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Trinta e quatro dias depois de ter zarpado de Tenerife, María Pita deslizava em silêncio pelo labirinto de veleiros ancorados na enseada de San Juan de Porto Rico, cuja paisagem era dominada pelos campanários da cidade e pela fortaleza do morro, que se destacava sobre as verdes colinas da ilha. A intenção de Balmis era começar a vacinação no mesmo dia. As notícias das epidemias, que falavam em milhares de escravos e brancos mortos em todo o continente americano e em corpos empilhados na entrada das aldeias envoltas pela fumaça das piras funerária, tornavam urgente a tarefa de estancar o mal o mais cedo possível, sem perder um minuto sequer. Mas na praia não havia ninguém para recebê-los — só o que os esperava era o cheiro da salga de peixe que saía do embarcadouro do mercado. Não havia oficiais uniformizados, multidões, palco decorado para discurso nem uma procissão organizada para um te-déum na catedral. Será que não haviam recebido a circular enviada por Godoy a todos os vice-reis, capitães-gerais e governadores da América anunciando a chegada? Tampouco as cartas enviadas de Tenerife ao governador de Porto Rico, que era de fato precedido pela fama de altivo e soberbo? Ou será que a epidemia havia causado tantos estragos que restavam apenas crianças brincando em poças pestilentas? Por fim, após horas que pareceram durar uma eternidade, foram sanadas as dúvidas. Foram abordados pela falua real trazendo a bordo o ajudante do governador, que lhes deu as boas-vindas.

O oficial acompanhou-os até o alojamento previsto na Casa de Vacinação, antigo convento onde Isabel e os garotos foram recebidos por freiras que a tratavam por “dona”, algo com que ela não conseguia se acostumar. Como não havia espaço para o elevado número de expedicionários, o ajudante do governador precisou pedir a vários anfitriões que alojassem os médicos em suas casas.

— Os senhores encontrarão comida em abundância por todos os lugares, apesar da escassez de fundos dos cofres públicos — enfatizou o oficial, ressaltando o esforço de ter abastecido as casas.

Os recém-chegados estavam desejosos de alimentos frescos. Os garotos cravaram os dentes em frutas que nunca haviam visto — mamão, banana, abacaxi... — e provaram pratos com nomes que faziam rir.

— O que é isso? — perguntavam, com cara de nojo.

— Mofongo, é uma combinação de banana frita e torresmo; vamos, vou lhe dar tembleque e alcapurria para provar.

Mas os garotos já tinham escapulido. Quando Isabel experimentou um pedaço de pão recém-saído do forno, sentiu-se no paraíso. O calor tropical, agora desprovido da brisa do mar, era pegajoso, e ao anoitecer surgiam mosquitos dos lamaçais, para o tormento das crianças. Nunca haviam visto insetos tão grandes.

— É melhor os garotos se acostumarem — diziam as freiras —, porque há por toda a América pernilongos enormes, capazes de atravessar a roupa com o ferrão, e mosquitinhos que picam muito.

Mas Isabel, em seu quartinho com cama e um genuflexório que utilizava como criado-mudo, protegida por mosquiteiros, depois do aperto do barco, sentia-se como se estivesse em um palácio. Estava muito satisfeita pelos garotos terem chegado todos sãos e salvos, exceto por uma ou outra tosse ou disenteria. O que havia de fato os contaminado foram os palavrões da tripulação, para o espanto das freiras, que, pouco habituadas, perguntavam:

— O que quer dizer arrombado?

— É o mesmo que bobão — replicou Isabel.

— Essas crianças têm tanta imaginação! — disse outra. — Meu Deus, sabem cada coisa!

— Há outro insulto que dizem muito — disse uma freira tão jovem que parecia uma criança. — Parido a punheta?

Isabel ergueu o olhar para os céus. Aquela monjinha tão jovem só podia estar brincando, não fazia seu estilo, ela realmente não sabia o que estava dizendo. Isabel mudou de assunto.

— Cabeça de bagre, energúmeno... São os que eles mais dizem, porque é o que dizem os marinheiros.

— Virgem santa — disse uma, fazendo o sinal da cruz.

Quem não estava satisfeito era Balmis. A chegada de uma expedição patrocinada pelo rei da Espanha não merecia o deslocamento do excelentíssimo senhor governador para recebê-los? Obteve as respostas para suas perguntas à noite, quando foi convidado com os demais médicos da expedição a comparecer ao palácio para cumprimentar o governador, o brigadeiro general Ramón de Castro, que os recebeu na companhia do doutor Francisco Oller, cirurgião-chefe do Hospital Militar. Não houve calor nem entusiasmo nas boas-vindas. Balmis logo soube por quê.

