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La Granja de San Ildefonso, 4 de novembro de 1802. Uma nevasca precoce surpreendeu a família real dias antes de sua peregrinação anual ao palácio de Aranjuez, onde, como em todos os anos, passariam o inverno desfrutando um clima mais benéfico que o das montanhas de Segóvia.

— Godoy — disse Carlos IV a seu ministro favorito, homem de confiança —, insisto: quero estender minha permanência aqui.

— Com esse tempo, Majestade?

— Até o dia de minha onomástica.

— Então vossa Majestade pensa em cumprir o costume de abrir ao povo os jardins do palácio, mesmo com esse frio?

— O povo aguenta melhor as inclemências do tempo que as mudanças nas tradições.

Manuel Godoy sabia que havia outra poderosa razão pela qual o rei queria permanecer em La Granja. Do pai Carlos III, o monarca herdara a paixão pela caça, a que se entregava todos os dias, do alvorecer até o cair do sol, mesmo quando suas obrigações reais não o permitiam.

No dia do santo que lhe emprestava o nome, Carlos IV apareceu com seu perfil de nariz reto e barriga proeminente na janela do segundo andar do palácio. O povo enchia os jardins mantidos de maneira pulcra, aglomerado ao redor das fontes cuja água dava vida a uma paisagem congelada de abetos muito escuros, debruados pela neve.

— Vê como eu tinha razão, Godoy? Olhe essa multidão...

Quando os visitantes perceberam que a silhueta detrás da janela era do monarca, ergueram o olhar e aplaudiram.

— Viva o rei!

— Viva!

Carlos IV cumprimentou-os com seu aceno distraído de praxe. Permaneceu alguns segundos observando-os. Continuava se deleitando, como sempre, ao ver a dança da água das fontes. Lembrou-se das tantas vezes em que, naquele mesmo lugar, havia celebrado o dia do santo com seu pai, Carlos III, homem sério, imperial. Ao morrer, o pai havia deixado para ele uma lista interminável de conselhos e instruções, e ele se esforçou para segui-los, pois era obediente. Depois os tempos foram mudando, e ele passou a ser movido por outros interesses e a fazer as coisas à própria maneira.

— Quando era jovem, após a saudação, eu ficava espiando as pessoas da janelinha dos fundos, de onde via sem ser visto — contou a Godoy. — Quando houvesse mais gente nos canteiros, eu ia lá e abria a fonte. Ha ha ha! Eu rolava de rir com a reação da multidão, que não entendia por que estava encharcada.

Godoy riu com gosto. Eram outros tempos. Quando Carlos IV era apenas príncipe de Astúrias, o pai dele governava uma monarquia e um império que ainda não haviam entrado na decadência em que eles se encontravam agora. Sem dúvidas, coubera a ele uma época particularmente difícil, na qual se questionavam não apenas a sobrevivência, mas também os próprios princípios da monarquia. Para salvar o trono, vira-se obrigado a blindar o país da influência estrangeira — justo ele, que havia nascido na Itália e era culto e sensível às inovações do Iluminismo. Tal contradição pesava sobre seu caráter indolente. Incapaz de enfrentar sozinho os ásperos desafios da política, delegava os assuntos mais espinhosos à esposa, a rainha María Luisa, e aos ministros, especialmente Manuel Godoy. A religião — comparecia às missas várias vezes ao dia — e seus interesses ajudavam-no a escapar da pressão cotidiana de governar um império envolto em um turbilhão de miséria e desordem até então inauditos. Entre seus interesses, destacavam-se a música (tocava violino e comprou para a Corte um quarteto de instrumentos Stradivarius) e a pintura. Foi ele quem descobriu e manteve Francisco de Goya y Lucientes. No entanto, a mais insólita de suas distrações era a fontanária, resultado de sua paixão pela arquitetura e seu interesse pelos mecanismos que faziam as fontes do palácio de La Granja funcionar. Também gostava de carpintaria e, sobretudo, de relojoaria — gabava-se por não ter sido inventado relógio de bolso que ele não soubesse consertar. Relógios cujos tique-taques marcavam o fim de uma era.

