Em 30 de novembro de 1803, a corveta María Pita zarpava de La Coruña. Embora partisse com dois meses de atraso, a rapidez dos oficiais reais na hora de solucionar os problemas financeiros e organizacionais havia sido totalmente atípica, e a única explicação era o envolvimento direto do rei. Naquele mesmo dia, na América, os franceses tomavam posse de Nova Orleans e começavam a desmantelar as instituições espanholas. A expedição era uma pequena luz no escuro declínio do império.
Os aguerridos marinheiros que formavam a tripulação do María Pita jamais haviam visto carregamento tão díspar. Havia dias que algumas chalupas levavam até a corveta ancorada na baía sacos de lona, frascos de unguento, faixas, pacotes com livros, caixas com vidros, varas de tela... Dois marinheiros se encarregavam de estivar tudo seguindo as indicações de Salvany. Outros dois, enquanto atendiam às ordens do capitão dependurados na estreita mastreação, comentavam que os índios seriam curados com o sangue daquelas crianças. Na praia, os órfãos viviam seu momento de glória. Haviam saído uma hora antes do orfanato e marchado em fila ao som de acordes da banda municipal — os mais novos de mãos dadas com os mais velhos, todos com reluzentes uniformes do Jardim Botânico de Madri, mas incomodados com os sapatos novos. No fim, os critérios de Balmis haviam prevalecido, e havia oito garotos de três anos de idade, ainda aprendendo a andar. Mais importante de tudo, havia conseguido a cédula de indulto e a permissão do rei para contratar Isabel, sem a qual teria sido impossível reunir o número necessário de participantes. Juntos, haviam ido até o sanatório de Santiago para recrutar os que faltavam, inclusive precisaram convencer pessoalmente a mãe de Francisco Antonio, de oito anos, para que ela deixasse o filho partir a serviço de vossa Majestade em troca de um futuro para o garoto.
Os últimos dias haviam sido frenéticos. Cada órfão precisava de um chapéu, seis camisas, três calças de linho, uma de lã, um casaco, três lenços para o pescoço, três para o nariz, um pente... Além disso tudo, a torneira queria que Isabel levasse para si um enxoval.
— Tenho certeza de que você encontrará um marido na América.
— Que homem vai querer uma mulher com vinte e duas crianças para cuidar?
— Você não conhece os homens — respondeu a mulher.
Ao transtorno dos preparativos, somou-se a aparição de familiares de órfãos que nunca haviam dado as caras por ali, todos exigindo algum dinheiro, porque “suas” crianças haviam sido escolhidas pelo rei. Era tão difícil se desfazer de todos os que apareciam para tirar proveito do abandono que a própria torneira se dedicou a recebê-los e lembrá-los de que, ao “deixar” os filhos na roda, haviam perdido o pátrio poder e, por isso, não tinham direito a exigir nada. Mas insistiam de maneira irracional; enviavam tios, irmãos, até mesmo as amas de leite.
Antes da partida, houve certo drama no orfanato. Quando souberam que não fariam parte da viagem e precisariam retornar ao abrigo, Jacinto e Andrés, os dois garotos vacinados ao sair de Madri, começaram a chorar, implorando que não os deixassem para trás. Eles queriam embarcar, seguir na aventura com os colegas; não queriam voltar ao frio, ao cozido de repolho e toucinho, a cantar nos enterros nem a rezar no refeitório. Isabel fez todo o possível para consolá-los, mas era difícil. Aqueles garotos, que tinham pavor do abandono porque já haviam sido deixados em um orfanato, choravam e esperneavam sem nem ouvir o que ela dizia. O loiro e angelical Cándido, que vestia o uniforme rutilante, testemunhou a cena. Se houvesse deixado que o vacinassem, pensou, estaria na mesma situação que os dois garotinhos e voltaria à Casa de Desamparados. No fim, Isabel levou-os à cozinha e deixou-os com a torneira, que os empanturrou de madalenas recém-saídas do forno. Ainda assim, os garotos não pararam de chorar.
Através das grandes janelas das casas corunhesas, os vizinhos assistiam à passagem daquele insólito cortejo de órfãos convertidos em heróis, encabeçado pelo arcebispo e pelas autoridades. Na altura da rua Real, Isabel olhou para a janela da casa em que havia trabalhado por tantos anos e discerniu, entre os reflexos do vidro, a silhueta de dona María Josefa, com o olhar perdido. Isabel acenou com a mão, ciente de que a senhora já estava completamente cega por causa da varíola. Qual não foi sua surpresa quando ela devolveu o aceno. Coincidência dos gestos? Isabel pensou que a mulher os havia percebido, se não com os olhos, com o coração.
