O tempo custava a passar e o tédio era inevitável, ainda que os dias estivessem organizados com visitas dos médicos, aulas de manhã e à tarde, refeições e brincadeiras. Benito ciscava em todos os cantos do barco e sempre encontrava alguma coisa para confeccionar um brinquedo — um pedaço de cabo, algumas madeiras, tecido dos sacos... Como, no fundo, sabia que era protegido por sua mãe, não tinha pudor de entrar em lugares proibidos, como os porões ou os paióis. Certa noite, quando passou para além da base do mastro da bujarrona e das manivelas das bombas de achique, escutou um ruído que o assustou. Achou que havia um marinheiro na escuridão e se escondeu. Mas ninguém apareceu, e o ruído continuou, mais alto que os rangidos do barco e a ondulação da água na amurada. Era uma lamúria. “Tem algum bicho aqui”, disse a si mesmo, apavorado. Quis sair correndo, mas a curiosidade prevaleceu. Seus olhos, acostumados à escuridão, seguiram a origem do som. No maleiro de um dos porões, onde guardavam os barris de vinho doce levados a bordo em Tenerife, distinguiu a silhueta de um corpo estendido. Uma criança.
— Carallo! O que... o que… o que você tá fazendo aqui?
Era Cándido, doente, sujo, suando em bicas, tombado sobre um dos barris.
— Não fale nada — sussurrou.
— Você está mal.
Benito saiu e regressou pouco depois com uma jarra de água fresca. Cándido bebeu até se saciar, estava desidratado. Pelo chão, havia restos de comida furtada das despensas, e um rato passou por cima de seu corpo. Benito se assustou.
— Os ratos não mordem — disse Cándido.
— Como você se enfiou aqui?
— Com o cara que trouxe os barris, em seu barco. Um dos marinheiros me ajudou a subir, eu disse que tinha me perdido...
Benito sabia o que significava trair o garoto madrileno, e não queria se expor novamente a sua ira. Não planejava dizer nada. De qualquer maneira, o que Cándido havia feito lhe parecia tão atrevido e temerário, tão grande e arriscado, que acabava por ser admirável. Tanta ousadia não era algo próprio dos humanos, mas dos heróis. Disse a ele que levaria parte de sua própria comida e água, da mesma que bebiam à mesa.
Quando conseguia se esgueirar da vigilância da mãe ou dos outros garotos, descia para ver Cándido.
— Por que você não sai? — dizia. — Não vão lhe fazer nada... O que você acha, que vão atirá-lo ao m... ao mar?
— Não, mas vão me castigar.
— E daí? Se você continuar aqui, vai ficar cego por não ve... ve... ver a luz. Além disso, você está doente.
— Não quero esfregar o convés.
— Vão lhe dar um sermão e pronto, terão que a... aguentar.
Mas Cándido não estava escutando. Estava absorto em seus próprios pensamentos.
— Vou lhe contar um segredo — disse a Benito. — Eu gostaria de ter uma mãe, como você.
— Tenho certeza que minha mãe defenderá você.
— Mas o capitão me castigará...
Após um silêncio, Cándido perguntou:
— Como é ter uma mãe só sua?
Desconcertado, Benito respondeu:
— Bem... é alguém que sempre diz o que você precisa fazer, dá sermões e fica incomodada, mas então passa...
— Não sei... mãe... é mãe. Cuida de você quando está mal, dá o que você mais gosta de comer, essas coisas... A minha, sem dúvida, era mais minha antes; agora é adotiva. Foi o que ela me disse ao sair de La Coruña. Mas não conte pra ninguém.
— Ah... — Cándido o olhou de cima a baixo. — Olha que para adotar você com essa cara de morto de fome... Podia ter me escolhido! — disse, com uma risada fraca. — Quando eu era pequeno, sonhava em ser adotado, mas os curas diziam às senhoras que apareciam com os maridos que eu era muito agitado. Na verdade, não queriam que eu partisse porque era o melhor cantor e ganhavam dinheiro comigo. Então, as senhoras pegavam outro, e eu ficava a ver navios.
Os olhos de Cándido se fecharam e ele acabou pegando no sono.
