Despojado de sua glória, farto de tantos empecilhos e tanta insipidez e sem vontade de perder mais tempo defendendo sua opinião de especialista científico contra o militar e o aristocrata locais, tendo vista a imensidade da tarefa que os aguardava, Balmis fixou a data de 2 de março, ou seja, quatro semanas após sua chegada, para partir de Porto Rico em direção a Caracas. Foi então que outro assunto turvou ainda mais suas relações com o governador. A expedição precisava recrutar quatro garotos para levar a vacina à capitania-geral da Venezuela, e o governador não mexeu um dedo sequer, alegando que praticamente não restavam crianças para ser vacinadas, assumindo, assim, a defesa de seu médico militar e de suas vacinações. Então, Balmis pensou em Isabel.
— Precisamos de mais crianças — disse a ela. — Sem a colaboração dos oficiais locais, apenas a senhora, talvez com a ajuda das irmãs, poderá nos ajudar a recrutar pelo menos outros quatro. Suplico que vá até os bairros pobres tentar convencer as famílias.
— Uma coisa é deixar seus filhos serem vacinados, outra é deixá-los partir com desconhecidos para uma viagem marítima.
— Sempre é mais fácil se são pobres.
— Nisso o doutor tem razão.
Isabel e os enfermeiros deixaram os mais novos sob o cuidado das irmãs na Casa de Vacinação e, guiados por duas freiras, percorreram os subúrbios da cidade para conseguir a mais preciosa das cargas: crianças pobres. Isabel oferecia às mães levar os filhos ao México, onde receberiam educação como bolsistas do rei entre os garotos galegos. Foi assim que conseguiu reunir quatro famílias cujos filhos viviam nas ruas. Mas um deles, Juan Eugenio, tinha aspecto de doente, e Isabel decidiu excluí-lo. Balmis insistiu:
— Precisamos de quatro.
— Não parece estar bem de saúde.
— Se não encontrar outro, vamos levá-lo. Três não é suficiente, seria muito arriscado.
Arriscado para a expedição, mas e quanto ao risco assumido pela criança? Isso Balmis não via ou, conforme Isabel acreditava, não queria ver. Quando já haviam embarcado, Balmis mudou de opinião.
— Percebi que não há espaço na embarcação María Pita — disse. — É melhor propor a eles que os devolvamos quando estivermos na Venezuela.
— Mas isso irá privá-los dos benefícios prometidos. Não aceitarão.
— Precisaremos fazer algum milagre — disse Balmis.
De fato, as mães protestaram energicamente e quiseram tirar os filhos do barco.
— O que nós, pobres, temos além de nossas crianças? — lamentavam-se.
— Eu entendo — disse Isabel, que jamais teria se separado de Benito, nem por todo o ouro do mundo.
Então, ainda que a contragosto, usou a cartada que às vezes funcionava com os pobres.
— O que posso lhes oferecer é uma compensação, algum dinheiro.
Ela viu o rosto das mulheres se iluminar. Balmis precisou se resignar a oferecer um montante de cinquenta pesos, o equivalente ao salário de seis meses de um pedreiro2, por dois garotos de quatro anos, um de oito e outro de nove. Isabel achava imoral pagar por Juan Eugenio, pois via que não estava bem, mas acabou cedendo diante da pressão de Balmis e dos familiares. Todos eram filhos naturais, sem pai conhecido.
De acordo com o regulamento da expedição, esse montante deveria ser pago pelas autoridades locais. Mas as relações entre Balmis e o governador Castro estavam tão deterioradas que os dois só se comunicavam por cartas. Nos dias que antecederam o embarque, o governador deu como resposta ao pedido de reembolso que era contrário ao pagamento, alegando que a vacina havia chegado antes à ilha. Era uma maneira de fazer pouco caso de Balmis, de negar a importância da visita da expedição e de redirecioná-la à sua própria campanha de vacinação, por mais ineficaz que houvesse sido. Balmis precisou arcar com os gastos tirando do próprio bolso.
— É pouco cínico esse governador Castro! — disse ao capitão. — Anda por aí dizendo que já tinha introduzido a vacina na ilha, mas lá estão Isabel, Salvany e o resto da equipe revacinando uns mil e tantos que supostamente já foram vacinados por Oller e trabalhando até a meia-noite.
Isabel havia se tornado especialista em fazer com que as crianças não gritassem como se estivessem sendo degoladas. Contava-lhes histórias de bons espíritos que entravam pelo braço e se expandiam por todo o corpo, deixando uma marca; então, apontava para o pequeno corte e as crianças olhavam para ela com os olhos arregalados. Um mágico não teria se saído melhor.
Em 2 de março de 1804, os expedicionários embarcaram de volta preparados para uma travessia que deveria ser curta. Os quatro moreninhos berraram muito ao se despedir das famílias — ainda mais quando dois deles foram vacinados, por mais que lhes dissessem que todas as crianças que viajavam no barco haviam passado pelo mesmo processo sem chiar. Em sua cabine, Balmis escreveu em seu diário que partiriam com poucas crianças, pois o governador havia imposto a eles dificuldades de todos os tipos. A falta de ventos favoráveis atrasava a saída.
— Quando poderemos zarpar? — perguntava a Pedro del Barco. — Estamos há mais de uma semana ancorados!
— O que posso dizer além do que o doutor já não saiba? É só nos arranjar um ventinho.
Balmis olhava para o céu em busca de algum sinal, em vão.
— Não quero parecer insistente, mas deveríamos levar conosco um piloto local para nos ajudar a entrar nas águas da Venezuela, que são traiçoeiras.
— Tenho certeza absoluta de que o capitão se sairá muito bem. Sua perícia e sua experiência não têm páreo.
— Agradeço o elogio, doutor, mas, pense bem, daqui a pouco pode ser tarde demais.
Balmis, que já gastara dinheiro de forma inesperada para compensar a família dos rapazes, não queria ter novos gastos. Tampouco o animava a ideia de lidar com qualquer autoridade daquela ilha. Só queria partir.
Todas as manhãs, o bote auxiliar levava barris de água fresca, abacaxis, mamões, goiabas, maçapães, alfajores de iúca e doces preparados pelas freiras para o lanche dos garotos. Mas não havia fruta ou doce no mundo capaz de aliviar a tensão que havia se instaurado naquele barco. Tensão entre as crianças devido à inatividade, aos mosquitos e ao calorão, que Isabel mitigava abanando uma folha de palmeira sobre os pequenos, como vira as habitantes locais fazerem. Cándido e Benito apelidaram os novos de “negritos”, e logo todo o barco os chamava assim. Provocavam-nos apenas para que os porto-riquenhos os insultassem.
— Mariconas, come-bostas!
Os garotos galegos retrucavam:
— Babaquaras, merdalhões!
Cándido e Benito caíam na risada enquanto os demais se engalfinhavam aos socos.
Também havia tensão entre os marinheiros, que cochichavam sobre a possibilidade de retornar à Espanha e continuavam atribuindo a calmaria à má sorte causada pela presença de Isabel. Sobretudo, pairava um clima de tensão entre os médicos, pois, conforme o tempo passava, talvez começassem a faltar garotos para o transporte do fluido, o que significaria uma catástrofe de consequências incalculáveis.