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Em Cuba não existia apenas a elite imperial da Espanha, à qual pertencia o marquês de Someruelos. Havia um punhado de cientistas, alguns deles membros do Exército, outros descendentes da elite açucareira, como o botânico José Antonio de la Ossa ou o doutor Tomás Romay, médico e cientista de excelente reputação, que Balmis, apesar de seus problemas estomacais, logo fez questão de conhecer. Romay lhe contou que a vacina já havia chegado a Cuba.

— Graças à expedição. Graças aos senhores.

Balmis ficou surpreso, sem entender. Romay explicou que, diante da ameaça de uma nova epidemia, aproveitou a chegada de uma mulher a Havana, María Bustamante, que o próprio Balmis havia vacinado em Porto Rico para inocular seus filhos e, em seguida, diante do sucesso do procedimento, outras duzentas pessoas. Dessa vez, Balmis reagiu com contentamento. A vacina havia sido levada não pela ambição de médicos ou oficiais venais, mas de maneira natural, por uma pessoa vacinada que um médico inteligente como Romay soube aproveitar. O procedimento estava se espalhando por conta própria naquela ilha de trezentos mil habitantes, o que não deixava de ser admirável; assim, só o que restava para Balmis era organizar bem a equipe de vacinação. Dedicou-se a isso com a inestimável colaboração do doutor Romay, homem honesto que agia de forma metódica e cautelosa e não disfarçava sua admiração por Balmis.

— Estou muito agradecido pelo fato de o doutor ter vindo com seus ilustres colegas supervisionar meu trabalho e corrigir meus erros.

Para os ouvidos de Balmis, aquelas palavras soavam como música. Ambos contavam com o respaldo dos bispos, que publicaram um édito exortando os curas “a contribuir para a propagação desse feliz achado”. O de Havana, dom Juan José Díaz de Espada, era um conhecido higienista que inauguraria ao lado de Romay o primeiro cemitério extramuros da cidade. A partir das conversas apaixonadas com aqueles colaboradores, ciente de que a doença vinha com os barcos negreiros, Balmis propôs a dom Santiago de la Cuesta, que representava os demais comerciantes de escravos, que todos os negros que chegassem ao porto fossem vacinados. Dom Santiago, após consultar os colegas, disse que estavam de acordo, contanto que os gastos ficassem a cargo do Tesouro real. Absteve-se de dizer que as diretrizes dadas aos capitães dos barcos negreiros eram de assassinar à noite os escravos que contraíssem a varíola, caso se acreditasse que assim o contágio do resto do barco pudesse ser evitado. Balmis escreveu às autoridades de Madri propondo o pagamento de dois reales por semana aos facultativos da Junta de Vacinação para que imunizassem os escravos. Teria sido uma arma muito eficaz para conter o contágio, mas ele nunca obteve resposta.

Estava à espera de novos garotos para levar a vacina de Havana ao porto de Veracruz. Mas nem o governador nem o capitão-geral, tampouco os bispos conseguiram famílias dispostas a oferecer crianças. Os que viviam no orfanato local não serviam, pois todos haviam sido vacinados. Então, Balmis recorreu à especialista no assunto e lhe pediu que fizesse o mesmo que em Porto Rico, percorrendo os bairros pobres em busca de portadores.

— Não quero seguir com a expedição — disse Isabel, de supetão.

Balmis não respondeu. Era a primeira vez que ela o enfrentava; na verdade, era a primeira vez na vida que ela peitava um superior. Sempre havia se comportado de maneira submissa. Com seu pai, com dom Cayetano, com os Hijosa; nunca lhe passara pela cabeça desafiar ninguém, muito menos quem lhe dava de comer. Era algo que tinha em seu âmago. “As pessoas mudam”, pensou Balmis ao observar o vestido branco de musselina que Isabel usava. Então, lembrou-se das fofocas sobre Isabel e dom Santiago e imaginou o pior dos cenários: “Encontrou um pretendente rico, e por isso vai...”. Acabaria pagando por tê-la afastado de Salvany. Dom Santiago, com seu poder, poderia roubar facilmente a peça-chave da expedição. Se fosse isso mesmo, a situação era gravíssima. Grave a ponto de soltar as rédeas de seu mau temperamento. Ele fez esforço para se controlar.

— Chegaram até mim alguns falatórios, sabe como é, as pessoas fofocam, de que dom Santiago a cortejou e que a presenteou com objetos de grande valor... Imagino que a senhora tenha cedido às pretensões dele.

— Ainda não, doutor.

Esse “ainda” gelou o sangue de Balmis. Isabel acrescentou:

— Não sou uma presa fácil, ainda que o doutor pense o contrário.

— Nunca pensei...

— Mas agiu como se pensasse, quando só o que eu queria era consolá-lo.