Benito foi muito sigiloso na hora de ajudar o clandestino, que sobrevivia praticamente como os ratos em meio aos barris, escondendo-se no maleiro quando escutava passos. Em sua inocência, Cándido pensou que aguentaria a viagem inteira assim; agora, tinha certeza de que Benito não o denunciaria. Só não contou com um inimigo invisível. À medida que o barco se aproximava da terra, o calor se tornava insuportável. O ar dos porões estava insalubre. Chegou o dia em que Cándido não aguentou mais os eflúvios do álcool.
— Benito, vou sair porque estou sufocando aqui, estou enjoado.
— Quer que eu fale com mi... minha mãe antes?
— Sim.
Isabel arregalou os olhos quando o filho contou sua descoberta. Como o rapaciño podia ter escapado do monastério e embarcado escondido? Agora entendia por que Cándido deixara de chorar e protestar subitamente na última vez em que o vira. Havia encarado sua seriedade e sua despedida como um sinal de que aceitara o destino, mas era justamente o contrário. Estava tramando sua fuga do monastério. Havia conseguido o que queria: não ia a Madri, mas à América.
— Temos um clandestino a bordo — disse Isabel ao entrar no refeitório levando Cándido pela mão.
Todos ficaram pasmos. Cándido havia reaparecido, para o terror dos garotos galegos e do contramestre, que temia suas travessuras. Mas seu aspecto estava muito longe de intimidar: assustado, fraco, as pernas feito palitos, pálido e com olheiras, o garoto era uma sombra de si mesmo.
— Desse aí não nos livraremos nem com sal grosso — comentou o piloto.
— Sabe o que é feito com os intrometidos como você? — perguntou o capitão.
Aterrorizado, o garoto fez que não com a cabeça.
— Atiramos ao mar.
Cándido agarrou com tanta força o braço de Isabel que a machucou ao cravar as unhas.
O capitão se virou para seus homens e arremeteu contra eles: como permitiram que se infiltrasse? Como nenhum marinheiro o havia encontrado? Que tipo de marinheiros eram para que um rapazote conseguisse pregar uma peça daquelas neles? Então, dirigiu-se a Cándido:
— Não vamos atirá-lo ao mar porque somos gente de bem, rapazola. Mas, como você está aqui sem autorização, terá que ganhar seu sustento. Já que gosta tanto dos porões, ajudará a bombear a água para fora. Já pa baixo!
— Não, lá embaixo de novo não.
— Tá com medo dos ratos?
— Não — disse o garoto, chorando —, mas lá eu fico enjoado.
— Você vai se acostumar.
Isabel se aproximou do capitão:
— Sei que não deveria me meter nisso, dom Pedro, pois onde há patrão... já sabe, eu também sei... quem manda, mas o garoto está muito debilitado. Deixe que se recupere por uns dias e, então, aplique o castigo.
Pedro del Barco olhou para Cándido, cujos olhos tristes de um azul intenso pareciam maiores devido à magreza. Dava a impressão de nunca ter esvaziado um prato na vida.
— Que seja, trombadinha.
O doutor Salvany se levantou da mesa e se dirigiu ao capitão:
— Com sua permissão, senhor, posso levá-lo à enfermaria para examiná-lo.
Isabel respirou aliviada, então explicou ao capitão os motivos por que o garoto não queria retornar ao orfanato de Madri. Pedro del Barco amoleceu. Isabel sabia que não era homem de guardar rancores e que acabaria perdoando o jovem.
— O garoto tem colhões — reconheceu o capitão —, mas não podemos dar corda, é um inconsequente.
Era preciso repreendê-lo, mas no fundo a proeza de Cándido, tão pequeno e atrevido, gerava admiração. Era necessário brio, desprezo pelo medo e uma força de vontade para fazer o que ele fez. Sobretudo, era necessário ter muita vontade de não retornar ao orfanato.
Para Balmis, era uma boca a mais a alimentar, uma responsabilidade a mais, um custo maior para a expedição.
— Veremos o que fazer com você quando chegarmos ao México — disse a Cándido. — É melhor se comportar, se não quiser desembarcar antes disso.