Assim como pelo mecenato artístico, destacou-se também pelo científico, embora na Espanha aquela fosse uma época ruim para a livre circulação de ideias. Em seus primeiros dez anos de reinado, impulsionou as ciências médicas com a criação do Real Colégio de Medicina, bem como de uma escola veterinária e um laboratório de química em Madri, instituições que muniu de vistosas bibliotecas especializadas em medicina, botânica e farmacologia. Patrocinou diversas expedições científicas, como a do barão Alejandro de Humboldt e a de Martín de Sessé pela América do Sul ou a de Malaspina e Bustamante ao redor do mundo. Era, no fundo, um piedoso iluminista aprisionado pelas contradições de seu tempo, amante do progresso, mas temeroso da liberdade que o acompanhava. Demonstrou estar genuinamente preocupado com o bem-estar de seu povo quando, em uma tarde durante aquela estadia em La Granja, obrigado pelo mal tempo a permanecer no palácio, apresentou-se a oportunidade de viabilizar uma façanha médica jamais realizada.

Enfronhado em um cobertor de pele, sentado à mesa de despacho, o rei recebeu ao entardecer seu principal ministro, Manuel Godoy, como era de praxe. Haviam se conhecido quinze anos antes, nos pátios daquele mesmo palácio, quando o cavalo montado por Godoy, então um simples guarda real alto e com vinte e um anos de idade, atirou-o ao chão durante um serviço de escolta. O jovem se recompôs e voltou a montar com total domínio de temperamento, o que impressionou María Luisa, esposa do rei, que testemunhou o acidente de sua carruagem. Mandou chamá-lo, apresentou-o ao marido e, sem qualquer argumento, ambos apresentaram-no à vida da Corte e à política, causando grande perplexidade. Carlos se deu conta de que encontrara aquilo que procurava: um homem completamente fiel a si. Graças a Godoy, podia se livrar para sempre da grande sombra do pai e de todos que continuavam medrando como se ele continuasse vivo. Assim, Godoy foi iniciado em uma incrível carreira. Foi agraciado com honra e riquezas e, aos vinte e cinco anos de idade, nomeado primeiro secretário de Estado.

Um lustro mais tarde, era o homem mais poderoso da Espanha. A pergunta que o rei invariavelmente fazia todas as tardes em que despachavam não demorou a ser feita:

— O que se fez por meus vassalos hoje, Manuel...?

— O que foi humanamente possível, Majestade... — respondeu com sorna. — Vamos tocando as coisas com os inimigos de sempre, e há outros que não nos dão trégua...

Naquele dia, entregou a ele um relatório do vice-reinado de Nova Granada datado de 12 de junho de 1802. Carlos deu um suspiro, pigarreou e pôs-se a ler. À medida que ia virando as páginas, seu semblante foi ficando mais sério. A cidade de Santa Fé de Bogotá padecia de uma terrível epidemia de varíola havia quase dois anos, conforme anunciava o informe. Descrevia-se uma situação desesperadora, em que os cadáveres eram transportados à noite não tanto para impedir o contágio, mas para evitar o pânico. A Administração Municipal enviava uma súplica à Coroa para que intercedesse junto ao vice-rei, que se recusava a liberar fundos da Administração para a construção de um novo hospital e a implementação de medidas de urgência, como cavar valas fundas que servissem de cemitérios especiais, onde se pudessem depositar os cadáveres, instituir espaços para quarentenas e abastecer os locais de cal viva e outras substâncias desinfetantes.

— Santa Fé de Bogotá está submersa nesse mal pestilento — disse Godoy. — Levando em consideração que a epidemia de dez anos atrás matou quase quinze por cento da população, há o temor de que dessa vez a cifra seja superada com folga.

