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La Coruña, 21 de setembro de 1803. Havia vários dias que na cidade não se falava em outra coisa além da chegada dos expedicionários. As mães aguardavam ansiosas, porque as autoridades anunciaram que o doutor Balmis vacinaria as crianças gratuitamente. Os funcionários do Hospital Beneficente, o primeiro grande hospital de La Coruña, apressavam-se para preparar as dependências destinadas aos peregrinos a fim de abrigar aqueles convidados tão extraordinários. Ainda que de início Balmis tivesse solicitado alojamento no convento dos agostinianos, o intendente do Exército achou que eles ficariam mais bem acomodados naquele estabelecimento reluzente, sobretudo porque nas instalações anexas ficava o orfanato da cidade, repleto de crianças empolgadíssimas com a chegada dos órfãos de Madri.

No orfanato, a gritaria das crianças que, amontoadas na janela do primeiro andar, espreitavam a chegada da comitiva despertou a atenção de Isabel; ela pediu silêncio em seu costumeiro tom sereno e firme. Reconhecia no olhar dos menores o nervosismo e a apreensão de quando chegavam visitas; eles fantasiavam com a ideia de que um casal sem filhos os escolheria para adoção, embora o mais comum fosse que um homem sozinho aparecesse em busca de um garoto para ajudá-lo no trabalho. “Tem homens de uniforme!”, gritou um menino. Mais adiante, na rua, a diretora viu as autoridades militares, civis e religiosas, bem como os quatro médicos e o capelão do hospital, escoltando o grupo de expedicionários que entrava no edifício principal.

Na porta, o doutor Posse deu afetuosas boas-vindas a Balmis e seu séquito e acompanhou-os imediatamente até uma pequena sala.

— Graças a Deus os senhores chegaram! Foi aqui que iniciei a difusão do método de Jenner — disse Posse. — Tive de cessar as atividades porque não consigo fluido bovino, tampouco consigo conservá-lo puro.

— Trago comigo todo o necessário — assegurou Balmis.

Balmis propôs dar início à vacinação no dia seguinte, mas na colegiada, não no hospital, já que o abade insistira em oferecer seus aposentos para conferir importância e repercussão à ação de vacinação pública.

Mais tarde, Posse conduziu o grupo até a hospedagem de peregrinos, cujos quartos exíguos e sombrios não agradaram ao alicantino, que se desculpou com o médico e pediu que procurassem hospedagem em casas particulares para ele e seus acompanhantes. Mais cedo, havia deixado as crianças no orfanato. Atravessaram um pátio em que havia uma horta; lá, de costas para o muro, crianças pequenas em fila estavam sentadas em pinicos. Naquela mesma manhã, haviam sido desparasitadas com um cozido de nogueira-preta e, para evitar o mau cheiro no interior, foram para o lado de fora. Em um canto do pátio, uma empregada colocava em um caldeirão a roupa suja dos garotos com ajuda de uma forquilha. Ao redor do fogo que aquecia o caldeirão havia outras crianças com ranho escorrendo e os olhos arregalados.

— A diretora — disse de repente uma voz.

Então apareceu pelo canto da porta uma mulher jovem, de corpo esbelto e passos decididos, que secava as mãos em um pano. Fez uma breve reverência a Balmis e cumprimentou os demais acompanhantes com um gesto quase imperceptível.

— Isabel Zendal. À disposição.

Balmis olhou para ela com sua altivez costumeira, como teria feito com qualquer subordinado. Salvany, por sua vez, o fez demoradamente. Alguma coisa lhe despertou a atenção naquela mulher de olhos grandes e muito escuros, com olhar profundo e cercada de crianças. Observou a testa à mostra, o pano preto que cobria o cabelo, uma pequena contração na altura dos olhos que parecia transparecer certa angústia. Então viu as mãos, rugosas. Ao notar que estava sendo observada, ela abaixou o olhar e fez sinal para que entrassem.

O orfanato estava tão abarrotado de gente que Isabel pediu desculpas, como se fosse culpa dela.

— Temos capacidade para trinta, mas abrigamos quase o dobro disso...

A miséria crescente do campo resultava em ondas de crianças abandonadas nos orfanatos, onde ninguém era recusado, pois assim determinava o regulamento. Não eram apenas órfãos ou filhos de mães indigentes; cada vez mais, chegavam filhos legítimos de pais pobres. Havia dois dias que Isabel negociava na cidade para conseguir alguns catres, grão-de-bico, um pouco de açúcar e amêndoas para preparar uma chufa para os recém-chegados. O orçamento não era suficiente para todo o alimento, as roupas e os medicamentos de que necessitava, mas ela não era de se queixar e não comentou nada com os visitantes.

— Não se preocupe, senhora — disse Balmis —, pois, dessas crianças que trago, apenas quatro continuarão a viagem no barco. O restante, as que já foram vacinadas, voltará a Madri.

Isabel estava surpresa com o estado deplorável daqueles garotos da capital. Sebosos e desgrenhados, vestiam uniformes esfarrapados e pareciam cansados. Coçavam-se por causa da irritação causada pela vacina, apesar das reprimendas constantes dos enfermeiros. Brigavam muito. Andrés estava pálido e com olheiras imensas, mal conseguia ficar de pé.

