21

Em um dia de novembro, Balmis foi convocado secretamente a comparecer no palácio episcopal do povoado de Tacubaya, no vale do México, para ver um paciente. Era um lugar rodeado por extensos e esplêndidos pomares e oliveirais. Sem dizer de quem se tratava, os frades o conduziram por longos corredores até uma alcova. Quem estava na cama era o vice-rei, com a tez enverdecida e a barba por fazer, visivelmente adoentado. O outrora gaiato e simpático Bernardo de Gálvez encontrava-se triste. Balmis se ajoelhou para cumprimentá-lo.

— Nada disso... Levantai-vos, eu imploro.

O médico sentou-se na ponta da cama.

— Mandei chamar-vos porque me salvastes a vida uma vez e, vai saber, talvez consigais uma segunda vez.

— Tentarei. Onde está doendo, senhor?

— O que me dói é a alma.

— Vou examiná-lo.

Enquanto pegava seus instrumentos e começava a apalpar o pescoço do vice-rei, este continuou falando:

— Direi algo, Balmis, que poderá ser útil em vossa carreira... Os piores inimigos não são os franceses nem os ingleses nem nenhum dos que encontramos nos campos de batalha, mas os inimigos internos, os que não vemos, embora estejam ao nosso redor, fazendo reverência para, então, nos apunhalar pelas costas.

— A quem o senhor se refere?

— Aos nobres americanos, aos oficiais reais. A todos os que reprovaram que eu destinasse recursos aos famintos e à melhora da higiene nos subúrbios para combater as epidemias. Minha decisão de destinar à beneficência parte substancial da renda do Tesouro e outros fundos lhes desagradou.

— Ao que me consta, estão agradecidos pelo senhor ter instalado a iluminação nas ruas e retomado as obras do palácio de Chapultepec.

— Isso eles não mencionam... O que fizeram foi levar uma reclamação ao tribunal, que considerou minha atitude pouco formal e incomum entre os governantes.

— Um governante deve buscar o bem público, não é?

— Deveria ser assim... A questão é que dizem que minha popularidade é suspeita. Fui acusado de conspirar para arrumar cargos para familiares e conhecidos e aproveitar meu poder no vice-reinado para separá-lo da Espanha. Em Madri, acreditaram e estão me tratando como traidor da pátria.

A Corte, que meses antes o louvava, agora o havia repreendido tão severamente que Gálvez se tornara um ser melancólico. Balmis percebeu que os sentimentos de injustiça e frustração haviam desencadeado a doença. O vice-rei não conseguia entender por que o tratavam com tamanha dureza, insinuando que era traidor da pátria por querer aliviar a penúria dos mais pobres. Ele, que protagonizara uma das façanhas mais heroicas de toda a história militar espanhola ao entrar sozinho com seu bergantim na baía de Pensacola e render os ingleses, levando o rei a acrescentar a expressão “Eu sozinho” a seu escudo de armas. Ele, que conduzira com êxito a política espanhola de contribuir para a independência dos Estados Unidos, dando nome a uma cidade no Texas e a uma baía no golfo do México. Ele, que esteve à direita de George Washington no primeiro desfile da vitória americana, em 4 de julho de 1783. Agora, o herói havia sido despojado de sua glória por uma virada de mesa. O rei não tinha interesse em exaltar o fato de que a Espanha apoiava os republicanos do norte, pois a ideia de independência poderia contagiar a América espanhola.

— Todas essas cicatrizes — disse Gálvez — não são prova suficiente de meu patriotismo?

Balmis olhou a marca na perna que ele mesmo havia cauterizado, e a batalha de Argel voltou à memória. Foi tomado por um sentimento de raiva contida. Um governante como o vice-rei, que atendia com extremo zelo às necessidades do povo, não merecia ser humilhado daquela maneira. Se aliviar as penúrias dos mais fracos significava ser traidor, definitivamente havia algo de muito errado na máquina do império. Balmis sabia bem que o vice-rei estava acometido por uma doença nervosa provocada pelo abatimento de seu ânimo e seu humor.

— Vou morrer — disse Gálvez, após um longo silêncio.

Balmis olhou para ele:

— Todos vamos morrer. — Então prosseguiu: — Talvez não tão logo como o senhor pensa. Farei uma sangria e receitarei um remédio à base de artemísia, alfazemas e flores de papoula. Recomendo beber muito suco de uva e evitar carnes e salgas, nada muito pesado. E tomar banhos mornos.

Foi a última vez que o viu. Alguns dias mais tardes, naquela mesma alcova, o vice-rei deu seu último suspiro. Tinha quarenta anos de idade. Foi sepultado junto ao pai na Igreja de São Fernando, na Cidade do México. Balmis compareceu ao enterro, onde começaram a correr rumores de que havia sido envenenado. Mas o médico sabia que Gálvez havia morrido de tristeza, vítima da inveja e do receio que sua própria glória havia atraído.

