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Se Manuel Godoy viu na vacinação dos territórios ultramarinos uma medida política para evitar as ânsias emancipadoras dos criollos e dos nobres americanos, os médicos de câmara do monarca, imbuídos de inquietação científica, viram naquela expedição um formidável desafio médico, técnico e organizacional. A pedido de Godoy, em 28 de fevereiro de 1803, seu conselheiro em questões sanitárias, o médico Joseph Flores, guatemalteco, apresentou à Junta de Cirurgiões de Câmara um relatório.

— O que proponho, senhores, é transportar a vacina em barcos de linha, levando a bordo vacas infectadas com o vírus da varíola bovina, além de uma quantidade considerável de vidros contendo soro vacinal.

Manuel Godoy franziu o cenho.

— Parece-me muito caro e complicado. Transportar vacas contaminadas em veleiros durante semanas? Em que estado chegarão, se é que sobreviverão?

Escutou-se um murmúrio de aprovação.

— Além disso, sabe-se se as vacas do norte da Europa suportarão as temperaturas tropicais?

Mais murmúrio, seguido de silêncio.

O que pareceu digno de interesse foi a ideia central do relatório de Flores: revestir o ato de vacinação de um caráter religioso.

— Minha ideia é envolver os párocos dos povoados da América. Em vez de batizar as crianças, solicitaremos a eles que as levem para ser vacinadas aos seis meses de idade.

— E quem faria o procedimento?

— Na falta de médico local, o próprio cura poderia vacinar, depois consigná-la em um livro paroquial, que se chamaria Livro de Vacinação.

— É uma ideia excelente — disse Godoy, que sabia que tudo o que ficasse a cargo da Igreja e, assim evitasse gastos do Estado, facilitava sua tarefa.

Mas ele estava reticente. Não conseguia se convencer de todo. Em uma reunião com o rei no final de março de 1803, disse:

— A difusão da vacina gera muitos gastos, e os benefícios, se é que os veremos algum dia, são de longo prazo.

O rei respondeu falando na terceira pessoa, que era o que fazia quando não gostava do que ouvia.

— Sua Majestade sabe disso, Godoy. É um projeto para o futuro, mas o futuro já é agora.

— Muitas pessoas serão mobilizadas, grandes questões técnicas precisam ser solucionadas. Além disso, Majestade, há também a dimensão geográfica da empreitada...

Godoy lembrou-o da série de juros reais com o pagamento atrasado, das más colheitas, dos desastres naturais, das epidemias e do século de guerras incessantes que haviam arrastado a Espanha à situação calamitosa em que se encontrava. Se naquele império o sol nunca se punha, sua luz servia também para deixar às claras o déficit orçamentário anual, que continuava a crescer irremediavelmente.

— O bom seria — continuou o ministro — conseguir que as instituições locais financiassem diretamente as vacinas. Por isso, a importância de vinculá-la à Igreja... Deve ser de seu interesse que o pagamento do dízimo nas paróquias não decaia devido à mortalidade dos fiéis.

— Sim, mas o clero precisa de tempo. Uma vez convencido dos benefícios e da necessidade da vacina, acabará se envolvendo, tenho certeza — respondeu o monarca. — Aconteceu o mesmo com a variolização.

— Flores sugere que, para conseguir o apoio da Igreja, vossa Majestade peça a sua Santidade uma bula que santifique a prática.

O rei suspirou. Algo o incomodava naquela proposta.

— Esse Flores confunde as coisas — disse o monarca. — Coloca a religião a meu serviço, mas na verdade é a monarquia que está a serviço de Deus.

— Não há dúvidas de que a grandeza da Espanha deve-se à propagação da fé — replicou Godoy —, mas aqui se trata de garantir que haja cada dia mais almas convertendo outras à fé. Por isso, não seria ruim que Flores subvertesse um pouco a ordem.

Dividido entre a devoção religiosa e a paixão pelo progresso, o rei continuava incomodado.

