “contribuição de sangue”. Os motins e as revoltas faziam parte do cotidiano. Assim como as picaretagens, pois todos lançavam mão delas para se livrar. Balmis evitava ficar em casa, porque poderiam aparecer para prendê-lo, e morou um tempo com os tios em Muchamiel, povoado próximo. Josefa o visitava todos os dias — tinham rotina de eternos namorados –, e foi ela que, com uma proposta, o brindou com uma oportunidade de se salvar.
— E se nos casarmos?
Balmis tinha vinte anos; ela, vinte e sete. Para ela, Balmis era a última oportunidade. Todas as tentativas anteriores de conseguir um matrimônio haviam fracassado. Não podia permitir que aquele terminasse da mesma maneira. Para ele, o casamento significava livrar-se definitivamente do Exército, continuar os estudos e perseguir seus sonhos e suas ambições. Demorou pouco para se convencer de que a atração física ou a paixão não eram requisitos indispensáveis para constituir uma família. Seus pais não interferiram no assunto — embora a diferença de idade surpreendesse, tinham consciência de que unir as duas famílias mais importantes de cirurgiões poderia salvar a vida de seu filho e, no fim das contas, Josefa já era como filha deles. Assim, casaram-se em 30 de março de 1773, na paróquia de Santa María de Alicante.
Um mês depois, Balmis escreveu para a secretaria de recrutamento solicitando a retirada da admoestação e sua exclusão da lista. “O exponente declara-se livre de entrar no sorteio por estar casado. Embora seu matrimônio tenha sido celebrado depois da Ordem Real de Quintas, não foi de motivação fraudulenta nem por vontade do exponente, mas por efeito de instância judicial movida por Josefa Mataix.” Em 8 de julho, por fim, declarou-se que Francisco Xavier Balmis gozava de isenção.
Dois anos depois, Josefa engravidou. Quando estava no quinto mês de gravidez, Balmis disse a ela que iria para a guerra.
— Como é? — protestou.
— Preciso de horas práticas para prestar a prova de cirurgião. Meus professores propuseram que eu me aliste no hospital de campanha que faz parte de uma expedição naval sob comando do general O’Reilly.
— A vida inteira lutando para se livrar do recrutamento, e agora, justo nesse momento, você se alista?
— Ir como médico não é o mesmo que ir como soldado raso. É uma missão sem riscos; dizem é como um passeio militar.
— Um passeio militar! E você acredita nisso...
Balmis tinha vinte e dois anos, sonhava com a glória, acreditava na invencibilidade do Exército e sentia-se protegido porque ficaria na retaguarda.
— Estarei de volta em um mês — disse.
Invadiriam Argel para acabar de uma vez por todas com a base das incursões dos piratas berberes na costa espanhola. Lembraria durante toda a vida a meticulosidade com que limpou os instrumentos cirúrgicos na cabine do barco que servia de hospital: o trocarte, a chave de grifo do trépano, a serra e sua folha de rosto, as pinças hemostáticas, o escalpelo, as agulhas, as legras, o tira-fundo, os bisturis... Balmis era metódico e queria receber os feridos sob as melhores condições. Tudo estava limpo e reluzente, inclusive a madeira do piso.
Mas a batalha começou e disseminou o caos. O Exército espanhol havia dedicado vários meses à preparação e à equipagem dos navios, mas nada fizera para conhecer as forças do inimigo, mais numeroso e mais bem organizado do que imaginaram. Logo chegaram embarcações carregadas de feridos. Balmis percebeu que ninguém havia pensado em como fazer para trazer a bordo os feridos mais graves, de modo que tomou uma iniciativa.
— Ajeitem os homens com redes e cabos! Envolvam os feridos e tragam todos a bordo!
Era tamanha a avalanche que não havia redes nem cabos suficientes. A cabine do pequeno hospital foi ficando repleta de vítimas daquele “passeio militar”. O sangue jorrava em abundância em meio à madeira do piso, os feridos proferiam gritos atrozes, e os que morriam eram imediatamente lançados ao mar, sem mortalha nem bala de canhão. Seu pai não dizia que a dor e a infecção, sobretudo a gangrena, eram os grandes inimigos dos médicos? Também havia aprendido com ele que hábitos extremos de higiene eram fundamentais, mas como fazer isso em meio a tanto sangue, pus, sujeira, excrementos e dor? Ao cabo de horas, aquela cabine se tornara um espantoso amontoado de vivos e mortos. Embora se sentisse sufocado pelos acontecimentos, Balmis conseguiu manter um admirável sangue-frio.
— Como não podemos atender a todos — disse aos ajudantes —, precisamos descartar aqueles com ferimentos no ventre, porque esses vão morrer de qualquer maneira devido à infecção.
— Amputem, imbecis, amputem!
Era o método mais seguro para salvar vidas ameaçadas pelos estragos das hemorragias.
— Apliquem torniquetes, fechem as feridas, suturem os vasos! Rápido, pois não temos tempo!
Balmis cauterizou cotos com os ferros que tirava da estufa que ficava em um canto da cabine. Os gritos daqueles soldados ficaram gravados para sempre em sua mente. Quando começaram a chegar oficiais feridos, tomou consciência da magnitude da derrota. O primeiro foi o comandante Bernardo de Gálvez, militar de Málaga, muito conhecido, que havia conquistado o grau de tenente aos dezesseis anos por sua participação na guerra contra Portugal e acabara se tornando capitão do Exército Real graças ao sucesso na campanha contra os apaches na Nova Espanha. Por ter sobrevivido a numerosos e graves ferimentos, era considerado herói. Agora Balmis o tinha diante de si, retorcendo-se de dor com uma ferida na perna, pela qual perdia sangue.
