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Da viagem que fez até a Nova Espanha a bordo do navio do Regimento de Zamora, Balmis não lembraria nada, tal era seu estado de debilidade, intercalado com momentos de inconsciência. No fim, o barco ancorou em Veracruz, porto com o maior tráfego marítimo em todo o mundo, um lugar onde a febre amarela era tão presente quanto o vício e o contrabando. Centenas de negros, escravos e livres, trabalhavam ao lado de índios do interior na carga e na descarga das embarcações. Pululavam índios do altiplano, reconhecíveis pelo chapéu muito particular que usavam e pelas enormes cargas de cacau. Balmis foi logo retirado daquela cidade insalubre, pesteada de mosquitos e açoitada pelas altas temperaturas, e transportado até o hospital de Jalapa, no contraforte da montanha, onde o ar era cristalino, e os frades, atentos e afetuosos.

— Descartamos a varíola, doutor Balmis — disseram a ele assim que se recuperou. — É muito possível que o doutor esteja imunizado, pois, pelo que entendi, já passou por muitos hospitais.

Balmis assentiu e bufou, aliviado.

— Então... foi o quê?

O frade deu de ombros.

— Há tantas doenças que desconhecemos, doutor. O importante é que esteja bem.

A convalescência de Balmis durou várias semanas, durante as quais aproveitava para dar longos passeios pelos bosques nos arredores e visitar as vilas indígenas, muito diferentes das que havia visto nas selvas de El Guajiro. Os índios da Nova Espanha eram de uma antiga cultura que sobrevivia em seus trajes, seu artesanato, seu idioma e seu profundo conhecimento de plantas medicinais.

— Temos tanto a aprender com eles... — dizia Balmis ao frade que o acompanhava.

Essa sinceridade, habitual para Balmis, podia surpreender. O costume entre as elites de euro-americanos era depreciar os indígenas e toda sua bagagem de tradições e conhecimentos. Mas Balmis era aberto, receptivo e curioso. Depois de recuperar a saúde, os frades pediram que trabalhasse no hospital de Jalapa até receber novas ordens do regimento. Ele aceitou sem hesitar.

Nesse meio-tempo, faleceu repentinamente o vice-rei da Nova Espanha, Matías de Gálvez y Gallardo, homem honrado e amado pelo povo, que, por coincidências da vida, era pai de Bernardo de Gálvez, comandante do Regimento de Zamora. Seu filho Bernardo, que acabara de se instalar em Havana, foi nomeado para substituí-lo. Partiu para o México, onde, em 17 de junho de 1785, tomou posse do cargo. O novo vice-rei tinha a intenção de continuar o trabalho do pai, que, entre outras instituições, havia criado a Real Academia de San Carlos, seguindo o modelo da de San Fernando, em Madri, na formação de arquitetos, pintores e escultores. Também planejava fomentar a atividade agrícola, a construção de estradas, o levantamento cartográfico e, como bom filho do Iluminismo, tudo o que tivesse a ver com o desenvolvimento da ciência e da medicina.

Balmis trabalhava no hospital de Jalapa havia apenas três meses quando recebeu uma carta de Alonso Núñez de Haro, arcebispo da Cidade do México, solicitando sua presença na capital. Balmis intuiu que, por trás daquela convocatória, estava a extensa sombra do novo vice-rei. A muito nobre e leal Cidade do México o surpreendeu pelo contraste entre a miséria de seus gigantescos subúrbios e a magnificência de palácios, conventos e monastérios. Balmis atravessou os salões do palácio arcebispal, vistosamente atapetados com damascos e veludos, com aparadores repletos de porcelanas exóticas do Japão, de vasilhas de prata cinzelada e peças de ouro. Do teto, desprendiam-se belos candelabros e lustres de prata. Foi recebido em um cômodo suntuoso pelo prelado, que, depois do vice-rei, era o homem mais poderoso da Nova Espanha. Vestia uma casula de veludo preto e um colar reluzente de rubis com uma imensa cruz pendurada, também de rubis. Balmis começou a se balançar para a frente e para trás, como fazia quando criança ao sentir-se intimidado.

— Mandei que vós viésseis atendendo à excelente recomendação de vossas faculdades que me foi feita pelo novo vice-rei.

Balmis pigarreou e piscou, franzindo o cenho.

— Foi declarada outra epidemia de varíola em Oaxaca. Na última, morreu metade dos índios. Preciso de vossa colaboração; fui informado de que estais familiarizado com o procedimento da variolização.

— Fui apresentado à prática pelo doutor Timoteo O’Scanlan, um grande especialista. Conhecemo-nos durante o cerco de Gibraltar. Atualmente, é o melhor método preventivo. Mas apresenta muitos riscos.

— Entendo, mas ao menos se pode transformar em incógnita uma morte demasiadamente certa.

— De fato — concordou Balmis.

— Enviei uma circular a todos os curas deste arcebispado para que persuadam seus paroquianos a executarem-na, mas muitos não o fazem porque são contrários à prática. Fecham as igrejas por medo do contágio e fogem, o que me obriga a tomar medidas para que o culto seja mantido. “Fugir da pestilência é boa ciência”, dizem. Os índios também saem correndo, e o problema se agrava porque contagiam parentes nas aldeias do interior. Eu vos peço que viajais às zonas afetadas junto a outros médicos do Hospital de San Andrés para variolizar tantos quanto for possível.