Uma enxurrada de tiques o deixou praticamente sem palavras.

— Peço... peço desculpas à senhora.

— Já era tempo — ela disse para si mesma.

Instalou-se um silêncio incômodo entre os dois.

— E então? Quanto a dom Santiago?

Isabel não se dignou a responder. Balmis prosseguiu:

— Eu sei que tivemos dias muito difíceis de travessia, Isabel. E era esperado que isso ocorresse depois de tanto navegarmos, é a lei das probabilidades, mas não significa que...

— Não é por isso que desejo abandonar a expedição.

Balmis olhou para ela com um ar interrogativo. Ela devolveu o olhar.

— Acaba de chegar a notícia de que Juan Eugenio morreu no trajeto até Porto Rico.

O médico ficou um longo tempo em silêncio. Então, disse:

— Que Deus o tenha. Também devem ter sido atingidos pelo temporal. Aquele garoto estava ruinzinho desde a partida.

Isabel deixou escapar um riso nervoso. O comentário do médico lhe pareceu o cúmulo do cinismo.

— Eu disse que era preciso deixá-lo em terra, mas o doutor insistiu para que ele viesse. Nem sequer pudemos vaciná-lo.

— Ele contribuiu à própria maneira para a grandeza da expedição. Deus levará isso em conta.

— Já eu não serei perdoada por Deus.

— Será, sim. Não foi culpa sua.

O médico continuou resmungando palavras ininteligíveis. Isabel esperou que terminasse.

— Foi culpa minha.

Isabel estranhou a confissão repentina; parecia um lapso de nobreza, mas descartou a ideia, pois aquele homem vivia imerso em vaidade.

— Lembra-se do garoto que adoeceu na viagem entre Madri e La Coruña? — perguntou Balmis. — A senhora o socorreu em seguida, deixando todos nós na espera.

— Sim, se chamava Andresito.

— Eu soube que morreu na volta de La Coruña para Madri. Eu não quis dizer para não a perturbar.

Isabel estremeceu.

— A morte de Juan Eugenio poderia ter sido evitada, doutor. Bastava que não tivesse embarcado.

— Faltava um... Fiz isso por medida de segurança.

— Segurança do doutor, não do garoto.

— Pela segurança da expedição — disse, com uma pontada de exasperação.

Irritava-se ao ser posto na parede por uma subalterna.

— É bem provável que esse garoto tivesse falecido de qualquer modo, vindo conosco ou ficando em San Juan.

— Se sabia disso, por que não me escutou? A morte de um garoto, doutor... é algo que não posso... não estou aqui para vê-los morrer.

Nunca havia visto Isabel naquele estado de nervos.

— Não sou como o doutor, que não sabe o que é uma criança — prosseguiu Isabel —, que não sabe o que significa dar tudo por um filho, tudo, até mesmo a vida. Quando acordou à noite para consolar alguém? Quando preferiu morrer a ver algo acontecer àquele ser inocente que depende de si? Nunca. Para o doutor, as crianças são como fichas em um jogo… em um jogo mortal. Então, não me peça para buscar mais garotos.

Isabel apertava os punhos. Estava havia vários dias entre a fúria e a melancolia, desde que vira Salvany se afastando em definitivo, de pé, encoberto pela amurada do San Luis. Perguntava-se onde ele estaria agora. Teria deparado com a mesma tempestade? Estaria vacinando indígenas? Como teria gostado de acompanhá-lo em vez de ficar com Balmis, um iracundo manipulador! Pela primeira vez, sentia a revolta contra o destino.

— Isabel, peço que se acalme e reflita — disse Balmis. — Até agora, a senhora foi melhorando de vida... Abandonou sua aldeia, deixou de servir, tornou-se uma funcionária com salário e agora está part...

Isabel tapou os ouvidos. Não queria ouvir Balmis enumerar mais uma vez as vantagens de fazer parte da expedição. Não aguentava mais o mesmo discurso.

— Por favor, doutor, pare!

Se para Balmis o fim justificava os meios, para Isabel, não. Podia suportar tudo: o mau-caratismo e as arbitrariedades do comandante, os modos rudes dos marinheiros, a falta de privacidade, as horas intermináveis no barco, a sobrecarga de trabalho, a bajulação presunçosa do maior negreiro de Cuba, mas não aguentava a morte de crianças que estavam sob sua responsabilidade.

— Quero retornar à Espanha — concluiu.

Balmis não sabia bem como lidar com aquele tipo de crise, tampouco havia previsto esse tipo de situação. Intuía que o melhor era manter o sangue-frio e utilizar o pouco tato que possuía.

— E até encontrar um barco... Vai morar onde?

— Posso ajudar o doutor Romay a vacinar, por exemplo. Ou trabalharei no sanatório ou no bispado.

