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Em Alicante, Josefa Mataix com certa regularidade recebia cartas do hospital de Algeciras, onde as tropas espanholas iniciaram o bloqueio de Gibraltar por mar e terra. “Precisei livrar meu quarto dos percevejos, e sabe como fiz isso? Colocando pedaços de arenque enrolados em papel debaixo do colchão. Ficou tudo fedido, mas os percevejos caíram fora.” Em outra carta, contava como havia operado um ferido, vítima das incessantes balas de canhão dos ingleses, no mesmo lugar onde havia caído. “Esse ato me rendeu a promoção a segundo ajudante de cirurgia”, concluía orgulhoso. Balmis raramente perguntava por ela ou pelo garoto, cujo sustento era assegurado pelo avô paterno, que acreditava que a carreira que o filho estava seguindo era a maneira de chegar ao mais alto patamar, muito embora ele também preferisse que houvesse ficado em Alicante.

Em seguida, as cartas começaram a ficar mais espaçadas: contava que estava envolvido em uma ação bélica, mas sem guerra, que praticamente não havia feridos nem acontecia nada, mas que esperava obter honras militares quando ocorresse a batalha final da investida. Enquanto isso, estudava francês, idioma do qual já tinha algumas noções básicas, o que era indispensável para que se mantivesse em dia com as inovações médicas. Queria ampliar seus conhecimentos para não falhar na prova para cirurgião-chefe. O que Balmis não dizia nas cartas era que, para espairecer e matar o tédio, além de estudar, ele frequentava tabernas e prostíbulos. Naqueles bordéis, como no hospital de Algeciras, percebeu os estragos causados pelas doenças venéreas e se interessou pelo “morbo gálico”, a sífilis, que causava mais baixas nas tropas nacionais que os britânicos. As formas de tratamento eram um tema inesgotável de conversas entre os médicos militares do hospital, que lhe aconselharam frequentar o bordel destinado aos oficiais, mais limpo e higiênico, onde havia controle médico. Um dos clientes assíduos era um alferes chamado José de Iturrigaray, senhor andaluz nascido em Cádiz, embora fosse de descendência navarra, que havia pouco participara da campanha em Portugal. Alto, com nariz aquilino, uma queixada imponente e lábios finos, era um homem simpático, feliz por estar em sua terra, e era tão egocêntrico que olhava o próprio reflexo em qualquer superfície refletora, como o vidro de uma janela ou lentes de óculos. Sempre buscava ser o centro das atenções e, embora não fosse o tipo de pessoa que inspirasse confiança em Balmis, divertia-o ao contar piadas.

— Já lhe disse quatro milhões trezentas e cinquenta e cinco mil vezes para não ser exagerado!

Balmis sempre ria, por convicção ou educação, pois simplesmente não via graça em ironia. O que nunca pôde imaginar era que acabaria deparando com José de Iturrigaray, o astuto andaluz, no momento mais delicado de sua vida.

O contato com aqueles médicos militares, profissionais que haviam estudado no exterior com bolsas concedidas pelo rei e que almejavam introduzir a modernização científica na Espanha, constituía um ambiente cultural enriquecedor. Balmis aperfeiçoou sua experiência e ampliou seus conhecimentos em áreas alheias à cirurgia. Por exemplo, o doutor Timoteo O’Scanlan, um dos maiores difusores da variolização, iniciou-o na prática da inoculação para lutar contra a varíola. Outro médico iniciou-o em diversos tratamentos para combater a sífilis. O tempo passado em Algeciras ampliou seus horizontes. “Cada vez sinto mais que minha pátria é a ciência”, escreveu ao pai.

Após dois anos de investidas que castigaram duramente a população do Peñón e quando estava a ponto de se render, a esquadra do almirante inglês Rodney derrotou a frota espanhola que protegia a baía de Cádiz. Apesar das enormes baterias flutuantes que desarticulavam estrondosamente o ataque da artilharia contra Gibraltar, os ingleses abriram caminho e fizeram uma entrada triunfal em Peñón. O povo faminto se lançou contra os mantimentos e os apetrechos que Rodney levava da Inglaterra e contra os espólios.