Carlos sentiu um aperto no estômago. Sabia perfeitamente o que uma epidemia era capaz de fazer com uma cidade: primeiro, criar problemas de abastecimento, dando origem à escassez de produtos de primeira necessidade, o que, por sua vez, provocava uma alta desenfreada de preços e, finalmente, levava à ruína.

Convocou seu assistente de câmara.

— Chame o doutor Requena e peça que traga o presente do médico italiano. Ele sabe a que me refiro.

O homem deixou o despacho. Carlos se virou para Godoy.

— A varíola, sempre a varíola — disse, abatido.

Caracas em 1766, Cidade do México em 1778, Guatemala em 1780, Cádiz em 1800... A lista era tão extensa quanto era vasto o Império Espanhol. Cada vez que parecia estar sob controle, ressurgia como uma fênix, sobretudo nas Américas.

E em sua própria família: como esquecer o terror e a tristeza provocados por tantas mortes de parentes próximos? A de seu próprio irmão, dom Gabriel, junto com sua cunhada e a filha recém-nascida, estava encravada com pesar em sua memória. Quando, pouco tempo atrás, sua própria filha María Luisa padecera da doença, sentiu o mesmo nó no estômago que sentia agora, ao inteirar-se da epidemia em Nova Granada. Um medo que paralisava, justamente no momento em que urgia fazer alguma coisa para evitar o contágio e impedir que o pânico se espalhasse pela Corte.

Para ele, assim como para os demais reis da Espanha, a varíola era o inimigo mais antigo, o mais persistente, o mais cruel. Entre suas distintas vítimas mortais estavam o imperador Fernando IV, da Áustria; o do Japão, Gokomyo; o da China, Fu-Lin; o negus da Etiópia; e o próprio rei Luís XV, da França. Na Inglaterra, havia dizimado os Stuart. Estimava-se que, no mundo inteiro, um quinto da humanidade havia sido morto ou desfigurado pela doença. De todas as pragas que açoitaram os homens, era a mais difundida e a mais duradoura. Nem a peste negra nem a cólera, tampouco a febre amarela chegaram a representar flagelo tão universal e persistente quanto a varíola.

O próprio Carlos IV temia às vezes que sua linhagem não sobrevivesse... A varíola não havia acabado com a família real austríaca, abrindo caminho para os Bourbon? Quanto tempo haveria de transcorrer antes que os Bourbon tivessem o mesmo destino que os Habsburgo? Fazia-se essas perguntas, ciente de que a doença havia influenciado a história da Espanha mais que qualquer outro inimigo.

De repente, entrou na sala o doutor Requena, médico de câmara do rei, um homem baixo e gorducho. Segurava uma caixinha de madeira e alguns documentos, que entregou ao monarca após fazer uma grande reverência.

— Como se chamava aquele médico italiano...?

— Doutor Careno, Majestade — disse Requena. Eu trouxe também a cópia do tratado do médico inglês Jenner, dado a vossa Majestade.

Entregou tudo ao rei, que por sua vez repassou a Godoy.

— Pelo que entendi, a vacinação está gerando ótimos resultados — disse.

— Sim, embora aqui as pragas continuem sendo combatidas com oração, mortificação e penitência — apontou Requena, em tom sarcástico.

— Não é fácil convencer as pessoas de que é possível curar um mal com a inoculação do próprio — apontou Godoy.

— Tem razão, só funciona se dermos o exemplo. Como fez vossa Majestade.

Requena se referia a quando Carlos IV decidiu submeter a filha e os dois filhos à variolização, na esperança de que seus vassalos o imitassem. O rei tomou como elogio.

— Segui seu conselho, doutor. Deveríamos fazer o mesmo com a vacinação... Não acha?

O médico assentiu. O rei abriu a caixinha de madeira e tirou dali algumas lâminas de vidro seladas com cera, em cujo interior era possível ver filamentos.