No porto, as autoridades se desmancharam em discursos grandiloquentes.
— Os senhores viajarão a lugares remotos, percorrerão paragens surpreendentes, conhecerão culturas extravagantes, viverão experiências únicas, encontrarão seres necessitados; e o que fizerem por eles, Deus lhes dará em dobro.
Houve vivas ao rei, a Balmis, à expedição. Como o vento ganhava força — razão pela qual partiriam naquele dia –, as palavras oficiais se perdiam no ar e as crianças demonstravam impaciência. Algumas estavam com fome, outras não conseguiam ficar quietas e brincavam de jogar o chapéu ao vento. Conseguiram escutar algumas palavras sobre Isabel Zendal, tantas vezes ignorada, e agora exaltada por cruzar o mar, a única mulher entre a meia centena de varões. No fim, os expedicionários, cerca de trinta, tiveram de passar pela frente do corregedor, que lia os nomes em voz alta, e do arcebispo, que os rociava com água benta antes de embarcarem na chalupa que os levaria ao María Pita. Todos eram aplaudidos. Depois das crianças, escutou-se:
— Dona Isabel Zendal.
Ao ser chamada de “dona” pela primeira vez, Isabel não conseguiu conter um gesto que revelava um regozijo íntimo e profundo.
Mas não durou muito. Assim que subiu a bordo, aturdida pelo ruído de cabos, correntes e adriças agitados pelo vento, deparou-se com os marinheiros, de pele curtida pelo sol e pelo salitre e cara de poucos amigos.
— Só veio acompanhar as crianças, logo vai desembarcar... — disse um deles.
— Não, eu viajarei com vocês.
Para aqueles profissionais de cabos e mastros, mulher a bordo trazia má sorte. Sua presença irritou tanto a tripulação que o próprio capitão, Pedro del Barco y España, basco, tenente de fragata, precisou intervir e ameaçar expulsar aqueles que, mesmo antes de zarpar, provocavam um início de motim.
— Você, vá para cabrestante içar a âncora! Você, depressa, precisamos aproveitar o nordeste e a força da maré! Soltem as braças! Ergam a bujarrona, a vela mestra e o traquete! Nada de atrasos!
Obedeceram-no a contragosto. Pedro del Barco era um marinheiro de comprovada competência. Ele apresentara a Balmis o problema de carregar uma mulher a bordo e tentara dissuadi-lo da ideia. Em vão. Ainda que, depois de Deus, fosse a mais alta autoridade dentro da embarcação, a descrição do relatório do Ministério da Marinha ao qual Balmis tivera acesso lhe fazia justiça: “Conduta, muito boa; inteligência, farta; desempenho, bom; subordinação, muita; generosidade, muita”.
— Icem o traquete! Recolham as escotas!
Fixado o rumo, as velas se estufaram suavemente. María Pita adernou, o que provocou um início de pânico entre Isabel e as crianças, que estavam no convés observando as pessoas agitarem lenços e o sol refulgir nas janelas das grandes casas de La Coruña. Era um dia esplêndido, fresco, luminoso.
— Benito, quero lhe dizer alguma coisa.
O garoto se aproximou da mãe.
— A partir de agora, você nunca mais precisará dizer que seu pai abandonou sua mãe, entendeu?
O garoto assentiu.
— Se alguém perguntar, não importa quem seja, diga sempre que sou sua mãe adotiva.
— A... adotiva?
— Sim. Quer dizer que, em vez de ter carregado você em meu ventre, adotei você depois de nascido.
Benito estava desconcertado.
— Claro que não! É um segredo nosso. É para que nunca mais o incomodem por seu pai ter nos abandonado.
— Então nunca mais vão dizer... que você... que você é uma... uma...
— Não, nunca mais.
O garoto a encarou.
— Mas você continua sendo minha mãe, né?
Isabel caiu na risada. Então, ficou pensando que o filho tinha dito uma frase inteira em sequência, sem gaguejar. Era a primeira vez que ouvia isso. O garoto se soltou do abraço materno e saiu correndo.
— Aonde você vai?
— Brincar!
— Tome cuidado.
Ao se aproximar da costa de Sada, o capitão deu ordens para que soltassem as escotas, virassem e seguissem a leste. A corveta transmitia uma boa sensação ao navegar. Em pouco tempo, deixaram a Torre de Hércules para trás. Instintivamente, Isabel procurou os restos do barco preso aos escolhos, onde vivera o momento mais intenso de sua vida nos braços do pai de seu filho. Mas fazia tempo que o mar engolira tudo. Permaneceu um longo tempo apoiada na amurada, vendo desfilar pela última vez a paisagem verde de sua infância.