— Não é um paradoxo que, sendo rei pelas graças de Deus, eu diga ao representante de Deus o que ele deve fazer?

— Ao fim e ao cabo, Majestade, é questão de se apoderar do coração de seus vassalos para convencê-los de que algo será revertido em benefício para eles próprios... E que melhor maneira de fazê-lo, senão pela religião?

O rei esboçou uma careta. O argumento de Godoy ainda o incomodava, embora não pudesse negar que era pragmático.

— Godoy, você está se tornando um político... exempl... sagaz, digamos. Está bem, sua Majestade suplicará ao papa que emita uma bula, e rezemos para que isso ocorra. Mas não podemos esperar até que o clero se convença dos benefícios da vacina. É preciso agir antes, com o que temos à mão. Godoy, o que podemos fazer é instar vice-reis, governadores e demais autoridades civis e militares a fomentar a vacinação por meio de decretos e exigir que deem o exemplo, como fizeram com a variolização. Quanto aos meios para levar a cabo a expedição, solicitemos o conselho do Ministério das Índias.

No ministério, houve longas discussões sobre o objetivo da expedição. “É político, estratégico, filantrópico ou tudo ao mesmo tempo?”, perguntavam-se, confusos. Os debates foram ainda mais inflamados quando se discutiu a maneira de levar a cabo aquela empreitada tão singular.

— Como vamos mudar a situação decadente em que nos encontramos? — disparou o fiscal da Secretaria Geral de Contabilidade.

Na realidade, ninguém sabia como lidar com o problema. A questão que o rei repassara para eles era um grande abacaxi. Fizeram o mais lógico: consultar o Protomedicato, corpo técnico encarregado de fiscalizar o exercício das profissões sanitárias (médicos, cirurgiões e farmacêuticos), além de exercer funções docentes. Enquanto esperavam a deliberação de tão douta instituição, a cúpula do Ministério das Índias sugeriu que se enviassem diversos médicos em barcos de linha a diferentes partes da América do Sul. O marquês de Bajamar, contrário à ideia, formulou outra proposta.

— Montemos quatro expedições, uma para cada vice-reinado, para assim aproveitarmos as divisões organizativas já existentes. Então os médicos espanhóis podem instruir os profissionais locais quanto à maneira correta de vacinar.

— Vós não indicais nem como será transportado o fluido nem a maneira de financiar as expedições — replicou um colega. — Será com os tributos cobrados dos índios, com recursos próprios, com os dízimos eclesiásticos?

No fim, após três meses de hesitação, discussões e ranços, o Ministério das Índias sugeriu, em seu relatório de 22 de maio de 1803, que os gastos fossem inicialmente bancados pelo Tesouro Real e, mais tarde, repostos a partir dos fundos da administração das cidades diretamente beneficiadas pela expedição. O rei ficou irado.

— Três meses para chegar a essa conclusão! Quantos órgãos do Estado foram consultados? Quatro? Cinco? E tudo para que respondam essa obviedade? Godoy, ordeno que acelere o processo e dê prioridade absoluta a essa empreitada.

Godoy nunca tinha visto o rei se enfurecer daquela maneira. Para o ministro, tratava-se de um projeto que só acarretaria problemas, que se somariam a outros imensos, sem solução, que envolviam a administração de um império cujas costuras estavam se desfazendo. Godoy sabia até onde podia manejar o rei, conhecia sua capacidade de influenciar a personalidade passiva e volúvel de seu superior, e sabia medir até que ponto a esposa dele, a rainha María Luisa, influenciava suas decisões. Mas entendeu que, dessa vez, o rei estava falando sério. A varíola mexia com seus brios, e era melhor não brincar com o assunto. Para Godoy, cuja capacidade de análise e síntese dos problemas era conhecida, o desafio a que se propunha o rei se reduzia a algo simples, mas difícil: encontrar um homem capaz de gerir e comandar tal empreitada.