Quando saiu, respirou uma lufada de ar cálido; o vento da serra carregava cheiro de xara. A magnitude do que tinha pela frente lhe dava vertigens. Enfurnou-se em casa para concluir os preparativos com a antecedência exigida pela urgência da epidemia e pela insistência do rei. Não descuidou de nenhum detalhe.
— Salvany, quero que os assistentes tenham uniformes como os utilizados pelos médicos dos hospitais militares.
— E os demais?
— O mesmo dos porteiros do Jardim Botânico.
Salvany direcionou a ele um olhar de assombro, que não passou despercebido.
— É importante para a disciplina, pois o uniforme é um lembrete da posição de cada um na hierarquia, bem como de suas funções.
— Acho perfeito, doutor Balmis. E o que fazemos com o caixote de remédios? — perguntou Salvany. A frase saiu entrecortada por uma tosse seca e recorrente.
— Mandei fazer termômetros e barômetros para anotarmos as mudanças meteorológicas capazes de afetar a qualidade do pus da vacina.
Prepararam cuidadosamente todos os instrumentos. Embora o fluido bovino fosse transportado pelas crianças, também havia dois mil frascos para testar eventuais alterações devido à diferença de temperatura e uma máquina pneumática para criar vácuo e selar os recipientes. Balmis encomendou meio milhar de exemplares da obra de Moreau de la Sarthe que ele mesmo havia traduzido para que servissem de manual para a difusão da vacina nos lugares por onde passaria a expedição. Prevendo que manteria uma copiosa correspondência, solicitou preços especiais para o envio de cartas e pacotes. O ministro Caballero, por sua vez, escreveu ao juiz de Arribadas de La Coruña a fim de encarregá-lo do aluguel de um navio mercante de aproximadamente duzentas e cinquenta toneladas sob as mais vantajosas condições para a Fazenda Real.
No entanto, o fundamental eram as crianças, de quem dependia o sucesso da empreitada. Balmis se dirigiu ao número 117 da rua de Atocha, onde ficava o Colégio de Desamparados de Madrid, orfanato mais antigo da Espanha, construído em 1610. Era um austero edifício de dois andares que também acolhia mulheres incuráveis, parturientes sem meios econômicos e pessoas que não tivessem onde passar a noite. Pensando que Balmis poderia ser um doador em potencial, o cura diretor recebeu-o de braços abertos, queixando-se muito dos cortes orçamentários que a instituição vinha enfrentando.
— Aqui moram cento e oitenta crianças abandonadas, a maioria com mais de sete anos de idade, bem como órfãos de pai e mãe com idades entre seis e treze anos.
Balmis viu que dormiam três crianças em cada cama.
— Mal temos material para a oficina de carpintaria, faltam-nos tecidos para a de alfaiataria e pregos para a de sapataria. A única bem abastecida é a de chapéus, pois dispomos de uma clientela fixa. Veja, vou apresentá-lo ao professor dos enterros.
Balmis cumprimentou um indivíduo vestido de preto, desengonçado e de aspecto boêmio, com cabelo comprido e bigode fino.
— Moro aqui em caráter permanente — disse. — Meu trabalho consiste em ensinar as crianças a ganhar a vida. Elas fazem isso cantando em enterros em troca de esmolas. Ensino-as a cantar e a tocar órgão e acompanho-as em enterros e funerais.
— Buscamos educá-las, dar a elas um ofício para que ganhem a vida — explicou o cura diretor. — As garotas aprendem as tarefas da casa e são preparadas para que um dia possam trabalhar como criadas.
— Na verdade, não vim adotar nenhuma criança. Nem poderia ser doador, mesmo que quisesse...
O cura diretor não conseguiu esconder a decepção. Balmis passou a explicar o motivo de sua visita — escolher seis crianças livres da varíola e vaciná-las para que pudesse transportar o soro até La Coruña. Os dois primeiros vacinados retornariam da Galícia imediatamente, e os quatro restantes seguiriam viagem até a primeira escala, em Santa Cruz de Tenerife, de onde seriam enviados de volta, após terem sido vacinados, na primeira viagem do correio.
Era um pedido tão atípico que o cura diretor não soube o que pensar. Aquele médico aparecera em nome do rei, de modo que não se podia impor obstáculo algum. Na realidade, o cura não estava preocupado com os perigos de tal viagem, mas tinha uma obsessão pela continuidade da educação religiosa daquelas crianças.
— Logo que acordam, às quatro horas da manhã no verão e às cinco e meia no inverno, fazem suas orações. Comungam duas vezes por mês. Antes de todas as refeições, rezam três pai-nossos e a ação de graças. Depois da janta, às nove da noite, há um toque de recolher e eles vão para a cama rezando o pai-nosso.
— Faremos de tudo o que estiver ao alcance para que prossigam com a fé — disse Balmis.
— Essas crianças são arredias, a maioria foi abandonada e guarda rancor, daí ser tão importante que fiquem próximas de Deus.
— Entendo bem, padre.
Balmis estava interessado em falar com o barbeiro, sangrador e cirurgião que também residia ali em caráter permanente. Somente ele poderia ajudá-lo a escolher crianças saudáveis, fortes e que não houvessem sido naturalmente acometidas pela varíola.
— O senhor chegou no melhor momento. É hora do almoço, estão todos juntos.
Atravessaram o pátio em que havia um tanque utilizado uma vez por mês no inverno e a cada quinze dias no verão. Um cheiro forte de repolho saía do refeitório. Naquele dia, havia um cozido de repolho, couve e toucinho. O cirurgião e sangrador apontava as crianças de bochechas avermelhadas e aspecto gárrulo, aquelas que julgava as mais saudáveis. Todas tinham o cabelo raspado para evitar piolhos e olhavam intimidadas para os médicos. Muitas eram raquíticas para a respectiva idade. O cirurgião explicou que isso se devia à desmama prematura ou à falta de ama.