Ficou sem protetor, mas não sem proteção, pois o arcebispo Núñez de Haro foi nomeado vice-rei interino, à espera de um novo, diretamente da Espanha.

Balmis conseguiu ser declarado disperso, com um salário de cento e cinquenta reales ao mês. Nos anos seguintes, seu prestígio e sua clientela cresceram. Sua fama e seus pacientes lhe abriam portas aonde quer que fosse. Apareciam curandeiros de todas as partes para vê-lo e oferecer-lhe novos remédios, cientes de que Balmis se interessava pelo uso de plantas medicinais. Certo dia, chegou um de Pátzcuaro, local pertencente ao bispado de Michoacán, que se apresentava em espanhol como Nicolás de Viana, o Beato. Era um homem magro, de pele acobreada e com rugas profundas no rosto. Tinha o cabelo grisalho caindo até os ombros e usava um colar de plumas ao redor do pescoço. Andava descalço e vestia uma túnica comprida e um casco de pele mal curtida com amuletos pendurados na lapela. Na Espanha, teriam-no tomado por vagabundo ou iluminado. Nenhum médico que se prezasse teria lhe dado a mínima atenção. Balmis tampouco o teria recebido, não fosse pelo documento que o homem apresentou: uma carta de recomendação do Tribunal de Medicina do Hospital de Michoacán.

— Escute, doutor, tenho um remédio para curar a sífilis.

Balmis aguçou os ouvidos: aquele era um tema ao qual dedicara muitas horas de estudo e experiências.

— À base de quê, meu bom homem?

— Quem me ensinou foi uma indiazita, que curou vinte e sete infectados... E escuta só, doutor: sem usar mercúrio.

— Ah, é?

Balmis ergueu as sobrancelhas. Era bom demais para ser verdade.

— Chego para ver o doutor com bolhas nos pés e, como quero ver o resultado da cura reconhecido aqui na capital, peço que venha comigo e confira meus resultados.

— Em que consiste esse remédio? — perguntou Balmis.

— Uma fervura de agave, três onças de raiz da mesma planta, duas de carne de víbora e uma rosa-rubra. Fervo um pouco até evaporar metade, então coo com um pano e entrego para o doente beber na cama, para sair tudo no suor...

— É o que chamam de purgante sudorífico — apontou Balmis.

— Como é?

— Nada, nada, continue...

— Então faço outro remédio, com anis e pó de begônia. Sabe por onde coloco?

Balmis negou com a cabeça. O curandeiro prosseguiu:

— Pelo traseiro.

— Um purgante, você quer dizer?

— Bem, chame do que quiser...

Balmis foi até Pátzcuaro e examinou os pacientes, que de fato estavam livres das chagas e dos demais sinais da doença. Falou com outros médicos, que confirmaram que aquele método utilizado sem distinção de sexo, dose ou idade surtia efeito. Balmis se entusiasmou, convencido de que estava a um passo de encontrar uma cura definitiva para o mal escrofuloso. “O senhor é capaz de imaginar um remédio inócuo, ou seja, definitivo?”, escreveu ao pai. “Seria o ápice de todos os esforços que fiz desde a campanha de Gibraltar para conter essa doença tão devastadora. Sim, pai, acho mesmo que estou a um passo de uma grande descoberta, a qual evitará muito sofrimento e me consagrará como médico...”

Ao longo de três meses, dedicou-se a testar o remédio. Balmis pôs em marcha seu espírito científico: queria separar o que era superstição do que era produto de sabedoria ancestral.

— Vou tentar eliminar a carne de víbora — disse a Viana.

— Mas é a carne de víbora que mata os espíritos que causam a doença! Se você tirar isso, o remédio não vai funcionar.

— Vamos tentar.

— Vocês médicos não confiam... Acha que eu não posso curar um doente apenas com o olhar ou o toque?

Balmis pigarreou, e seu típico tique de piscar se manifestou. Deu-se o conflito entre a inovação científica e a sabedoria tradicional; entre o humanista Balmis, com seu espírito racionalista, e o sábio curandeiro sem formação médica que entesourava remédios eficazes. Viana prosseguiu:

— Tenho de apresentar o doutor à dona Pachita, que senta para meditar em frente a seu altarzinho e, quando escuta um zumbido, entra em transe e realiza operações cirúrgicas. Há curandeiros que, só de olhar, já sabem o que há de errado com o doente.

— Eu, como médico, costumo saber se o paciente está doente ou não assim que ele passa pela porta do consultório. Nisso concordamos.

— Pode ser que vocês saibam se o doente está mal de verdade, mas não acham que é possível curá-lo com o olhar nem com as mãos.

