Madri, maio de 1803. Godoy, ecoando a objeção levantada por um dos membros do Protomedicato, disse a Balmis:
— O doutor Gimbernat insiste que deveis sugerir dois sujeitos para dividir o comando da expedição convosco.
Balmis fechou a cara, contorcendo-se em uma expressão de desgosto. Esse embate vinha diretamente de Flores, por meio Gimbernat, que era seu amigo. Pura disputa de poder. Balmis pigarrou, piscou várias vezes encolhendo o pescoço e disse:
— Acho que seria um erro, senhor. O comando que desejo não é por arrogância ou vontade de mandar, pois mesmo em minha casa deixo as decisões a cargo dos criados. Peço isso pela preocupação de organizar uma expedição tão gloriosa, que será invejada por todas as nações.
— Eu vos entendo, mas...
Balmis não o deixou concluir.
— Dividir o comando equivale a diluir responsabilidade, e, no fim, padecerão os serviços do rei.
— E se, por uma desgraça, que Deus não o permita, vós ficardes doente ou vos encontrardes impedido, por qualquer razão, de exercer as funções? Não o tomeis como demonstração de desconfiança, é antes uma medida destinada a incrementar a segurança de uma empreitada... exem... arriscada. Não é pouca coisa atravessar o oceano com um conjunto de pessoas tão diversas, com tantas crianças e percorrendo um roteiro tão extenso.
— Senhor — disse, muito sério —, para assumir a responsabilidade total pelo sucesso ou pelo fracasso da expedição, preciso exercer eu mesmo a autoridade máxima. Se não houver um líder central, as consequências podem ser calamitosas.
Godoy entendeu que aquela era uma condição inegociável: Balmis não aceitaria ninguém, ainda menos um rival como Flores. O ministro era suficientemente sagaz para se dar conta de que aquela missão filantrópica, a princípio incentivada por todos, despertava receios e ciúmes entre os médicos que frequentavam os círculos de poder da Corte madrilena e que a teima do doutor Gimbernat podia muito bem ser motivada pelo desejo de assumir, por meio de seu amigo Flores, certo poder sobre uma empreitada cujo sucesso implicaria grande prestígio para seu máximo responsável e seus patrocinadores.
Então, Godoy lhe propôs a nomeação de um subdiretor, que assumiria o comando em caso de acidente ou doença do diretor ou caso fosse necessário dividir a expedição. O médico franziu o cenho. Tampouco lhe agradava essa ideia.
— Uma expedição, um barco, um diretor — disse Balmis, lutando para dissimular sua irritação.
Estava incomodado, como sempre ficava ao tratar com gente de uma classe social superior a sua. Não era bom em termos de diplomacia. Apesar de ter chegado muito longe em sua carreira, continuava sentindo o peso de não ter nascido no estrato social que tomava as grandes decisões.
Godoy matizou a proposta.
— Será um vice-diretor integralmente sujeito a vossas ordens.
Balmis resmungou algumas frases, alegando que qualquer um de seus ajudantes poderia assumir o comando e substituí-lo caso houvesse necessidade. Mas lhe faltavam argumentos sólidos para defender com mais convicção essa posição.
— Francamente, creio que tanto sua Majestade quanto a Junta de Cirurgiões de Câmara acharão isso imprescindível.
Balmis acabou cedendo, ainda que a contragosto. Era teimoso, pensou Godoy, mas também organizado, autoritário, tenaz, seguro de si mesmo — qualidades que só gerariam benefícios à expedição. Ficou impressionado com seu entusiasmo contagiante, com a descrição realista das dificuldades que encontrariam e também com a maneira minuciosa com que havia desmembrado as diferentes partidas. Balmis tinha a ousadia e a capacidade de organização que faltavam a Flores. Definitivamente, aquele homem era a solução.