— Todos os rapazotes que o doutor está vendo foram alimentados artificialmente com leite de cabra e sopas de vinho.
— E esse?
Apontou para um garoto de uns oito anos que estava sentado no chão, mordiscando um pedaço de pão. Tinha os olhos de um azul intenso, cabelos loiros e um ar angelical.
— Cándido de la Caridad, garoto saudável, livre da varíola. Ganhou apenas pão e água e está sentado no chão diante de todos por ter fugido após cantar em um enterro.
Cándido olhou para Balmis com olhos que expressavam desconcerto e angústia. O médico se agachou para falar com ele:
— Quer conhecer La Coruña com outros garotos daqui? — sussurrou.
— O que é La Coruña?
Balmis sorriu.
— Uma cidade à beira-mar. Já viu o mar?
O garoto fez que não com a cabeça.
— Pois então, falarei com o diretor para tirá-lo do castigo.
Balmis escolheu seis garotos: Cándido, Juan Francisco, Antonio, Andrés, Gerónimo e o mais novo, Jacinto, que tinha seis anos.
— Escolhi vocês para salvarem o mundo. Serão pequenos heróis cuja contribuição para a humanidade ficará registrada nos livros de história. Quero que saibam que, em troca dessa contribuição, a Coroa se comprometeu a cuidar de sua formação.
Os garotos não entendiam nada. Não sabiam o que era receber elogios. Mas, apesar da pouca idade, já intuíam que algo precisariam dar em troca de uma sorte “tão formidável”.
No dia anterior à partida de Madri, inteiraram-se do que lhes era exigido. Os três enfermeiros — Basilio Bolaños, Francisco Pastor e Pedro Ortega –, a quem deveriam obedecer o tempo todo, levaram Jacinto e Andrés ao gabinete do doutor Balmis para que fossem vacinados. Balmis queria garantir um pus de ótima qualidade e, para isso, utilizou aquele obtido de outras crianças que ele mesmo havia vacinado e cujos resultados pudera comprovar. O que ninguém esperava era a reação daqueles órfãos que, ao vê-lo se aproximando com a seringa, começaram a gritar e tentaram fugir.
— Isso não dói… — dizia o médico.
Por mais que explicasse a eles que a vacina os livraria de uma doença terrível, não houve maneira de convencê-los — nem sequer oferecendo doces. As crianças olhavam ao redor com receio, como se fossem animaizinhos prestes a ser degolados. No fim, o enfermeiro Basilio Bolaños, gigante com mãos de açougueiro, agarrou Jacinto a força enquanto Francisco, o outro enfermeiro, pegava o pequeno Andrés. Balmis fez neles a incisão com a agulha e introduziu-lhes o pus. Tudo em meio a gritos.
No dia seguinte, 10 de setembro, os integrantes da expedição saíram de Madri em diversos carros puxados a cavalo. Os três enfermeiros escoltavam os garotos recém-vacinados para evitar que se coçassem e os proibiram de se aproximar dos outros durante as paradas para não contaminá-los. Mas, ao menor descuido, eles desobedeciam. Corriam para lutar (brincadeira favorita) diante do olhar espavorido dos adultos, enquanto os enfermeiros iam atrás para separá-los. Só passaram a se comportar quando a vacina surtiu efeito — o cansaço e um pouco de febre os amansaram. O que parecia um anjinho, Cándido, revelou-se o mais levado. Quando haviam tentado vaciná-lo, recusara-se veementemente. Chorou, suplicou, gritou, insultou, deu socos e chutes e, para escapulir, havia mordido a mãozona de Basilio com tanta força que chegou a sangrar. Saiu correndo e fugiu da pousada. De forma que, em seu lugar, acabaram vacinando o pequeno Andrés. Na manhã seguinte, quando estavam saindo para denunciar a fuga de Cándido ao aguazil, o garoto reapareceu com ares de arrependimento.
— Você foi o primeiro que escolhi. É assim que me agradece? — disse Balmis.
— Tenho medo.
— Já disse que não dói... Olha o Andrés, nem chorou.
O garoto olhou para Andrés e deu os ombros, como se não fosse com ele. Havia se safado, e só isso lhe importava. “Ingovernáveis, receosos, medrosos e impacientes.” Balmis se lembrou da advertência do cura que dirigia o orfanato. Eram garotos maltratados pela vida, abandonados à própria sorte e sem confiança nas pessoas ao redor.
Quando posta em prática, a ideia de utilizar crianças para transportar a vacina era muito mais complicada do que Balmis pensara de início. Cada um tinha sua personalidade, seu caráter, seu gênio e seu passado de abandono. Conviver com eles não parecia simples. Balmis, Salvany e os demais adultos se perguntavam como aguentariam uma travessia de várias semanas no espaço reduzido de um barco, se uma viagem pela estrada já era infernal. Como manter a disciplina? Como matar as horas entediantes? Como curá-los quando ficassem doentes? Como suportariam as mudanças de temperatura? Balmis estava obcecado por essa parte da organização, que lhe escapava; tudo o que tinha a ver com o universo infantil lhe era estranho. Nunca havia lidado com elas. No entanto, precisava delas; sem os garotos, não era possível levar o material para as vacinas até o outro lado do mundo. Sem os seres mais fracos da sociedade, não era possível levar a cabo a façanha médica e humanitária mais ambiciosa da história.