— Diante do surto epidêmico que ameaçava nossa ilha no ano passado — contou-lhes o governador —, só consegui material em vidrinhos.

— Fios impregnados em linfa vacinal — precisou o doutor Oller. — Foi enviado por meu correspondente, o doutor Mondeher, da ilha vizinha de Saint Thomas.

Balmis, que sonhara em ser o primeiro médico a vacinar nas Américas, não conseguiu ocultar a frustração. Além disso, ofendeu-se ao saber que o governador havia encarregado Oller de oferecer a vacina ao público, quando ambos sabiam que a expedição estava a caminho e os fios não eram confiáveis, pois a matéria vacinífera perdia eficácia com o calor. A Administração Municipal havia alugado uma casa na plaza de Armas para realizar sessões de vacinação, e duas mil pessoas passaram por lá.

— Aqui você terá pouco trabalho, Balmis... Já há tantos vacinados!

— Tem certeza de que as vacinas funcionaram?

— Absoluta.

Balmis farejava algo de errado naquela história: por acaso seriam movidos pela cobiça e vendiam doses de vacina? Ou planejaram se adiantar para apontar o feito e ganhar crédito político?

— Ofereceram a vacina gratuitamente — disse Salvany, que havia realizado uma pequena investigação por conta própria —, mas é bem possível que tenham se antecipado para ganhar a simpatia do povo.

Salvany descobrira que o doutor Oller, graduado, assim como ele, pelo Real Colégio de Cirurgia de Barcelona, havia introduzido alguns anos antes a variolização em Porto Rico, mas tinha tanto medo dos riscos que não submeteu os próprios filhos ao processo. Por outro lado, testou a vacinação assim que obteve os cristais de Saint Thomas.

— Disse que a primeira tentativa foi inócua, mas a segunda funcionou...

— Temos de ver isso — apontou Balmis.

— Logo depois — prosseguiu Salvany —, o governador mandou vacinar as duas filhas e a esposa. E o regente, que alguns anos antes conseguira escapar de um surto causado pela variolização, também pediu para ser vacinado.

— Mais que conter a epidemia de varíola, o que desejavam era se protegerem eles mesmos.

— Até mesmo o bispo, antes de embarcar para Caracas, onde seria consagrado, tomou a mesma precaução. Não nos esperaram por uma simples razão: todos quiseram se vacinar antes do resto.

Não eram movidos pela cobiça, concluíram os médicos, mas pelo egoísmo, pelo desejo de serem os primeiros a se proteger, eles e seus conhecidos, passando por cima das normas estipuladas pelo Protomedicato da Espanha.

— Oller quis obter méritos com o governador, que, por sua vez, queria ser condecorado pelo Conselho das Índias.

Diante de um governador e um médico que não seguiam um método profissional e propagavam, segundo o alicantino, falsas vacinas que não protegiam da varíola, a trupe beneficente dos expedicionários tinha de deixar tudo às claras.

— Precisamos demonstrar que essas vacinas não funcionam — disse Balmis a Salvany. — Estão enganando as pessoas.

— Não me parece que Oller tenha seguido o protocolo adequado.

— E como poderia, se o desconhece?

— E também devido à pressa, por querer se adiantar.

— Pouco importa a razão, Salvany. O fato é que não elaboraram um censo confiável dos vacinados nem quiseram criar equipes de vacinação... É como se houvessem esquecido da necessidade de manter o fluido vivo! Como se não tivessem a intenção de continuar vacinando, a começar pelos recém-nascidos.

Alguns dias mais tarde, ao se inteirar de que uma pessoa vacinada por Oller havia morrido de varíola, Balmis questionou publicamente a eficácia da campanha do governador. Foi ver o bispo, recém-chegado de Caracas, e o informou da possibilidade de que a vacinação tivesse sido ineficaz.

— Queremos deixar-vos alguns dias em observação...

Aterrorizado com a possibilidade de desenvolver a varíola devido a uma prática ruim, o bispo concordou. Logo Balmis e Salvany confirmaram suas suspeitas.

— Vossa vacina não deu resultado, Eminência.

— E...? — perguntou, assustado.

— Nada, não tem problema. Mas nós precisamos de apoio para que um caso desses não volte a ocorrer. Para que tudo seja feito como deve ser feito.

