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Após solicitar ao governador Vasconcelos seis garotos para si e quatro para Salvany, que fossem robustos e saudáveis e não tivessem sido vítimas da varíola nem vacinados — Balmis já não queria crianças tão jovens quanto antes –, desceram de Caracas até o porto de La Guaira. Isabel estava com um humor sombrio. Não se separava de Salvany, que agora se mostrava aturdido por seu destino e tinha a pele cinza de tanta palidez. “Quem iria ampará-lo?”, perguntava-se ela. “Quem prepararia os medicamentos?”

No dia da partida, Balmis deu suas últimas instruções ao grupo de Salvany.

— Recomendo aos senhores união, eficácia, precisão nas operações e a devida obediência aos chefes, com quem precisarão se entender — disse Balmis, de pé sobre o casco de uma embarcação recém-calafetada no porto de La Guaira. — Também recomendo que peguem dois ou três garotos em cada parada, de constituição robusta e não muito novos, pois a experiência mostrou que, além de darem mais trabalho, estes ficam expostos e são frágeis devido à debilidade e à facilidade com que mudam de comportamento.

Estava utilizando os mesmos argumentos que Salvany havia utilizado em La Coruña para que não levassem garotos tão jovens. Balmis era assim, se apropriava de tudo. Então, entregou-se a ponderações mais científicas, como à importância de observar a influência da vacina sobre outras doenças comuns. Mantinha a ambição de acrescentar aquela viagem à lista das grandes expedições científicas da Espanha iluminista. Não houve sentimentalismos quando se despediu do grupo.

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Balmis tinha o olhar voltado para a Cidade do México, capital do vice-reinado da Nova Espanha, que abarcava desde a América Central até as distantes terras do Canadá e os territórios de Texas, Nevada e Novo México. Agora, tornar a vacinação um sucesso ainda maior do que havia sido em Caracas só dependia dele, de sua determinação, sua inteligência e seu tato para superar os obstáculos burocráticos e culturais. Já não teria Salvany para negociar, argumentar e convencer os reticentes nem para lhe fazer sombra, tampouco para roubar o coração de Isabel, sua protegida.

Em La Guaira, três barcos contratados pela expedição esperavam por eles. Em um bergantim-correio repleto de mercadorias com destino aos Estados Unidos e que faria escala em San Juan, os quatro garotos porto-riquenhos seguiam para ser devolvidos aos pais. Três estavam vacinados e pletóricos; viveram uma experiência inesquecível, um conto de fadas que não queriam que terminasse; desejavam permanecer com os colegas galegos para continuar brincando de esconde-esconde nos porões e recebendo acolhida de príncipes em cidades desconhecidas. Não lhes servia de consolo o fato de que logo estariam outra vez com a família. Choravam amargamente no convés do bergantim El Palomo enquanto davam adeus aos amigos, aos seis novos integrantes com quem nunca brincariam e a Isabel. Ela estava especialmente compungida porque Juan Eugenio, desidratado pela febre e pela diarreia, viajava naquele barco. Ela o havia deixado em uma cabine debaixo de um cobertor, pois tinha frio. Só esperava que a travessia fosse tranquila para que chegassem o mais cedo possível. Abraçou-o demoradamente, deu instruções a um marinheiro acerca dos cuidados necessários, despediu-se dos demais e voltou à embarcação María Pita.

Com a atividade intensa da estiva, o abastecimento dos barcos e o alvoroço da multidão ainda mais entusiasmada que no dia da chegada, agitando braços e panos no ar, não conseguiu se despedir dos que viajavam no bergantim San Luis, grupo que acabaria ficando conhecido pela “expedição Salvany”. A separação era traumática, pois nada une tanto quanto o sofrimento compartilhado. Durante os últimos seis meses, haviam passado juntos por penúrias, decepções, surpresas, desgostos e bons momentos. Separavam-se sem saber se voltariam a se encontrar.

