Durante a travessia do Atlântico, apesar das discrepâncias com Balmis e de não nutrir por ele muita simpatia, Josep Salvany se mantivera em um confortável segundo plano, graças ao dom de comando, à capacidade organizativa e à personalidade forte do diretor da expedição. Só precisava substituí-lo em umas poucas ocasiões. Agora, contudo, todo o peso da organização recaía sobre suas costas.
Como responsável pela expedição que agora comandava, tinha todos os integrantes sob seu controle; com Grajales de assistente, Lozano de prático e Bolaños de enfermeiro, sabia que os quatro garotos mestiços que levavam consigo seriam bem atendidos e vigiados. Mas o que Salvany não conseguia controlar era a natureza desconhecida e oscilante da costa caribenha. Passados quatro minutos da meia-noite de 13 de maio de 1804, cinco dias após ter zarpado de La Guaira, o San Luis navegava à altura de Baranquilla quando Salvany, os ajudantes, as crianças e a tripulação — todos dormindo — foram chacoalhados com uma força descomunal. O estrondo imenso foi seguido de sacodidas semelhantes às de um terremoto. O barco dava fortes solavancos, como se fosse se partir em mil pedaços. De nada servia segurar nos corrimãos ou nas grades, tamanha era a força dos trancos. Escutavam os móveis se batendo, a louça quebrando, gritos e prantos. Grajales sentiu um líquido quente escorrendo pela cabeça, pôs a mão no cabelo e viu que era sangue. Um dos garotos perdeu os sentidos após bater a cabeça, e os demais gritavam de pavor.
— Estamos encalhados! — gritou um marinheiro.
— O que faremos?
— Esperaremos para ver o que o capitão diz.
Nesse momento o barco inclinou e caiu a bombordo como uma velha baleia ferida. Homens e objetos voaram, chocando-se uns contra os outros e contra as paredes. Após esse caos, a embarcação permaneceu imóvel antes de dar um último suspiro. Salvany levou uma pancada na testa que o machucou — era uma caçarola de ferro fundido. Nesse momento, escutou-se o grito de um marinheiro:
— Água entrando!
— Estamos naufragando — gritou pelo alto-falante o capitão. — Saiam todos!
Haviam encalhado em um banco de areia e rochas na desembocadura do rio Magdalena, um lugar especialmente perigoso, porque a topografia do fundo do leito mudava.
Era uma noite escura. Os marinheiros soltaram as amarras dos botes salva-vidas e, em questão de minutos, organizaram a evacuação. Um dos garotos não queria se mexer, estava agarrado à cama, apavorado. O enfermeiro Bolaños precisou arrancá-lo a força e puxá-lo pelos cabelos até entregá-lo a um marinheiro que o enfiou no bote. Não havia tempo para dar atenção, tomar precauções, convencer ou esperar para ver como as coisas ficariam. Salvany e Grajales tentavam recuperar os instrumentos de vacinação na escuridão da cabine, até que foram obrigados a sair devido à ameaça do nível de água crescente.
Do lado de fora, o panorama era desalentador. O barco estava desconjuntado, as velas esfarrapadas de seus três mastros batiam contra o mar, os aparelhos rangiam, e o cordame, as enxárcias e as escotas formavam uma massa inextricável. Os dois botes estavam cheios; não cabia mais nada. Mas os quatro garotos estavam lá dentro. Um marinheiro fez sinal para que Salvany saltasse para o bote, mas ele se negou.
— Salte, Grajales! — ordenou.
— Salte você, Salvany. Eu vou ficar.
— Vai ficar? À espera da morte? Não, Grajales, estou ordenando que o doutor salte para o bote imediatamente. Se alguém precisa morrer, serei eu, que já estou meio morto. Vamos, ande!
Salvany praticamente o empurrou. Ainda havia muitos para ser resgatados nos destroços, incluindo o capitão, que observava tudo com a resignação de um marinheiro profissional que aceita o fim. “Qual seria a solução?”, perguntava-se Salvany, “atirar-se ao mar à noite?”. Estavam próximos da costa; ao longe, divisavam-se as luzes do povoado de Barranquilla, mas não era perto o suficiente pra chegar a nado. Alguns começaram a rezar; outros se mantiveram impassíveis, esperando pelo pior.
— Barco a estibordo! — gritou de repente um marinheiro.
Ao se virarem, viram na semiescuridão um barco avançando em sua direção. Aquela aparição mágica era o Nancy, navio de corso sob comando do tenente Vicente Varela que navegava por aquele trecho do rio e testemunhara a desgraça do San Luis. Seus marinheiros consideraram antes a ideia de desencalhar o barco, mas desistiram ao ver os destroços. Então, dedicaram-se a resgatar o restante dos passageiros, o equipamento e grande parte do material médico. Em botes de salvamento, chegaram a uma praia deserta a barlavento de Cartagena, onde os náufragos desembarcaram. Varados na praia enquanto agradeciam a Deus por ninguém ter morrido, viram os homens que os salvaram retornarem ao barco, que se preparava para zarpar de novo.