O garoto se recuperou com a mesma rapidez que havia definhado, graças aos cuidados dos médicos e à atenção de Isabel. Sabia que havia feito algo condenável, mas também estava orgulhoso, porque os demais o viam com um misto de fascínio e estupefação. A partir de então, manteve-se na linha por medo de que o capitão cumprisse a ameaça de castigo. Embora morresse de vontade de exibir sua galhardia, agora se negava a fazer as travessuras que Benito propunha, como subir na espicha, trepar a escadinha do mastro, tocar a sineta fora de hora ou brincar de esconde-esconde na cabine do capitão, de onde um escravo os expulsaria a golpes de vassoura.
Como a temperatura no interior era insuportável, passavam muito tempo no convés, onde os marinheiros haviam instalado redes para dormir. Os dias pareciam eternos, e os garotos se distraíam como podiam, brincando com pássaros marinhos ou subindo nos botes salva-vidas suspensos sobre o convés. Cándido aprendeu a imitar os marinheiros, cuja habilidade para cuspir o tabaco que mascavam era lendária — lançavam a saliva com uma pontaria extraordinária. Organizou um campeonato de cusparadas, vencido por Benito, embora o pequeno Tomás Melitón tenha seguido em sua cola. Por mais novo que fosse, cuspia melhor que os mais velhos. Ficava tão ufano ao receber cumprimentos que passou a treinar com afinco; tanto que o posicionaram em um local seguro a sota-vento para que cuspisse caprichado sem que houvesse o risco de que o conteúdo fosse parar em algum desavisado no convés.
À noite, Salvany ensinava-os a identificar as constelações no céu estrelado dos trópicos. Os garotos escutavam boquiabertos enquanto ele falava dos astros e do universo. O médico assegurava-lhes de que, assim como a ciência podia evitar a varíola, um dia o homem chegaria à Lua... Os garotos não entendiam a conexão entre as duas coisas, mas acreditavam e riam.
Uma noite, enquanto aproveitavam a brisa, Salvany foi vítima do mais violento ataque de tosse que tivera. Cobriu a boca com um lenço e, quando a tosse acalmou, Isabel viu que o lenço estava manchado de sangue. Assustado, Salvany escondeu-o em seguida. Sabia o que aquilo significava.
— Faz tempo que você está com a doença? — perguntou ela.
O termo “doença” era um eufemismo para tuberculose.
— Nunca havia cuspido sangue.
Contou que estava doente havia anos. Acreditava que o contágio se dera quando atuava como cirurgião interno no Real Pelotão da Guarda Valona, porque desde então padecia de febres terçãs. Quando, mais tarde, prestou as provas para a cátedra de Anatomia na Universidade de Huesca, foi assaltado pelo cansaço provocado pela doença.
— E estando tão... — Isabel não se atreveu a pronunciar a palavra “doente” –, por que aceitou essa missão?
— Eu mesmo pedi para participar, e o rei, que havia me nomeado cirurgião-real, designou-me para substituir Balmis caso houvesse algum problema.
— Sim, mas não ao custo da saúde que você ainda tem!
Repreendeu-se por seu atrevimento e sua franqueza, mas Salvany não deu bola. Tinha apenas vinte e seis anos, era ossudo, magro e elegante e já parecia idoso. Um jovem ancião. Isabel se perguntava como um homem tão frágil, e ainda por cima doente, suportaria as agruras da viagem. Salvany continuou:
— Essa viagem dá um sentido a minha vida, o de lutar contra a doença. A minha e a dos demais. Além disso, apesar do que aconteceu hoje, não perco a esperança de, em climas mais quentes, melhorar.
Isabel ficou um bom tempo pensativa. Salvany se aproximou dela e disse quase em seu ouvido:
— Peço que não mencione o incidente do lenço ao nosso diretor.
— Não se preocupe.
Isabel estava desnorteada. Quando retornou à cabine, cortou um pedaço de tecido vermelho do tamanho de um lenço, pespontou e, no dia seguinte, ofereceu a ele.
— Para que não dê para perceber caso aconteça de novo — disse.
Salvany tinha uma atitude romântica perante a vida e queria aproveitá-la a fundo, ainda mais ao pressentir que seria curta. Abrigava em sua alma um ímpeto ao sacrifício, de dedicar-se por completo ao bem-estar alheio. Era um idealista puro, como Balmis, mas com a diferença de que era generoso com seu tempo e sua pessoa. Balmis era respeitado; Salvany era querido.