San Luis e María Pita navegaram lado a lado por muitas horas. Isabel e Salvany estavam cada um no convés de seu respectivo barco, apoiados na amurada. A despedida foi silenciosa, sem gestos nem abraços. Podiam ser privados da companhia um do outro, da liberdade para decidir, mas não do olhar. Isabel imaginava-o cruzando rios caudalosos, atravessando vales e planícies, escalando montanhas ciclópicas... “Como suportaria isso?”, perguntava-se. Ficou com a última imagem de seu sorriso, a barba de três dias que encobria seu rosto anguloso e a lembrança da felicidade que ele a fizera sentir. Havia tratado-a com bondade e interesse. Havia lhe dado calor humano, ternura, tempo e atenção. E a felicidade se aprecia quando é perdida. Pouco a pouco, uma sensação de vazio foi se apoderando de Isabel, que percebia o tanto de espaço que Salvany havia ocupado em seu coração. Agora, saberia outra vez o que era a solidão. O homem que a fizera sonhar e sentir se desvanecia no horizonte. Ao fim de várias horas de navegação, o San Luis virou a oeste, rumo à desembocadura do rio Magdalena; a embarcação María Pita continuou em direção a Cuba. “Voltarei a vê-lo?”, perguntou-se Isabel. Haviam prometido manter contato por meio dos relatórios que Salvany enviaria à metrópole e também por carta, graças ao sistema de barcos-correio que interligava os vice-reinados e as capitanias-gerais da América a intervalos regulares. Quando entrou no barco com o rosto encharcado de lágrimas, disse a si mesma: “Quase prefiro a solidão de antes”.

À noite, o vento refrescou. O capitão ordenou que arriassem a vela-mestra e o traquete e içassem a vela de tempestade antes que se iniciasse uma tormenta tropical curta e violenta. Cándido era o único passageiro que se divertia, que achava os raios, os trovões e as ondas enormes emocionantes... O barco deslizava veloz, mergulhando nas ondas e recolhendo água ao se erguer para subir outra vez, empinando até a crista esbranquiçada. A tormenta amainou, mas o vento continuou nos dias seguintes sem piedade nem trégua.

O mundo que Isabel via através de sua escotilha era como uma imensa caldeira de leite fervente que parecia se lançar sobre o barco, abaixo de um céu tão baixo e sujo que era possível tocar com a mão. O convés era varrido por tantos golpes d’água que os marinheiros não conseguiam manter-se em pé. Escutava-se dia e noite o silvo do vento, o tumulto do mar e o ruído da água se estatelando contra o casco. Os marinheiros, os médicos e Isabel viviam em tensão constante, sem descansar; deslocavam-se segurando com força nos corrimãos e nas camas. Os garotos estavam aterrorizados. Todos choravam, enjoados. Cándido deixou de ver aquilo tudo como brincadeira e também foi vítima de náuseas e vômitos. O pequeno Benito acabou semiconsciente, com a pele fria e espasmos. Os conselhos tradicionais — desde respirar sal de amoníaco até direcionar o olhar para o horizonte — não funcionavam naquele inferno. O pânico de ver seu filho assim e a angústia de não poder aliviá-lo, tampouco aos demais, fez com que ela também passasse mal como nunca acontecera antes, com vertigem e perda de coordenação nos movimentos. Desesperada, chegou a pensar que morreriam. Perguntou-se como havia se permitido embarcar naquela aventura. Por que havia caído na ladainha de Balmis, um homem impiedoso e ávido pela glória que nem sequer se aproximara da cabine dos garotos? Na verdade, Balmis estava fechado na própria cabine vivendo sua agonia, sofrendo de disenteria e tão enjoado que nem sabia onde estava. Seu sobrinho, Francisco Pastor, cuidava dele como podia. Para aqueles passageiros, não existia céu nem estrelas, apenas nuvens baixas e um mar enfurecido. Chegaram a esquecer o dia da semana, o mês e até as lembranças da vida em terra. A embarcação María Pita balançava, inclinava, caía a toda, gemia por todas as balizas como um animal submetido à tortura. Embaixo, os marinheiros se embrenhavam nas latrinas à luz de uma lanterna de azeite. Tinham o rosto sujo e uma expressão despavorida, estavam esgotados, como se estivessem havia anos sem dormir; já não sabiam como era estar seco e sentir o solo firme sob os pés.