Entre os espanhóis, difundiu-se o desânimo e a raiva. Balmis ficou sem batalha final e, portanto, sem honras castrenses. Era a segunda derrota militar que vivenciava.

Mas a verdadeira batalha dele era sua carreira, que triunfava. Sua postura durante as investidas lhe rendeu um novo agraciamento em reconhecimento a seu esmero, sua aplicação e seu zelo no cumprimento das obrigações, e ele finalmente foi promovido a cirurgião do Exército. Voltou a Alicante com uma licença indefinida, à espera de um novo destino. Seu filho acabara de completar dois anos.

— Dessa vez, eu e o menino vamos com você — disse Josefa.

Após tanta rotina militar, era reconfortante levar uma vida estável na grande casa da família Balmis, que também acolhia sua mulher e seu filho. Mas ele se sentia sufocado naquele mundo tão pequeno. Já sabia tudo sobre os limites da profissão de seu pai e de seu avô. O que mais poderia aprender ali? Tinha saudades do convívio com grandes médicos que incitavam sua curiosidade e seu afã de aprender. Aos vinte e oito anos, mais que com Josefa, estava casado com a medicina castrense.

Um dia chegou uma carta com o timbre de seu regimento. O coronel solicitava sua presença como ajudante do cirurgião-chefe em uma expedição que combateria alguns grupos de rebeldes em Nova Granada para em seguida instalar-se no México. Na carta, pediam que realizasse os trâmites necessários e se apresentasse em Cádiz o mais rápido possível. Quem estava no comando do Regimento de Zamora agora era o general Bernardo de Gálvez, oficial cuja perna Balmis havia cauterizado durante a batalha de Argel. Havia prosseguido com sua carreira fulgurante na América, onde fundou a cidade de Galvestown e foi nomeado governador de Louisiana.

Josefa, que mantivera a ilusão de que nomeariam seu marido cirurgião em um hospital da região, de Valência ou talvez de Cartagena, ficou desolada.

— Vamos à América com você — disse a Balmis.

— Não convém — respondeu ele, com cautela e distanciamento. — A América fica longe, a viagem é perigosa, há doenças estranhas e incuráveis... O garoto é muito novo.

Estava munido de argumentos irrefutáveis, de modo que Josefa precisou resignar-se outra vez a uma nova separação, que se avultava mais longa, mais difícil e mais penosa que a anterior. O que mais doía nela era que Balmis não disfarçava a vontade de partir nem a empolgação que sentia diante daquele novo desafio. Ter sua presença solicitada por Gálvez, o militar mais célebre da Espanha, era uma honra que o enchia de orgulho. Nada como ter um padrinho para prosperar na vida. Até agora, embora tivessem resultado em catástrofe, as duas aventuras militares de que havia participado deixaram como saldo promoções profissionais. Tinha motivos de sobra para pensar que aquela nova empreitada lhe traria outras conquistas, novas oportunidades de brilhar em seu trabalho. O pai de Balmis entendeu isso e, como sempre, o apoiou. Josefa ficaria sob seus cuidados, na casa da família, impotente e entristecida, percebendo que o abismo que a separava do marido era cada vez mais intransponível.

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O Novo Mundo fascinou e aterrorizou o jovem Balmis. A benevolência das costas, os rios navegáveis, as formidáveis escarpas das montanhas, as selvas exuberantes — era tudo em outra escala.

