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Quatro dias depois, aproveitando a chegada de notícias urgentes sobre a epidemia que assolava Santa Fé de Bogotá — e cujo pedido de auxílio ao rei da Espanha havia antecipado o início da expedição –, Balmis se reuniu com Salvany nas dependências do palácio do governador de Caracas.

— Andei pensando e acho que chegou o momento de o senhor se encarregar do comando de uma sub-expedição ao reino de Santa Fé, onde certamente terá o mesmo acolhimento que recebemos aqui...

Salvany ficou ainda mais pálido que de costume. Esperava algum tipo de represália, mas jamais uma tão cruel. Balmis prosseguiu:

— Com Grajales como ajudante, além do prático Lozano e do enfermeiro Bolaños. O objetivo é levar a vacina pelo rio Magdalena até Santa Fé de Bogotá, então seguir pelo interior do continente até o Peru e Buenos Aires. Enquanto isso, eu vou a Cuba, à Nova Espanha e, de lá, às Filipinas.

— Mas não havíamos combinado de dividir a expedição após chegarmos ao México? Se ficarmos juntos agora, podemos superar as adversidades, como fizemos em Porto Rico.

— Eu sei, Salvany, tenho consciência do risco que corro ao desligá-los de meu comando, mas a saúde da população deve estar acima de nossas conveniências. A situação em Santa Fé de Bogotá exige nossa presença com extrema urgência.

Fez-se um silêncio. O catalão se sentia castigado, manipulado, ludibriado. Suspeitava que Balmis lhe passava uma missão em um território ao qual ele mesmo não desejava ir e não parecia preocupado com o fato de Salvany desconhecer completamente aquele destino.

Então, soltou a pergunta que tinha na ponta da língua:

— E Isabel?

Ouvir aquele nome desencadeou um tique no rosto de Balmis, que respondeu:

— Isabel continuará comigo. Vai levar os garotos até a Nova Espanha, onde passarão a depender do vice-reinado, e seguirá até as Filipinas. Uma vez lá, estará livre para retornar à Europa ou permanecer na América. Sei por que está perguntando isso, Salvany...

O catalão ficou apreensivo. Temia que Balmis o censurasse por alguma coisa. Fofocas e difamações eram moeda corrente em um grupo de gente tão diversa e que viajava junto havia tanto tempo.

— Teme não encontrar crianças, não é?

— Exato.

— O doutor deverá conseguir dois ou mais garotos em cada povoado.

Salvany o deixou prosseguir, pois de nada adiantava discutir. Já haviam falado da necessidade de se dividir. No entanto, teria apreciado alguma liberdade na hora de escolher o itinerário ou o momento da cisão. Balmis lhe aplicava um castigo: encarregava-o da parte mais difícil da viagem, guardando para si a joia da Coroa: Nova Espanha e sua capital, México, a cidade mais rica e importante da América espanhola, onde havia vivido durante anos. Também impedira Salvany de ter aquilo que lhe era mais valioso: a companhia de Isabel.

— Não vejo como cobrir todo o território se não nos dividirmos — acrescentou Balmis.

Salvany estava olhando pela janela. O céu azul, o ar puro e cristalino, a vegetação prodigiosa... Caracas era parecida com a ideia que ele tinha do paraíso. Aquele teria sido um bom lugar onde ficar. Bom para sua saúde, com temperatura estável durante o ano inteiro, sem muita umidade... Com Isabel ao lado, teria tudo. A felicidade tão próxima e, ao mesmo tempo, tão longe.

— Não, não... — disse o catalão.

— Como é? — perguntou Balmis.

— O doutor me desculpe, estava pensando em outra coisa.

Salvany voltou à realidade. Era melhor que fosse assim. Ainda que ficasse de coração partido ao se separar de Isabel, ele já era perito no assunto. Assim como havia rompido com aquela que seria sua esposa, sabia que cedo ou tarde precisaria fazê-lo com qualquer outra mulher que entrasse em sua vida. Ele não podia ser o futuro de ninguém, ainda mais de alguém querido e admirado. Para Salvany, amar significava obrigatoriamente sacrificar-se, separar-se, abandonar. Pelo bem de sua amada, deveria partir.

Assim, virou-se para Balmis e disse:

— Compreendo a prioridade, doutor... O processo de difusão da vacina deve ser o mais rápido e funcional possível.

Naquela mesma noite, quando viu Isabel no convento onde estavam hospedados os garotos, Salvany, com o coração na mão, comunicou a ela que a expedição se dividiria. Isabel sentiu o corpo gelar.

— Mas você não pode viajar sozinho...

— Estou melhor. Enquanto cumprir com meus ideais, Deus me dará forças. A senhora sabe que...

— Balmis se vingou da pior maneira... — interrompeu Isabel. — É um ser... espantoso — disse, enquanto lutava para conter as lágrimas.

— Não, Isabel, não... — disse Salvany, acariciando o cabelo dela. — No fundo, Balmis tem razão... a vida é assim. Você não pode me amar, porque tenho pouca saúde.

— Mas como poderei viver sem você?

Seria difícil para ela suportar o dia a dia sem ele, sabendo que já não se cruzariam nos corredores do barco, que não poderia chamá-lo a qualquer momento usando o pretexto de um garoto indisposto, que não haveria mais conversas no convés à luz do luar nem o suave deixar-se levar pela fluidez de suas palavras. Buscava refúgio em algum resquício de esperança, pois era doloroso pensar em outro amor impossível.

Salvany mudou de assunto.

— Se não nos dividirmos, nunca conseguiremos o que conseguimos na Venezuela. Você não se enche de felicidade pelo que conquistamos aqui?

— A felicidade virá para mim quando todos os garotos estiverem sãos e salvos... E quando eu estiver com você.

Salvany acolheu-a em seus braços. Por pouco tempo, pois naquele convento havia crianças e freiras por todos os lados.

— A senhora é parte da expedição, Isabel, e como tal o sucesso também é seu.

Isabel não estava com ânimo para ouvir falar em sucesso. A saúde do garoto doente e a notícia que lhe dera Salvany mergulharam-na em um triste desamparo. Ao ver que o pequeno Tomás Melitón estava aos prantos porque um garoto mais velho havia batido nele, ela se recompôs e ajeitou o cabelo.

— Diga-me, quem cuidará dos garotos de que vocês precisarão?

— Nós mesmos. Você nos ensinou a fazer isso — respondeu Salvany.

Isabel esboçou um sorriso forçado, cheia de pesar.

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Após a sessão de vacinação no palácio do governador, Balmis se aproximou dela.

— Parece-me uma excelente ideia que o pequeno Cándido permaneça na Venezuela — disse.

— Cándido seguirá conosco, doutor.

— Para que expô-lo ao risco de mais navegações? Quem sabe o que o espera no México?

— O garoto seguirá conosco, não posso abandoná-lo.

Disse com tamanha firmeza que Balmis não insistiu. Sabia por que ela reagia daquela maneira e não queria, em hipótese nenhuma, que Isabel deixasse a expedição.