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Finalmente desembarcaram na maior ilha das Antilhas. Não onde haviam previsto, Santiago de Cuba, mas no lugar a que foram levados pelos ventos, mais ao oeste, na bela cidade amurada de San Cristóbal de Havana. Em 26 de maio de 1804, dez dias mais tarde do que calcularam de início, a corveta ancorou em meio a um bosque de mastros e velas de embarcações de todos os tamanhos. Da enseada, os passageiros exaustos contemplaram aflitos o tráfego das barcas que carregavam açúcar, cacau e tabaco em meio aos grandes navios. Embora não fossem esperados, logo apareceram os membros da comissão da Administração Municipal, que comprovaram como estava debilitada a saúde dos expedicionários, especialmente a dos garotos, que saíram do barco com um aspecto miserável, sujos, apoiando-se uns nos outros, como sobreviventes de uma batalha. Foram conduzidos ao interior das muralhas por ruas sem calçamento onde transitavam homens e mulheres negros, muitos deles escravos, e seguiram até a cômoda casa do capitão-geral, o marquês de Someruelos, a qual era envolta por um jardim tropical com macacos nas árvores e gaiolas repletas de pássaros multicoloridos. Naquele paraíso, foram recebidos na presença dos oficiais da guarnição e das famílias mais distintas da cidade, principalmente fazendeiros e comerciantes espanhóis.

Isabel aceitou de bom grado a hospitalidade do marquês e se instalou com o filho em um quarto de frente para o jardim, com cortinas que voavam com a brisa. Balmis e os demais se alojaram nos palacetes dos criollos ricos, e os garotos, no convento das freiras agostinhas, que os alimentavam à base de frutas cozidas com açúcar e pão de cazabe, feito de milho e iúca. Os marinheiros começaram a reparar a embarcação María Pita em um dos grandes estaleiros, onde eram construídos navios para a Armada Real com madeira dos abundantes bosques que cobriam a ilha. Como hóspede na casa do marquês de Someruelos, Isabel era convidada às múltiplas recepções ali realizadas. No início, ficava incomodada porque sentia que não fazia parte daquele mundo, daquela elite açucareira e negreira de uma ilha que vivia seu grande momento de prosperidade. Tampouco se sentia próxima dos empregados, escravos ou libertos. Vivia em um limbo social. Mas as pessoas eram vivazes e afáveis, e as mulheres, especialmente hospitaleiras. As de estirpe não a menosprezavam; pelo contrário, esmeravam-se para que se sentisse incluída. Lá não existiam os preconceitos da Europa. Assim, dona Isabel precisou esquecer a saia preta e o pano de galega e se vestir com saias largas de musselina branca, botinas, blusas de tafetá e flores no cabelo, já que a moda do chapéu havia passado. Sentia-se à vontade com aquela roupa alegre, adaptada ao calor, e chamou a atenção dos garotos na primeira vez em que foi visitá-los. “A diretora se fantasiou”, diziam. Ficava tardes inteiras passando a roupa das crianças, pregando botões, cerzindo calças ou simplesmente os escutando. Embora se espantasse com a vida social, não tinha remédio senão aceitar os convites. O próprio Balmis apresentava-a como uma mulher excepcional, cuja participação era fundamental para a expedição. Isabel corava e baixava o olhar.

Em um daqueles festejos, reparou nela o sevilhano dom Santiago de la Cuesta Rodríguez, homem moreno de feições marcadas, com uma barriga proeminente e que vestia um traje de linho branco, chapéu de jipijapá e sapatos de pele espanhola — o maior importador de escravos negros “boçais” (aqueles diretamente da África) e dono também de uma casa comercial que oferecia serviços bancários e financiamentos, ou seja, que emprestava dinheiro para a produção açucareira. Dom Santiago, viúvo havia pouco tempo, deixou-se seduzir pela altivez natural de Isabel e por uma beleza que a roupa branca realçava. Como era da península Ibérica, sua presença, seu sotaque e seus modos pareciam-lhe exóticos. Ele resolveu organizar um jantar para os expedicionários. Ao término do ágape, pediu que ela o acompanhasse e conduziu-a pelos corredores ornamentados de seu palacete até chegarem ao jardim. Em uma edificação contígua, mostrou uma coleção de plantas secas como se fosse a coisa mais extraordinária do mundo.

— O explorador Humboldt foi meu hóspede na viagem que fez a Cuba há dois anos e deixou seu herbário sob meus cuidados.

— Ah... — disse Isabel.

O nome Humboldt não lhe dizia nada, tampouco ela entendia o porquê de tamanho fascínio por plantas secas. Tinha consciência de que aquele magnata a tomava por uma mulher do mundo, quando não era mais que uma babá, filha de pais “pobres de solenidade”. O homem aludiu ao sentimento de solidão que o torturava desde que perdera a esposa e às benesses de compartilhar uma vida em matrimônio e falou de seus negócios, da importação massiva de negros que trazia da África e de seus projetos de abrir fábricas para produzir em série roupas para escravos. Nada do que dizia impressionava Isabel, que estava com os pensamentos longe dali. Não a impressionavam nem a ostentação de poder e riqueza (que dom Santiago realizava com ênfase crescente à medida que percebia a falta de interesse) nem o relato do medo que tinha de ser assassinado por seus escravos durante o sono, como ocorrera com todos os nobres americanos escarmentados pela revolução dos africanos na vizinha Santo Domingo. Isabel não conseguia se interessar pelo personagem nem pelo mundo dele. Havia visto a miséria do bairro dos escravos, situado em um lamaçal. Os barracos de adobe onde coabitavam gado, galinhas e crianças desnudas com a pele cheia de chagas lembraram-na da miséria de sua infância. Agora, seu coração se ocupava de Salvany e dos garotos da expedição. Por isso, tampouco ficou feliz ao receber o soberbo buquê de flores que dom Santiago lhe enviou no dia seguinte, com um bilhete em que declarava seu amor de forma direta e prometia a ela um império de felicidade. Armou-se um grande rebuliço entre as mulheres que passavam pela casa do marquês de Someruelos, que olhavam para ela com admiração, como se houvesse ganhado um prêmio. E que prêmio! O viúvo mais cobiçado da sociedade. Por isso, não entenderam quando Isabel lhe respondeu com uma carta em que agradecia pelas flores e por toda a atenção e explicava que seu coração não estava disponível. A recusa não serviu para nada além de atiçar o orgulho de dom Santiago, que voltou a insistir enviando seu cocheiro, um negro vestido de fraque preto com fitas douradas, colete, polainas, cartola e um chicote requintado e com um pacote nos braços.

— Presente da parte de dom Santiago — disse a ela o negro.

Isabel abriu e viu um leque de ouro e seda bordada com delicados desenhos de teias de aranha.

— Não posso aceitar, devolva.

— O sinhô pódi sincomodá muito — respondeu o homem.

As mulheres que circulavam pela casa recomendaram a mesma coisa enquanto admiravam o leque — ninguém repreendia a conduta de dom Santiago, isso estava fora de cogitação. Isabel entendeu que aquele homem não era como Jerónimo Hijosa — era um cacique acostumado a mandar, ser obedecido e conseguir o que desejava... Seu império não se baseava na compra e venda de seres humanos? Isabel estava decidida a não se deixar comprar, por preço algum.