— Ontem ele teve febre alta — disse um enfermeiro.

— Venha, vamos deitar…

Ela deixou os visitantes à espera enquanto cuidava do menino. Contrastando com o comportamento selvagem dos madrilenos, as crianças do orfanato corunhense apresentavam maneiras bem distintas. Apesar de o lugar estar abarrotado, não havia gritos nem comportamentos abjetos; todos tinham aspecto saudável e demonstravam um carinho reverencial pela diretora. Quando ela regressou, Balmis disse:

— Logo, logo sobrará espaço…

— O doutor está dizendo que vai fazer uma doação para ampliar as instalações? — perguntou, em tom dissimulado.

— Não há caridade suficiente para tantos órfãos... — respondeu o médico. — O que farei é levar algumas das crianças sob amparo do orfanato para a travessia... Quero que a senhora me ajude a selecioná-las.

Isabel mudou de expressão enquanto Balmis tirava de sua pasta uma pilha de papéis.

— Veja, senhora, este é o regulamento da expedição, assinado por sua Majestade, o rei.

Isabel folheou rapidamente.

— Como? O senhor vai levar os órfãs para... para a América?

— Com o aval de vossa Majestade, para livrar o mundo da varíola.

— Mas, mas para tão nobre propósito, o senhor precisa vir a um orfanato em busca de crianças órfãs?

— Não há outra opção.

Balmis e Salvany, ao perceberem que estavam diante de um obstáculo imprevisto, puseram-se a explicar os pormenores da expedição, a necessidade de transportar o soro em crianças que não houvessem entrado em contato com a doença e que não tivessem família...

— Os pais jamais deixariam seus filhos serem levados para tão longe e, caso aceitassem, fariam por dinheiro, o que vai contra o espírito da expedição... Por isso estamos aqui, no orfanato — disse Balmis.

Reiteraram que não haveria risco nenhum para as crianças, que, pelo contrário, ficariam imunizadas para toda a vida. Falaram da transcendência da expedição, do respaldo do rei, da presteza, das dificuldades... até que ela os interrompeu. Seu instinto se rebelava contra a ideia de deixar “suas” crianças partirem.

— E então quem cuidará deles?

— Ficarão a cargo da Corte até que tenham destino ou ocupação para garantir sua sobrevivência. Esperamos que a maioria seja encaminhada a casas de famílias abastadas; caso isso não aconteça, serão devolvidos às cidades... É o compromisso que obtivemos com a Coroa.

— E nós cuidaremos para que isso seja cumprido — acrescentou Salvany, entre dois ataques de tosse.

— É uma oportunidade para eles, senhora, pense bem… — insistiu Balmis. — Participarão de uma grande aventura filantrópica, a Coroa lhes será para sempre grata. Pois, caso contrário, a senhora me diga, que futuro os espera na Galícia após saírem daqui? As ruas estão cheias de jovens mendigos...

Isabel estava confusa.

— Não têm nada a perder — acrescentou Salvany.

— Essas crianças nunca passaram da Torre de Hércules — disse ela. — Como os senhores podem ter certeza de que sobreviverão a uma viagem tão longa? E os temporais? E se o barco afundar?

— A cada dois meses, os barcos-correio vão e vêm daqui até Buenos Aires e até o México e não afundam... Escolheremos uma embarcação segura, sempre com a supervisão da Casa Real. As crianças serão acompanhadas durante todo o tempo por quatro médicos e três enfermeiros, algo que jamais ocorre em terra... Além disso, se alguma delas morrer, a morte servirá para evitar milhares de outras causadas pela varíola. Acredite em mim — prosseguiu Balmis —, participar dessa expedição é um privilégio; para eles, para nós, médicos, para toda a humanidade.

Ela parecia desamparada. Compreendia o que aqueles profissionais empolados estavam dizendo, mas não digeria a situação. Uma criança de mais ou menos oitos anos se aproximou e agarrou sua saia.

— Ma… mãe, tô com fome…

— Você precisa esperar a hora da janta, assim como os outros.

O garoto foi embora e, resmungando, juntou-se aos demais.

— Nem pensem nesse daqui — pontuou Isabel. — É meu filho.

Ah, se a dona Teresa Herrera estivesse viva! Jamais permitiria que levassem suas crianças do orfanato. A mulher cujos donativos haviam tornado possível a construção do hospital era analfabeta, mas tinha muito dinheiro e vivência, fora muito respeitada e sempre conseguira impor seus valores. Por outro lado... quem era Isabel Zendal? Quem era ela para se opor àqueles médicos que falavam em nome do rei? Era apenas uma empregada mal paga, uma mulher desencaminhada que tivera a sorte de acabar como diretora de um orfanato. Sua opinião não tinha peso. Não só não podia impedi-los de levar tal ideia a cabo, como ainda por cima se sentia obrigada a colaborar, a ser cúmplice de algo que a repugnava. Como decidir qual criança deveria ficar e qual deveria partir?