— Sim, mas... Eminência, como haveis apontado, as pessoas costumam ter muito receio quanto à inoculação da doença.

O arcebispo entregou a ele uma pilha de papéis.

— Esse é o censo que, como medida de urgência, solicitei a todas as administrações municipais da região. Inclui uma lista dos que querem ser variolizados e dos que são pobres demais para receber o auxílio de que necessitam.

Balmis olhou para ele, admirado. O fato de um religioso como Núñez de Haro apostar nos avanços médicos era, sem dúvidas, uma boa notícia.

— Será uma honra para mim atender a vosso pedido — disse.

— Ajudai-nos a frear os índices de mortalidade, doutor Balmis.

— Tentarei com todas as forças — disse, assentindo.

Balmis e sua equipe partiram em campanha rumo à cidade de Oaxaca — a Verde Antequera, como era chamada pelos espanhóis por ser parecida com a cidade andaluza e porque as pedras de suas igrejas tinham um tom verde característico. Era uma cidade belíssima, cujos edifícios e igrejas haviam sido concebidos para que as portas e as janelas recebessem sol durante todo o ano. Uma cidade conhecida pela vitalidade e pela alegria de sua gente e pela riqueza de suas festas religiosas zapotecas e católicas. No entanto, a Verde Antequera havia se tornado uma Oaxaca negra. Na entrada da cidade, ardiam imensas fogueiras a fim de purificar o ar. No cemitério da catedral, homens com o rosto coberto enchiam de cadáveres as covas profundas recém-abertas. A plaza Mayor estava deserta, exceto por grupos de indígenas que pareciam sombras famélicas, com manchas e marcas na pele, cicatrizes nos olhos e pálpebras inchadas. Padeciam dos sintomas associados à varíola: tez esverdeada, fadiga extrema e tosse contínua. Era raro ver uma mulher bonita que não estivesse marcada pela varíola. Ao perceber os médicos chegando, muitos reuniam forças para se levantar e buscar esconderijo. A maioria se opunha à inoculação. Balmis ficou sabendo que tratavam a doença com banhos de vapor que, na verdade, serviam apenas para acelerar o contágio. Os curandeiros também prescreviam aos doentes que bebessem e lavassem o rosto com urina quente e aplicassem pimenta amarela nas áreas afetadas. “Vivem reféns do terror”, escreveu ao pai, “temerosos daquilo que os rodeia, imersos em um mundo de espíritos e demônios que controlam as vidas. Acreditam que as oferendas aos próprios deuses — ou as orações ao Nosso — acarretam melhores resultados que os tratamentos dos médicos. O problema, pai, é que muitos dos curas, que exercem grande influência, são igualmente ignorantes”. Quando Balmis sugeriu a um cura que o enterro dos afetados pela varíola deveria ser feito fora das igrejas, o homem respondeu:

— Longe das igrejas? Longe de Deus?

— Veja bem, padre, para evitar o contágio é preciso estabelecer normas estritas de higiene.

Apontou para dois índios que tomavam banho juntos em um açude, tentando limpar manchas e erupções.

— O senhor não deveria permitir isso.

Então apontou para um garoto que bebia do açude, as nuvens de moscas ao redor de uma doente deitada em uma rede e os animais que circulavam no chão imundo.

— Nem isso nem aquilo...

— Para que Deus tenha piedade e livre-os do castigo, rogamos aos santos curandeiros e fazemos orações e penitências.

— Padre, isso não adianta.

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Balmis e sua equipe conseguiram variolizar todos os que estavam na lista do censo. No relatório de viagem, que causou uma impressão muito favorável ao arcebispado, bateu pé quanto à necessidade de combater a subnutrição, a fome, a violência física e a sujeira entre as populações indígenas. Também sugeriu que as autoridades locais — oficiais e curas — recebessem formação para a prática da variolização, a fim de perpetuar o remédio in situ. Como recompensa, Núñez de Haro ofereceu a ele o posto de cirurgião no Hospital de San Andrés, destinado a tratar todos os tipos de doença — um estabelecimento com capacidade para mil leitos divididos em trinta e nove pavilhões.

— O mais interessante para alguém como vós, que gostais da pesquisa, é que o San Andrés abriga a maior farmácia da Nova Espanha, bem como um laboratório e um departamento de dissecações e autópsias.

Balmis se balançava para a frente e para trás. Suas mãos suavam. A proposta era muito sedutora. Do ponto de vista científico, a Cidade do México era a mais avançada de toda a América. Poderia continuar seus estudos de anatomia, fisiologia e botânica. Nunca havia trabalhado em um estabelecimento tão grande e com tantos recursos.

Mas havia um obstáculo.

— Se ficar no México, terei que deixar o regimento...

— Podeis abandonar a milícia na situação de disperso. Posso ajudar-vos com isso.

Disperso era como se chamavam os militares desligados do batalhão ao qual pertenciam para estabelecer residência onde lhes aprazia. Ao escutar aquelas palavras, Balmis viu o céu se abrir e foi tomado por um sentimento de euforia. Ajoelhou-se diante do prelado e beijou-lhe a mão.

Naquela noite, escreveu a Josefa: “Vi-me obrigado a ampliar minha estada na Nova Espanha, a pedido do arcebispo e do próprio vice-rei...”. Era um argumento de peso, inquestionável. Mas Josefa já não respondia às cartas.