No início, as crianças enjoavam muito, sobretudo quando precisavam ficar sob o convés. Vomitavam nos mesmos pinicos em que faziam as necessidades, choravam, queixavam-se da dor de barriga. As mais sortudas dormiam — o sono era a melhor maneira de combater o enjoo. Cándido estava ainda mais pálido que de costume — enfiava a cabeça por uma escotilha para respirar ar puro e olhar para longe, como o haviam aconselhado. Isabel, que conversava diariamente com os médicos para levar a cabo o plano de vacinações, pediu tanto a Balmis quanto a Salvany que examinassem as crianças duas vezes ao dia, uma de manhã e outra à tarde, o que também de certa forma criava uma rotina. Isabel precisava de ajuda médica para cuidar dos pequenos transtornos dos quais padeciam, fossem enjoos, resfriados, fossem dores de garganta ou de barriga.
Quando o tempo abriu e o balanço do mar melhorou, nas proximidades de Lisboa, voltaram a passar o tempo no convés. Isabel vestia a mesma roupa sempre, com a cabeça coberta por um pano de camponesa galega e, para se proteger do vento fresco, enrolava-se em um xale preto. Ao melhorarem, os garotos ressuscitaram, e com isso ressurgiu o bulício. Viam o barco como um imenso brinquedo. Passavam o dia inteiro correndo uns atrás dos outros, brincando de esconde-esconde e fazendo travessuras. Cándido de la Caridad se tornou o líder do grupo dos madrilenos devido a sua personalidade forte e porque arranjava para eles comida extra. Apesar da proibição estrita, deslizava até a despensa e roubava chouriços ou um pouco de pão, que então dividia com seus comparsas. Um dia, Benito, filho de Isabel, pegou-o no flagra.
— O que você está fazendo? Isso é pro… proibido.
— Não vai contar pra sua mãe, né?
— Não, se... se você me der um pedaço.
Cándido separou um pedaço do chouriço, mas Benito queria mais.
— Pega, abusado.
Benito era respeitado por ser protegido da “chefa”, mas os demais galegos eram responsabilizados pela baderna. Eram obrigados a confessar o roubo de água ou o fato de terem atirado cordas por cima da amurada. Um dia, Cándido desatou os cabos que mantinham os botes salva-vidas erguidos sobre o convés. Isso fez com que o contramestre aparecesse e descobrisse o feito.
— Foi Francisco Antonio! — disse Cándido, referindo-se a um dos galegos.
O contramestre queixou-se com o capitão, que apareceu no refeitório na hora da janta com o casaco abotoado e a gravata ajeitada, ostentando um ar severo e a voz cortante. As crianças olharam para ele com temor.
— Francisco Antonio!
O garoto se levantou timidamente.
— Não vou tolerar nenhum desmando; desatar os cabos de bote salva-vidas é muito grave. Como você foi capaz de fazer algo assim?
— Eu não fiz isso... — balbuciou o garoto.
— Se fosse um marinheiro, eu mandaria enforcá-lo por sabotagem, não sem antes lhe dar quinze chicotadas. Saia daqui! Vá para a cabine sem jantar. Amanhã você ajudará a esfregar o convés.
O garoto foi embora choramingando. Isabel sabia que ele não era o culpado por aquela criancice. Quando acabaram de jantar, levou comida para a cabine do garoto a fim de consolá-lo. Soluçando, Francisco se queixou amargamente dos “de Madri”, especialmente de Cándido, que os amolava e culpava pelas próprias traquinagens.
O cozinheiro, por sua vez, não demorou a perceber que havia chouriços e salsichões faltando, e a princípio pensou nos marinheiros, sempre famintos. Mas os marinheiros teriam dissimulado os furtos de comida, porque sabiam que as reprimendas seriam duríssimas e, no caso, havia migalhas de pão e linguiças que pareciam ter sido mordiscadas por ratos. Queixou-se ao capitão. Estava claro que haviam sido os garotos.
Dessa vez, Pedro del Barco se privou do sermão e chamou Isabel para a sala de comando. Contou-lhe o ocorrido. Em um barco à mercê do oceano, a navegação em si implicava riscos suficientes, sem que precisassem dos perigosos desmandos dos garotos. E a quantidade de víveres havia sido calculada com precisão possível para que não faltassem, mesmo em caso de calmaria ou avarias.
— Os garotos estão criando muita tensão entre os marinheiros — disse o capitão. — Eles se queixam de que a senhora não impõe respeito.
— Há um grupinho de três ou quatro que está alvoroçando os demais. Suspeito de quem esteja por trás desses roubos de comida.