Ao concluir o sermão de domingo na catedral, o bispo, que apoiava a postura oficial de cooperação que a Igreja acabara por adotar, disse:

— Meus filhos, como bom pastor que guia suas ovelhas, volto a recomendar que se protejam da varíola comparecendo aos postos de vacinação, mas que o façam segundo os ditames do doutor Balmis e sua equipe. Para servir de exemplo, ofereço-me para uma nova vacinação.

Quando, em 26 de fevereiro de 1804, Balmis se preparava para vaciná-lo com o fluido de um dos garotos, o doutor Oller apareceu de surpresa na Casa de Vacinação.

— Você não precisa fazer isso, Balmis. Não conseguirá me ridicularizar.

O diretor da expedição respondeu:

— Ridicularizá-lo? Não vim para isso; vim para vacinar do jeito certo.

— Meu procedimento é tão bom quanto o do doutor.

— Como pode negar as evidências?

Balmis estava fora de si.

— Nem mesmo o homem mais ignorante teria procedido como você, doutor! Veja este rapaz!

Apontou para um jovem, de sobrenome Sánchez. Tinha a cara coberta de marcas de varíola. Havia sido vacinado por Oller em San Juan, e o acaso quis que naquele preciso momento o rapaz retornasse de Yabucoa, sua aldeia. Nele, a vacina não tinha surtido efeito. Oller ficou lívido diante da prova de seu fracasso. A situação, testemunhada pelo bispo, era especialmente violenta.

— Aqui está a prova de sua ineficácia — disparou Balmis. — Se não seguirmos o método já testado pelos especialistas, não chegaremos a lugar nenhum! E o doutor deveria saber disso.

Mas Oller oferecia resistência.

— Trarei pessoalmente os vinte e nove que vacinei e que os senhores revacinaram — balbuciou. — Não demonstram reação à segunda vacina porque a primeira, aquela que eu fiz, surtiu efeito, sim.

Balmis ergueu o olhar aos céus e disse em seu tom petulante:

— Espere alguns dias e verá como reagem a minha vacina... A sua é um número de comédia manjado, uma fraude previamente ensaiada!

— O doutor não me insultará!

— Não insultarei, só direi que o senhor é a pessoa mais incompetente que há para assumir uma responsabilidade tão séria.

O prelado mudou de cor quando viu que Oller investia contra Balmis com os punhos fechados e um olhar de raiva profunda. O religioso levantou-se da cadeira e intercedeu na briga.

— Acalmem-se, cavalheiros, acalmem-se.

A notícia do estranhamento circulou com rapidez.

— Brigaram a chutes e socos...

— E quem ganhou?

— Nosso diretor! — diziam os garotos.

Logo, as dúvidas de Balmis se tornaram de conhecimento público e os pais começaram a aparecer para revacinar os filhos. Diante da pressão popular e daquela que vinha do próprio bispo, o governador Castro e seu cirurgião militar tiveram de dar o braço a torcer.

— Autorizaram-nos a espalhar cartazes por toda a cidade para revacinarmos os vacinados nos últimos dias do mês.

— Isabel, contamos com sua ajuda, certo?

Ela assentiu. Como o resto da equipe, ficava incomodada diante das tensões entre as partes. “Que diferença para aquela escala em Tenerife”, disse a si mesma.

Isabel teria gostado de se misturar mais com a população local e desfrutar de seu status de dona. Mas mal houve oportunidade, devido à debilidade das relações entre as autoridades locais e a direção da expedição, de modo que passou a maior parte do tempo com as freiras, vigiando os garotos que brincavam com a criançada local na praia e nas ruas.

— Nenhum desses negrinhos, mulatos e mestiços sabe quem são os pais. Alguns sabem quem é a mãe, mas nunca o pai. Aqui vivem todos afastados de Deus.

Isabel engoliu em seco. As palavras das freiras fizeram-na recordar que vivia em uma mentira piedosa, oferecida por Balmis para que ela pudesse se redimir. Com a diferença de que não se sentia afastada de Deus.

— O que são essas marcas que os negros têm nos braços?

— A marca da escravidão, minha filha. Quando chegam da África, encostam neles um ferro incandescente, e a cicatriz que fica é a maneira de identificá-los.

— São capazes de dançar durante horas ao som desses tambores — acrescentou a freira mais velha — e, quando caem de bêbados, dedicam-se ao amor livre atrás dos arbustos.

De seu quartinho, Isabel escutava-os cantar sob a sombra das bananeiras, e a esses cantos se somavam os sons da rua, as campanadas da catedral e o estrondo dos aguaceiros repentinos.