Na salinha fria de sua residência na rua Montera, Balmis terminou a tradução e o prólogo de um tratado sobre a vacina escrito pelo renomado médico francês Jacques-Louis Moreau de la Sarthe. Havia dedicado muitas hora a isso, quase tantas quanto havia dedicado à prática da vacina. Balmis fora um dos primeiros a entender a teoria e a defendê-la com unhas e dentes dos ataques de colegas desconfiados, temerosos da mescla de fluidos entre as espécies. Curiosamente, eram os mesmos que haviam teimado contra o tratamento à base de agave e begônia. Eram sempre eles que se opunham às inovações.
Balmis aprendeu a técnica e ajudou a introduzi-la na Espanha, tornando-se logo o vacinador mais famoso de Madri. Se queria publicar aquele livro, não era apenas porque se tratava de um guia prático de utilidade inquestionável, mas também porque queria se afirmar enquanto conhecedor no assunto. Já era famoso como mestre dos distintos modos de inoculação, do manejo dos instrumentos, da obtenção de soro bovino e do método que devia ser seguido para garantir que a vacina tivesse eficácia.
A publicação daquela tradução e o sucesso da distribuição de fato solidificaram a reputação de Balmis, que começou a receber correspondências de toda a Espanha, até mesmo da Galícia, de onde o doutor Posse Roybanes, assim que terminou de ler o livro, lhe escreveu perguntando como conseguir pus fresco para garantir o sucesso da vacinação. Em Madri, o tratado de Moreau de la Sarthe se tornou leitura obrigatória entre os integrantes da elite médica e científica. O eco daquele sucesso chegou aos ouvidos de Godoy, que convocou Balmis imediatamente ao palácio.
O doutor se preparou de maneira conscienciosa para a reunião com o homem mais poderoso do Império Espanhol. Ciente do motivo pelo qual o chamavam, fez tudo o que pôde para não desperdiçar a oportunidade de dirigir a expedição sanitária que o rei desejava empreender. Sabia que era o homem perfeito para levá-la a cabo, devido a seu conhecimento da prática vacinal e da América espanhola. Era a tão sonhada ocasião para dar o empurrão definitivo em sua carreira. Sabia que a proposta devia ser irrecusável. Não podia falhar.
Quando atravessou o pátio de armas do Palácio Real de Madri, Balmis sentiu o coração acelerar, apesar do preparado de tília que vinha tomando nas últimas horas. Estava intimamente convencido de responder a uma chamada do destino, que lhe oferecia a chance de restaurar sua reputação. “Sim”, pensou, “a justiça divina existe”. Estava cercado por aquelas paredes de granito erguidas por Carlos III, escoltado por um soldado da Guarda Real. Subiu as escadas recobertas por um espesso tecido azul marinho e dirigiu-se ao amplo e suntuoso gabinete do primeiro-ministro, o qual tinha uma esplêndida vista para a serra. Godoy foi a seu encontro e o cumprimentou afetuosamente, como se o conhecesse havia tempos. Balmis não conseguiu conter um par de tiques, encolhendo o pescoço e fechando os olhos diversas vezes, e sentiu que Godoy se segurava para não rir.
— Sentai-vos e escutai — disse Godoy, acendendo um cigarro e dando uma longa tragada.
Balmis se transformou. Em um piscar de olhos, em um de seus tiques, deixou de se mostrar um homem tímido e tolo e adotou uma postura que refletia o que ele era de fato: um cientista com um aguçado senso metodológico, um gestor com grandes dotes organizacionais e, sobretudo, um profissional com uma visão clara e realista dos problemas.
A primeira coisa que fez foi desmontar a ideia que o marquês de Bajamar havia proposto aos colegas do Ministério das Índias.
— Não há sentido em montar quatro expedições. Isso equivale a complicar substancialmente a realização do projeto. É evidente que só deve haver uma.
Manuel Godoy estava gostando do que ouvia.
— Uma única expedição, sob comando unificado, sem dúvidas é mais racional — disse o ministro. — Fretar apenas uma embarcação é menos oneroso para o Tesouro público.
— Deveríamos descartar a ideia de transportar vacas nos barcos — prosseguiu Balmis. — O transporte de terneiros infectados pelo vírus da varíola bovina propicia o risco da transmissão de infecções como a sífilis.
— Então, qual acreditais ser a melhor maneira de transportar o vírus?
— Jenner demonstrou que o vírus da varíola das vacas pode ser transmitido de pessoa para pessoa pelo procedimento de braço a braço, não apenas de maneira direta, do gado para o ser humano.
Godoy arqueou as sobrancelhas, dividido entre a surpresa e o fascínio pelo que escutava. Caíram cinzas sobre sua jaqueta, as quais ele limpou sem vontade. Aquilo facilitava muito a transmissão da vacina.
Balmis continuou a explicar:
— Introduz-se o pus por uma incisão no braço, espera-se até a erupção produzir uma pústula, o que ocorre geralmente em nove ou dez dias, e então extrai-se o líquido dessa vesícula para transmiti-lo a outro indivíduo. Dessa maneira, é possível conservar a vacina por tempo indefinido.
— Então seria possível transportá-la por meio de soldados inoculados.
— Não podem ser adultos... Muitos desses soldados devem ter enfrentado a varíola natural e estão imunizados. É preciso usar crianças.
— Crianças?
— Sim. Essa é a chave.
Godoy ficou pensativo. Tudo parecia se complicar outra vez.
— As crianças são mais frágeis que os adultos, é verdade — prosseguiu Balmis. — Mas não costumam estar imunizadas.
— E não é muito arriscado fazer isso com crianças?