— Não, isso não.

— Bem, eu curo com o olhar. A questão é que vocês sempre querem ter a verdade e só acreditam no que veem e no que podem tocar... Pois vou lhe dizer uma coisa, doutor: seu Deus está em todas as partes e, no entanto, você já o viu alguma vez? Já pôde tocar nele?

Balmis não soube muito bem o que responder. O curandeiro havia tocado em um assunto delicado, no impasse entre religião e ciência. Balmis acreditava em Deus, mas à própria maneira, como uma necessidade para explicar os mistérios da vida.

— Acredito em um Deus único, amigo Viana, mas não nos espíritos nem na magia.

— Então o remédio não funcionará para o doutor... porque esse remédio vem dando resultados há milhares e milhares de anos... E o doutor quer modificá-lo? Você sabe mais que milhares e milhares de anos de tentativa?

À sua maneira, Viana conseguia escancarar a arrogância do médico, que brincava de aprendiz de bruxo. O curandeiro revelara a Balmis os segredos do agave para curar a sífilis, e este, que havia aceitado o “presente”, modificava-o conforme seus caprichos. Para um homem humilde como Viana, aquilo soava como falta de respeito. Sentia que, ao modificá-lo, Balmis estava se apropriando da invenção (e quanto a isso, tinha lá sua razão). Ao humanista Balmis, pensava o curandeiro, faltava humanidade e sobrava ambição.

— Só quero aplicar um método científico a um remédio que sabemos ser eficaz — respondeu Balmis.

— Se funciona, por que meter a ciência nisso? Não altere o que Deus põe em suas mãos...

— Só quero simplificar o tratamento e estudar a fundo os efeitos terapêuticos do medicamento resultante.

— Como é?

Balmis estava convencido de ter deparado com a chave para encontrar um remédio definitivo para o mal gálico, e o enorme benefício que a humanidade tiraria disso não poderia ficar à mercê do respeito a crenças das quais não compartilhava. De modo que deixou o curandeiro de lado e trabalhou com afinco para modificar as fórmulas originais, seguindo o método de tentativa e erro. No fim, preparou o sudorífico com a raiz do agave e com pulque e comprovou que a fórmula era mais eficaz. Como purgante, utilizou somente a begônia, planta encontrada por Martín de Sessé em Pátzcuaro que recebeu o nome de Begonia syphilitica, devido à fama que tinha na região de Michoacán. Balmis descartou todo o resto. “O resultado de meus trabalhos”, escreveu ao pai, “não poderia ser mais estimulante. Trezentos e vinte e três doentes de ambos os sexos, entre homens idosos, mulheres grávidas e crianças contaminadas durante a gestação ou devido à amamentação foram curados sem os efeitos nocivos do mercúrio. O Real Tribunal do Protomedicato, reunido no Hospital de San Andrés na Cidade do México, aprovou meu método por ser simples, barato, seguro e rápido para a cura desse mal venéreo. Pai, confesso que sinto uma satisfação muito profunda...”

Entusiasmado com a descoberta, Alonso Núñez de Haro incentivou todos os médicos do vice-reinado a utilizá-la. Achava que o mundo inteiro devia se beneficiar daquele tratamento tão atual.

— Quero que leveis a descoberta à Espanha — disse a Balmis.

O médico ficou lisonjeado. O passo seguinte — voltar a Madri com uma cura universal contra o mal venéreo e o aval do vice-rei, bispo da Nova Espanha — prometia ser muito excitante.

— Eu poderia continuar com as experiências e as observações na Corte de Madri.

— Sim, Balmis, só vós podeis fazer com que o agave se some a outras plantas que há séculos transformam a farmacopeia europeia.

— O senhor está se referindo à salsaparrilha?

— Sim, e também à jalapa e aos ipês.

— Como sempre, Eminência, eu agradeço pela confiança em mim depositada.

— Eu é que agradeço. Sempre me surpreendeu a qualidade de vossas observações e vossa dedicação ao trabalho.

Balmis escreveu ao pai a fim de compartilhar seu entusiasmo pelo eminente regresso, mas não recebeu resposta. Um silêncio que se somava ao das últimas cartas que lhe enviara. A ideia de que o pai pudesse estar doente ou — não queria nem pensar nisso — morto era um incentivo a mais para apressar a volta.

Na hora de se despedir de seu mecenas, o alicantino estava com o coração apertado. Voltaria a vê-lo?

— Não são muitos os homens de Deus tão dispostos a aceitar novas ideias.

Foi o que disse a ele Balmis, ajoelhado, antes de beijar o grosso anel de ouro que tinha no anular.

— A Igreja não pode ficar à margem das necessidades dos homens — respondeu Núñez de Haro.