Querida Josefa,

Duvido muito de que o garoto e você teriam sobrevivido a esta viagem, portanto não se descabele achando que poderia ter me acompanhado. Aqui, tudo é maior e mais intenso. Não chove — caem dilúvios. O sol não esquenta — queima. A vegetação é de uma densidade inimaginável. É uma natureza descontrolada. A umidade e o calor são extremos. Assim que desembarcamos no porto de El Guajiro, nossas tropas se dedicaram a combater indígenas sublevados pelos criollos, que são os descendentes de espanhóis nascidos aqui. Como nossa superioridade é clara, agora o comando está negociando a paz. Deram indulto a diversos dos cabecilhas e estão prometendo entregar aos criollos alguns cargos na administração. Eu, enquanto isso, dedico-me a observar os habitantes das aldeias. É desolador: homens, mulheres e crianças devorados pelas picadas da varíola jazem por toda parte, rodeados por sujeira e imundície. A maioria dos índios, que andam nus e com o corpo grosseiramente pintado, está abatida e desnutrida. Há muitos cegos com os rostos cobertos de grânulos. Nunca pensei que pudesse existir semelhante grau de miséria humana. O padre Espinosa, missionário local, disse-me que, segundo seus cálculos, um em cada três índios morre de varíola... No entanto, eles não acreditam que seja uma enfermidade, pensam que são vítimas da cólera de seus deuses.

Balmis percorria caminhos estreitos e tortuosos, interrompidos por rios caudalosos. Exausto, sentava-se em uma cadeira estreita com uma longa tábua que servia de encosto, a mesma que ia nas costas do estribeiro, o índio transportador. Viajava com o olhar fixo no caminho que deixava para trás, sem conseguir evitar golpes e arranhões dos galhos. Seu tique já não era uma simples piscada, mas uma contração do rosto na altura dos olhos, como se sua face encolhesse de repente e seu pescoço se espichasse. Era o terror das crianças indígenas, mas também o motivo de alegria dos mais velhos, que, apesar de suas abjetas condições de vida, não perdiam a candura.

— Se a varíola ataca um selvagem desses, recém-saído da mata, temos um homem morto — dizia o padre Espinosa. — Sabe por quê? Porque só lançará mão de fórmulas mágicas e duchas frias. Não entendem que as epidemias são um castigo divino pela vida de depravação que levam.

— Não coloque Deus no meio disso, padre. Ele não tem nada a ver com isso.

— Então como o doutor explica que um em cada três índios morre de varíola? Caem feito insetos; por vezes tive a sensação de que não sobraria nenhum vivo. É bem visível que Deus não os protege... Algum motivo há.

— É só por causa da varíola, doença de causa desconhecida. Se morrem mais rápido e em maior número que nós, é porque têm o corpo mais fraco.

— Então o doutor não acredita que seja castigo de Deus?

— Padre Espinosa, acredito na ciência acima de tudo, e que Deus me perdoe — disse, benzendo-se enquanto espichava o pescoço.

O cura direcionou a ele um olhar cético. Aquele homem com um tique tão curioso, que contraía o rosto em um gesto que não era riso nem cansaço, que não acreditava em Deus, mas não deixava de se benzer, pareceu-lhe só mais um depravado. Sob sua ótica particular, havia depravados de todos os tipos: depravados indígenas e depravados brancos, como aquele a sua frente. Preferiu mudar de assunto.

— O ruim disso tudo é que os nobres e os proprietários de terra hispano-americanos ficam sem mão de obra.

A brutal sinceridade do cura desencadeou outro tique de Balmis.

— Tem razão, precisaríamos fazer alguma coisa para conter a varíola. Muita gente na Corte não percebe que esse também é um assunto político, não apenas de saúde. Por ora, a única coisa que se mostrou eficaz foi um procedimento chamado variolização, mas é perigoso. Só nos resta extremar as medidas de higiene.

— E rezar para os santos.

Ambos sustentaram um olhar de incompreensão mútua. O mundo não se dividia apenas entre europeus e indígenas; as fissuras começavam a se tornar perceptíveis também entre os próprios brancos.

Josefa,

Escrevo-te prostrado a bordo do navio de meu regimento, que nos transporta a Veracruz, na Nova Espanha. Após firmada a paz com os espanhóis europeus, nossas tropas foram vítimas de uma epidemia de febre de origem desconhecida. Vários colegas cirurgiões faleceram, e precisei assumir todo o trabalho. No fim, tampouco escapei. Senti um grande cansaço que me impediu de continuar trabalhando, padeci com alucinações e continuo tremendo de frio, apesar do calor. Pergunto-me se não fui contaminado pela varíola...