— É claro que há riscos — riscos de que a cadeia de inoculações seja rompida ou de que a vesícula seja destruída antes de sua utilização, por exemplo, com um corte no braço. Pode acontecer. Para minimizar essas chances, precisaríamos vacinar duas crianças por vez, caso dê errado. Elas teriam que ser constantemente vigiadas.
— E vós achais que os pais deixariam os filhos partirem?
— Caso estivessem muito necessitados... Mas já pensei nisso. Como já deve ter sido pensado, pais em são juízo jamais abandonariam os filhos.
— E então?
— Só há uma solução: procurar crianças abandonadas em abrigos. Na Casa de Desamparados de Madri, por exemplo, ou no orfanato do porto de onde partirmos.
Godoy não tinha certeza se o que escutara era uma loucura ou uma ideia genial. Balmis não era lunático, e a ideia soava inventiva e original, embora ele ainda não soubesse bem como executá-la. Uma expedição com crianças levantava muitos questionamentos, de modo que reuniu os membros do Protomedicato. Alguns viram a hipótese como algo simples, até mesmo formidável, outros, como uma aventura arriscada demais, e outros, ainda, como uma excentricidade.
— Desde quando se fazem expedições com crianças? — exclamou um protomédico.
— E se juntarmos Balmis com o doutor Joseph Flores? — propôs Godoy. — Estamos falando dos dois maiores especialistas que há.
Um murmúrio percorreu a sala. Flores fora o primeiro médico a ser consultado, o guatemalteco que seduziu Godoy com a ideia de envolver os párocos nas vacinações.
— O alicantino é um sonhador — disse o doutor Gimbernat, médico muito amigo de Flores. — Cuidado com suas ideias, que às vezes são uma loucura. Vós vos lembrais de quando ele dizia ter conseguido um remédio à base de cactos e margaridas?
— Agave e begônias — corrigiu outro.
— Isso, mas para o que interessa dá no mesmo.
O ataque contra Balmis foi uma manobra grosseira para favorecer Flores. Rasteiras e cotoveladas eram parte da rotina no pequeno mundo dos favores reais, de modo que Godoy insistiu que, embora as capacidades de Flores estivessem acima de qualquer dúvida, vários atributos tornavam Balmis especialmente apto ao cargo. Tinha anos de experiência como cirurgião e uma reputação abalizada por diversos médicos militares, ao que se somava uma grande curiosidade científica e um espírito aventureiro que o levara a viver por onze anos na Nova Espanha.
— O mais sensato seria solicitar a Balmis um projeto de expedição, como aquele que pedimos a Flores, e depois compará-los... — propôs um dos assistentes.
A sugestão foi aceita por consenso.
Alguns dias depois, Balmis apresentou a eles um plano intitulado Regulamento e roteiro para transportar com a maior brevidade a verdadeira vacina e assegurar sua bem-sucedida propagação nos vice-reinados da América. O documento estava dividido em sete tópicos, cuja ideia central era levar uma caravana de crianças não imunizadas e inoculá-las progressivamente durante a viagem. Ficariam sob os cuidados de enfermeiros, que deveriam acompanhá-las em todos os momentos para evitar que destruíssem acidentalmente as vesículas. A expedição contaria com dois ou três ajudantes e um diretor — ele próprio.
A segunda ideia-chave era pôr em andamento um modelo de organização que nem sequer existia na Espanha. Como se fosse uma extensão da sugestão do doutor Flores, propunha-se a criar uma série de juntas de vacinação em cada território, presididas por um chefe distrital, de preferência médico ou praticante, ou então um oficial ou eclesiástico, que ficaria encarregado de manter um livro de registros, conservar a vacina e perpetuar sua prática. O roteiro proposto cobria boa parte do globo: as ilhas Canárias, Porto Rico, La Guaira, Havana... até chegar ao México, de onde sairia outra subexpedição rumo a Santa Fé de Bogotá, Lima, Santiago do Chile e Buenos Aires. Também incluía a possibilidade de levar as vacinas até as Filipinas.
Balmis havia calculado o número de crianças necessárias, doze a cada seis semanas. Previa sair com vinte de La Coruña, pois pensou que lá seria mais fácil encontrar um barco rápido, como uma corveta, por se tratar de um porto com tráfego considerável para a América. Além disso, havia um orfanato de crianças em Santiago. O metódico Balmis havia pensado em tudo.
Os membros do Protomedicato se enredaram em uma discussão bizantina sobre a viabilidade do projeto, a ética questionável de utilizar crianças órfãs e os perigos da empreitada. Cada um pugnava para acrescentar algo. Reconheceram que, tecnicamente, o projeto era sólido. Mas, devido ao fato de nada semelhante ter sido realizado antes, pairava sempre uma sombra de dúvida: era de fato uma ideia inovadora ou uma excentricidade? Ao fim e ao cabo, a reputação da monarquia espanhola estava em jogo, de modo que a discussão não podia ser a toque de caixa. Mas Godoy sabia que o rei tinha pressa, e não dedicaria mais muito tempo ao assunto, de modo que foi diretamente pedir sua opinião.
Carlos IV entendeu de imediato que a ideia era original e muito engenhosa.
— Não vejo problema do ponto de vista moral, já que as crianças acabarão protegidas de um mal que faz estragos.
— Existem os riscos da viagem em si, mas esses existiriam em qualquer circunstância — disse Godoy.
O que vejo é uma oportunidade de exercer sobre meus súditos mais jovens e indefesos a caridade cristã e a generosidade.
O rei sentia uma responsabilidade paternal para com “seus” órfãos; muitos abrigos haviam sido criados com o respaldo da Coroa.
— Contribuirão para o progresso da ciência, o que lhes conferirá dignidade e um sentido à vida — concluiu o monarca.