— Então, leia para eles a cartilha. Na reunião de rotina que tivemos com os médicos essa manhã, eu disse que precisamos de mais disciplina por parte dos garotos.
— É mais fácil controlá-los em um orfanato do que em um barco, onde entram e saem de qualquer lugar de acordo com sua própria vontade — disse Isabel, como forma de desculpa. — Asseguro ao senhor que não voltará a acontecer. Começarei a dar aulas de leitura para eles todas as manhãs. Assim, ao menos durante esse tempo, não ficarão zanzando por aí.
— Está bem. Confiamos na senhora.
Quando Isabel estava prestes a sair da sala de comando, ouviu o capitão dizer:
— Se eu soubesse que navegaria com um bando de moleques...
Isabel tinha uma maneira infalível de se inteirar dos acontecimentos: seu filho Benito.
— Quem está roubando a comida? — perguntou.
— Não sei.
— Você não sairá daqui até me dizer.
Assim, trancou Benito na cabine. Ele passou a tarde inteira lá, até que ficou enjoado e chamou a mãe. Suplicou a ela que o deixasse subir ao convés, mas Isabel foi inflexível, apesar dos vômitos e da tez esverdeada de seu rebento.
— Cándido, o ma... madrileno — confessou, por fim, Benito. — Mas não diga que fui eu quem contei...
Isabel procurou Cándido, que brincava tentando subir no traquete, e puxou-o pela gola da camisa.
— Então é você que anda roubando comida, hein?
— Não fui eu, não fui eu...
— Vamos até sua cama.
Cándido guardava provisões debaixo do travesseiro: pedaços de chouriço, pão dormido, rosquinhas quebradas...
— Não fui eu — insistia o garoto —, alguém pôs isso aqui...
— Ah, que mentiroso! Vá se desculpar com Francisco Antonio. Agora quem está de castigo e terá de esfregar o convés é você. E passará uma semana sem sobremesa! Se voltar a roubar, será castigado pelo capitão, e eu não gostaria de estar em seu lugar, caso isso aconteça.
Em vez de baixar o olhar envergonhado, o garoto encarou-a, desafiante:
— Nem gosto de doce mesmo — disse, encolhendo os ombros.
Ela ficava exasperada por aquele desbocado irredimível ser imune aos castigos. O garoto se negou a pedir desculpas a Francisco Antonio, pois seu orgulho o impedia disso, mas não escapou de esfregar o convés, porque foi obrigado por um marinheiro corpulento de costeletas e uma tatuagem no braço: “Te amo, mãe”.
Alguns dias depois, quando o clima já anunciava a proximidade das ilhas Canárias e permitia que brincassem no convés até o anoitecer, Cándido encontrou uma oportunidade para se vingar.
— Olha, o dedo-duro — disse a Benito. É para isso que serve ter mãe, para dedurar?
— Eu não disse nada — mentiu Benito.
— Vou jogar você no mar, peidorreiro...
Junto com os três outros de Madri, encurralou Benito próximo ao cabrestante, na proa. Benito estava aterrorizado. Para se defender, pegou um dos remos dos botes salva-vidas. Os outros o cercaram, mas, justo quando começariam a atacá-lo, escutaram a voz de um marinheiro:
— O que estão fazendo aqui, seus zuretas?
— Benito queria atirar o remo no mar e tentávamos impedi-lo — mentiu Cándido, com ar angelical.
— Não é verdade — disse Benito.
— Vamos, me dê isso, excomungado — disse o marinheiro. — Não se brinca com isso. Para dentro, que vocês dão mais trabalho que os ingleses na guerra. Vou mandá-los ao pirata Drake, que comerá suas mãos, pelo Sacramento!
— Você acha que é poderoso porque tem mãe — sussurrou Cándido, com rancor.
— Invejoso.
— Pano de mortalha...
Isabel deu uma nova bronca em Cándido e o deixou trancado por um dia inteiro na cabine, separado do resto. Foi resgatado pelos marinheiros. Era sua vez de ser vacinado.
— Já vacinamos Juan Francisco e Antonio; agora, Gerónimo e você.
— Não vão me espetar!
— Não vem com essa de novo. Aqui você não tem escapatória.
— Fiosdaputa!
E começou a chutar e se debater com a violência de praxe.
— Aonde você vai? — perguntou o enfermeiro Bolaños. — Não tá vendo esse mar tão imenso que nem se vê terra? Aqui não tem escapatória.
O garoto respondeu com um soco em suas genitálias que o neutralizou. Conseguiu escapulir do médico Grajales e do enfermeiro Francisco Pastor e se escondeu nos depósitos do porão. Ficaram muito tempo procurando por ele, até que pediram ajuda aos marinheiros. Logo, os vinte e seis membros da tripulação estavam revirando o barco.