— Esses fios estão impregnados de material purulento de vaca, não é, doutor?

— Sim, vieram com o relatório de Jenner. Se forem inoculados em seres humanos, evita-se o contágio... A ideia que me permiti sugerir a vossa Majestade é organizar uma expedição para levar esses fios aos territórios de ultramar e massificar o uso da vacina por lá.

Godoy permaneceu pensativo e, então, perguntou:

— E não podemos usar vacas de lá, vacas americanas?

— Infelizmente, não — interrompeu o médico. — O vírus da varíola bovina só ocorre em animais do norte da Europa...

— Godoy, a saúde e a felicidade do povo são a lei suprema — disse o monarca, diante da falta de entusiasmo alheia.

Com o olhar fixo na montanha nevada, Carlos IV deixou-se levar por devaneios.

— Seria a única maneira de impedir que a população continue a minguar, que o comércio continue estancado, que os campos sejam abandonados e que se perpetue o declínio da mineração. Se ocuparmos aquelas grandes extensões de terras com homens úteis e laboriosos, que trabalhem e sejam ativos, dissiparemos a felicidade.

Encarou Godoy e continuou em um tom ligeiramente irônico:

— Mais saúde, mais homens produzindo e mais tributos... Portanto, você é o maior interessado em levarmos a prática da vacinação até lá, Godoy.

Uma poderosa questão de Estado avalizava essa ideia: manter e até mesmo aumentar a força de trabalho também era uma maneira eficaz de melhorar as relações com os nobres americanos, que havia alguns anos criaram uma relação tensa com a Coroa devido às obrigações fiscais e ao corte de privilégios locais que Godoy se vira forçado a impor.

Carlos IV se recolheu cedo para dormir, mas não conseguiu pegar no sono. A palavra “varíola” despertava nele um pânico difícil de dominar. Lembrou-se de um documento que o pai lhe mostrara certo dia, uma carta do vice-rei da Nova Espanha, Martín de Mayorga, sobre a epidemia de 1779 no México; nela, dizia que “não se via nas ruas nada além de cadáveres, não se escutava na cidade nada além de clamores e lamentos”. Nunca se esqueceu daquilo nem do dado arrepiante levantado pelos ministros do pai, que estimavam que noventa por cento da população autóctone da América havia sido extinta desde que um escravo negro contaminado pela varíola, Francisco de Eguía, integrante do contingente do conquistador Pánfilo de Narváez, desembarcara em Veracruz, no ano 1518, provocando a primeira grande epidemia no México central. Frei Bartolomé de las Casas havia contribuído com duas causas que tampouco podiam ser ignoradas para explicar a dimensão de tal extinção: a desilusão e a tristeza dos indígenas ao ver seu mundo ruir, além da violência das forças armadas.

— A América do Norte tampouco escapou — dizia Carlos IV, ao aludir à elevada taxa de mortalidade das populações autóctones. — Todo mundo conhece a história do comandante inglês Jeffrey Amherst, que ordenou que enviassem cobertores contaminados de varíola aos índios ottawa. Isso nós não fizemos!

Mas comparar-se aos que haviam feito pior era um argumento fraco.

— Agora, o progresso científico brinda vossa Majestade com a oportunidade de fortalecer o Império — disse a ele o doutor Requena. — Podemos fazer isso montando uma expedição de dar inveja a outras nações.

“Ah, se eu pudesse inverter o curso da história”, pensou o monarca na manhã seguinte, enquanto dava seu passeio diário pelos jardins de La Granja, “e recuperar a prosperidade em meus domínios. Então, meu reinado teria sentido para além da mera política nacional, dos interesses imperiais, da ameaça de nossos vizinhos e das razões econômicas de que Godoy tanto gosta. Um sentido que talvez os homens não entendam agora, mas que nosso Deus todo-poderoso saberá valorizar...”.