— Dom Bernardo, não temais, estou aqui para salvá-lo.
Não podia tratá-lo sem antes mitigar seu sofrimento. As maneiras de fazê-lo eram escassas: a mandrágora nem sempre funcionava, o ópio era difícil de dosar. Fumar haxixe e tomar uns bons tragos de aguardente ajudava, mas essas opções não estavam disponíveis naquele momento. Balmis optou pelo mais eficaz, embora também fosse o mais arriscado: pegou um pedaço quebrado de um remo de balsa e desferiu uma pancada na cabeça de Gálvez, que perdeu os sentidos.
— Rápido, precisamos cauterizar antes que ele acorde com a dor!
Queimaram o coto com um ferro de vermelho incandescente. Quando Gálvez recuperou os sentidos, dirigiu-se a Balmis com a voz fraca:
— Serei eternamente grato a você, jovem.
— Vos referis à pancada na cabeça?
Gálvez teve vontade de rir, mas seu rosto se contorceu em uma careta de dor. O que jamais teria imaginado era que Balmis havia perguntado a sério, porque não entendera a ironia. Tampouco concebia que lhe agradecessem por seu trabalho. Balmis não suspeitava que aquele golpe na cabeça de Gálvez havia sido um golpe do destino.
Quando o general O’Reilly ordenou a retirada e foram averiguadas as baixas, Balmis deixou de acreditar na glória militar: quinhentos mortos e dois mil e quinhentos feridos — era sangue demais derramado em vão. Ali não havia fama nem honra, apenas vergonha. A impotência diante das feridas causadas pelas armas de fogo, a frustração de não poder aliviar a dor e a incapacidade de salvar mais vidas provocaram nele um sentimento profundo de mal-estar. “Como é limitado o alcance da cirurgia militar”, pensou, balançando a cabeça como costumava fazer quando era tomado pela angústia.
Após a derrota, a frota regressou a Alicante, que se tornou um enorme hospital de campanha. Ninguém entendia como uma expedição tão potente e que havia exigido tanto tempo de preparo fora derrotada em horas. As pessoas olhavam para os feridos com desprezo, e não se furtavam de comentários debochados:
— Foram em busca de glória e nos deixaram na merda!
Quando Balmis reassumiu seu cargo no Hospital Militar, seus superiores o cobriram de elogios.
— O senhor se destacou pela capacidade de decisão, pelos bons reflexos e pela atitude incansável durante a batalha — disseram.
Também seria lembrado como o homem que salvara Gálvez, que por sua vez acabara de ser promovido a tenente-coronel.
O nascimento de seu filho, que foi batizado como Miguel Joseph na Igreja de São Nicolau, contribuiu para dissipar o sentimento de humilhação provocado pela derrota. Com os relatórios médicos em mãos, Balmis, que havia iniciado os trâmites para conseguir o título oficial de cirurgião, foi a Valência ser testado pelo Tribunal Real de Protomedicato, instituição responsável pelos serviços de saúde.
Ao regressar a Alicante, passou a questionar: queria mesmo permanecer naquela cidade?
— Mãe, fui aprovado, já sou cirurgião militar.
A mãe o acolheu nos braços.
— Já superou seu pai, meu filho — disse, com ternura, passando os dedos pelo cabelo bagunçado. — Agora cabe a você tomar o lugar dele, como ele fez com seu avô, não é?
Balmis afastou-a com suavidade.
— Mãe, o mundo é muito grande.
— Você não quer mais trabalhar como sangrador-cirurgião?
— Não sei o que fazer, mãe. Poderia ficar em Alicante e exercer a profissão, o que seria mais fácil para mim, mas quero seguir com minha carreira de cirurgião militar, ser promovido a cirurgião-mor e, então, quem sabe, a cirurgião de câmara do rei. Quero ser médico, viver de minha cabeça, não de minhas mãos.
— É uma carreira muito difícil, meu filho. Aqui você tem uma vida segura, uma esposa, um filho.
— Sim, mãe, mas eu gosto de testar remédios, descobrir métodos de cura, estudar as doenças, fazer experiências.
— Nisso você não mudou nada desde garoto, mas como fará para pagar os estudos de medicina? Seu pai não tem condições, você sabe disso.
— Sei...
O jovem sentia-se incomodado, dividido entre a possibilidade de permanecer em Alicante ou ingressar no regimento para prosseguir com os estudos que o pai não podia pagar. Tinha vinte e três anos, uma sólida vocação para a medicina e era ambicioso. Tinha o objetivo de ascender na escala social, de nunca mais ser um pechero. Poucos dias depois, retornou à casa da mãe.
— Ainda não contei para Josefa, mãe, mas os médicos do Hospital Militar facilitaram as coisas para que eu ingresse no corpo de saúde militar. Dizem que tenho méritos de sobra. É só questão de tempo.
Foi designado para o regimento de Zamora, que se dispunha a efetuar o bloqueio terrestre de Gibraltar.
— Não chore mais, Josefa. Juro que voltarei logo de Algeciras.
— Prometa que nunca vai nos abandonar.
Mas Josefa não acreditou nele. Conhecia Balmis, seu desapego, sua paixão pela medicina. Além disso, lembrava-se bem do sentimento de abandono, que ficara gravado em seu coração quando fora deixada por outros. Chorava sem parar, pois no fundo sabia que Balmis era mais um homem que escapava de suas mãos.