— Cándido de la Caridad! — berrou um marinheiro. — Que nome tem esse grumetinho dos diabos!
No convés, Isabel estava preocupada. Aquele garoto era tão desafiador e rebelde que poderia fazer mal a si mesmo caso não cedesse. Estavam demorando tanto para encontrá-lo que chegou a pensar que tinha caído no mar.
— Não quer ser vacinado — disse Gerónimo, amigo de Cándido.
— Mas não vai sentir nada. Não dói.
— Não é isso, é que ele sabe que, se for vacinado, será mandado de volta para Madri, e não quer isso. Nem eu.
Como fazê-los aceitar que estavam ali com o único propósito de ajudar a transportar a vacina e que, uma vez vacinados, deveriam retornar? A expedição precisaria de mais e mais crianças, e a embarcação não poderia transportar todos indefinidamente. Precisariam regressar aos poucos.
— Em Madri faz frio, batem na gente, nos fazem rezar muito... — repetia Juan Francisco.
Isabel se lembrou das lágrimas de Jacinto e Andrés quando souberam que voltariam à Casa de Desamparados. Era capaz de se colocar no lugar deles, uma vez que conhecia as máculas da assistência pública. O patronato de Madri não era apoiado por uma congregação como a das Dores em La Coruña, por gente como dom Jerónimo ou por uma diretora como ela. Como censurá-los por não querer retornar ao que devia ser um inferno pior que aquela viagem de barco? Havia certa crueldade no que estavam fazendo com aqueles garotos. Gerónimo confessou:
— Cándido nos disse: “Se não querem voltar a Madri, não podem deixar eles vaciná-los”.
— Cándido é esperto, mas desta vez não dê atenção para ele. A vacina é boa e protegerá vocês da doença.
Um marinheiro encontrou Cándido escondido no paiol de velas. Encontrou-o por acaso porque, ao pisar com força, o garoto, que estava ali embaixo, gritou de dor. Puxou-o pelos cabelos, mas enquanto percorriam o convés até a cabine de Balmis, que esperava para vaciná-lo, Cándido escapou outra vez. Correu feito um coelho junto à amurada e se refugiou no gurupés, um lugar perigoso.
— Saia daí, você pode cair na água!
— Não quero!
A tripulação toda estava em função de Cándido. Isabel se aproximou e disse que, se ele aceitasse ser vacinado, ela faria os trâmites para que não fosse devolvido a Madri, mas a La Coruña. Candido olhou para ela com uma expressão de agradecimento, como se estivesse surpreso por alguém tê-lo entendido. Naquele momento, pareceu que ia ceder, mas, quando um marinheiro se aproximou, ele ameaçou se atirar na água.
— Vou pular, vou pular!
Naquele instante, outro marinheiro deslizou por uma adriça da genoa e surpreendeu o garoto por trás. Estava cercado, não tinha escapatória. Olhou para baixo, para o mar, mas não se atreveu a pular. O marinheiro agarrou-o pela gola e levou Cándido dali, embora o garoto continuasse a chutá-lo.
O doutor Salvany, o médico Grajales e dois enfermeiros precisaram segurá-lo enquanto Balmis fazia uma pequena incisão com a seringa e introduzia o pus da varíola.
— Fiasdaputa! — gritava o garoto.
— Cala a boca, seu endemoninhado!
Levaram-no até a cama para que se tranquilizasse. Após se deitar, derrotado, começou a chorar amargamente. Já se via retornando a Madri, cantando nas igrejas gélidas, submetido à férrea disciplina de um imenso orfanato. Dentro de oito dias, quando se formasse uma vesícula cheia de pus variólico, Balmis ou Salvany extrairiam o líquido para injetá-lo em outro braço de outra pessoa. A partir daquele momento, Cándido sabia que já não seria mais útil, que sobraria, que seria apenas uma boca a mais para alimentar e que o devolveriam ao mundo do qual o haviam tirado. Deixou de ser o mais ativo e nervoso, o mais criativo e desafiador, e passou a ser o mais apático e triste. A reação provocada pela vacina e a melancolia o prostraram. Os enfermeiros que se revezavam para vigiar a evolução da vesícula agora estavam diante de um garoto dócil, que não saía da cama.
— O Teide! — gritou um marinheiro de seu posto de vigia.
— Venha ver — disse o enfermeiro Bolaños.
Cándido se aproximou da escotilha. Ao longe, divisava-se a silhueta da montanha envolta em bruma, o cume coberto de neve. Permaneceu um longo tempo observando. Então, deixou-se cair na cama outra vez.