Balmis não fez mais perguntas. A dificuldade da viagem fazia suas vítimas, pensou, embora ainda lhe restasse a dúvida: teria Isabel caído nas garras de dom Santiago, homem poderoso, capaz não apenas de transmitir a ela a segurança que toda a mulher anseia na vida, mas também de influenciar seus pensamentos para desviá-la de suas obrigações?

Após um longo silêncio, Balmis disse:

— As baixas são inevitáveis em uma empreitada como a nossa, assim como os acidentes, pois estamos percorrendo um caminho nunca antes percorrido e, ainda por cima, na companhia de seres frágeis. Não temos guia nem patrão para nos orientar. Por isso, há falhas e continuará havendo. Mas o resultado é o que importa. É em relação a isso que responderemos perante Deus.

Afastou-se com passos lerdos, contraindo o pescoço.

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Como bom estrategista, Balmis deixou que se passassem alguns dias antes de voltar a vê-la. Isabel, cada vez mais angustiada com a insistência do magnata, sentindo a falta de Salvany e devastada pela morte daqueles garotos, afundou-se em melancolia. Para lutar contra o calor e a saudade, deitava-se na cama, fechava os olhos, imaginava o ar fresco de sua terra e a chuva fina refrescando seu rosto. Lembrava-se bem dos dias de sol no inverno, tão inesperados e melhores que os dias de verão, porque sabia-se que não durariam. Era capaz de se concentrar no cheiro das panelas fumegantes nos lares da Galícia, no ruído dos cascos de cavalo contra os paralelepípedos da rua Real, na enorme praia coroada pela Torre de Hércules. A nostalgia devastava seu ânimo.

Enquanto isso, Balmis enviava pedidos e solicitações formais aos bispos e às demais instituições para arranjar garotos, mas, passadas três semanas, ainda não conseguira nenhum. Tinha pressa de partir, pois antecipava um triunfo muito maior na Nova Espanha, de modo que aceitou a proposta do mordomo da casa em que estava hospedado, Lorenzo Vidat, que o convenceu a comprar três jovens escravas negras. A mais velha provavelmente não tinha dez anos.

— É um bom negócio comprá-las aqui e vendê-las em Veracruz, onde poderá ganhar cinquenta pesos por cada uma — dissera-lhe Vidat.

Balmis examinou-as meticulosamente; viu que estavam saudáveis e livres de varíola. Ainda assim, faltava uma quarta criança para garantir o transporte da vacina. Aconselhado pelo marquês de Someruelos, dirigiu-se ao quartel à procura de um jovem recruta e conseguiu convencer um “tamborzinho” do regimento de Cuba chamado Miguel José Romero a unir-se ao grupo.

Quando tudo estava pronto, mandou chamar Isabel. Falou com toda a sinceridade:

— Peço à senhora que não me deixe sozinho agora a cargo de todas as crianças que precisam retornar à Espanha. Falta pouco para chegarmos ao México e lhe peço um pouco mais de paciência. O vice-rei nos receberá com todas as honras, já foi avisado de nossa chegada pelo próprio ministro Godoy. Lá, tudo será mais fácil, solucionaremos todos os problemas. Rogo que continue conosco.

— E se morrerem mais crianças? O doutor utiliza os mais pobres e indefesos em prol de sua própria glória.

Isabel logo se arrependeu de ter dito o que pensava. “Como podia desferir um golpe daqueles em Balmis, depois de tudo o que já lhe havia dito?”, ela se perguntou, assustada. Com o orgulho ferido, o médico esboçou uma careta de contrariedade.

— Não é pela minha glória, mas pela glória da Espanha, de nosso rei e da humanidade.

Ela não se atreveu a continuar discutindo. Fez-se um longo silêncio que foi finalmente interrompido por Balmis. Com um tom seco e profissional que nunca havia utilizado com ela, disse:

— Recordo a senhora que o compromisso que adquiriu com a expedição se encerra quando houver chegado às Filipinas e as crianças que trazemos conosco forem devidamente devolvidas ou entregues a famílias da Nova Espanha.

Em seguida, Balmis fez uma reverência ligeira, deu meia-volta e partiu. Isabel ficou muito tempo pensando. A personalidade de Balmis a enojava, embora ele se mostrasse muito doce diante de estranhos. Odiava-o por tê-la separado de Salvany antes do combinado. Odiava que a houvesse obrigado a embarcar aquele garoto enfermo. Por outro lado, a sombra extensa do magnata negreiro lhe causava desassossego. Não se imaginava nos braços daquele homem que não admirava e de quem não gostava, por mais dinheiro que tivesse. A ideia de prosseguir com Balmis lhe causava repulsa; a de permanecer em Havana à mercê do homem mais poderoso da ilha lhe dava medo. Estava encurralada.