“Seria aquele acidente o final da expedição sob seu comando?”, perguntou-se Salvany. Ou pior... o fim da vida deles? Tudo levava a crer que sim. Estavam perdidos, longe do roteiro estabelecido por Balmis. O jovem médico se prontificou a socorrer os feridos, que eram muitos.
— O que o doutor tem, Salvany? — perguntou um deles.
— Eu? Nada.
— Tem, sim, olha — disse, apontando para sua testa.
Salvany passou a mão no rosto. Escorria sangue por um olho. Mas não sentia nada; a preocupação de não perder os grânulos vaciníferos dos rapazes e sua insubstituível transmissão, bem como a grande perda de bens materiais, atormentavam-no mais que a dor, a fome e a sede.
Na manhã seguinte, aproximou-se deles um grupo de zambos (mescla de índios e negros) seminus, que olharam para aqueles despojos humanos com compaixão.
— Barco…? — comentaram e fizeram um gesto mostrando que havia afundado.
— Sim, sim, barco quebrado, afundado, fodido. Nós, água... — disse Grajales, fazendo um sinal para mostrar que tinham sede. — Perdemos tudo, tudo.
— Venham até nossa aldeia, que fica atrás da praia — disse o zambo.
Os zambos levaram-nos às choças e lhes deram água fresca, farinha de mandioca e frutas. Salvany estava aliviado pelo fato de a expedição ter sido salva. Agora, precisavam chegar a Cartagena o quanto antes.
— Nós guiaremos — disse um zambo —, mas terão de pagar...
Então, fez um gesto como quem sacode uma bolsa com moedas.
— Não temos nada.
— Sem dinheiro, ficaremos aqui.
Nesse momento, chegaram quatro deles com uma tartaruga enorme sobre os ombros.
Fatiaram-na e puseram-na para ferver em uma caçarola enegrecida e amassada. Comeram ainda muito quente, enquanto negociavam o pagamento.
— Branco diz sempre paga... O zambo acredita, o zambo trabalha, o zambo guia o branco... e então?
Salvany e os enfermeiros olhavam-no com os olhos arregalados e um pedaço de tartaruga na mão. O homem continuou:
— Então o branco nunca paga.
— Diga a ele que sim, que sim — pediu Salvany, nervoso —, pagaremos assim que chegarmos, que estamos a pedido do rei da Espanha, não somos corsários nem foragidos, somos gente de bem.
— Gente de bem? E como você quer que ele acredite? — perguntou Grajales.
Depois de uma negociação que durou algumas horas e deixou Salvany exasperado, os zambos aceitaram como pagamento os objetos resgatados do barco.
Guiados pelos indígenas, atravessaram terras cobertas por manguezais e, então, lamaçais, sofrendo com “os rigores do clima ingrato e o cruel martírio de vários insetos”, como escreveu Salvany.
Em 18 de maio, quatro dias após o naufrágio, chegaram às portas de Cartagena das Índias, a maior cidade do vice-reinado de Nova Granada, onde foram recebidos como um exército derrotado após uma batalha. Salvany achou a cidade magnífica, uma joia rodeada de muralhas que protegiam igrejas e conventos esplendorosos, praças floridas e casas comerciais, desde o impressionante Forte de San Fernando até o Hospital da Obra Pia. Muitos pensaram que havia sido Deus, em sua infinita misericórdia, quem salvara a expedição. Salvany, Grajales e os ajudantes sabiam que estavam vivos porque os nativos os guiaram. Após pagá-los, foram convidados a ir à catedral, onde foi celebrado um solene te-déum, e participaram de festejos e recepções organizados pelo governador e pelo bispo com as personalidades mais influentes da cidade, as quais, reunidas no imponente consulado cartaginês, anunciaram que assumiriam todos os gastos de estadia e manutenção da expedição. “Foi uma acolhida apoteótica, daquelas que teriam agradado a Balmis”, pensou Salvany.
Todos os integrantes da expedição haviam adoecido em decorrência do naufrágio, e a maioria estava se recuperando no hospital. Como sentia saudades de Isabel! Embora, em sua generosidade, tenha pensado que fora melhor ela escapar do naufrágio e de todas as calamidades pelas quais passaram. Ele, alheio aos estragos que a ferida na testa estava causando, dedicou-se à vacinação, começando pelos nativos que o haviam salvado. Contou com o apoio determinado e eficaz do governador, que facilitou seu trabalho, já que o território sob seu comando vivia permanentemente sob ameaça de epidemias. Salvany vacinou com seu grupo mais de duas mil pessoas em Cartagena. Então, instruiu dois religiosos da Ordem dos Irmãos de Belém e enviou um deles acompanhado de quatro garotos ao Panamá e outro a Buenos Aires, este levando a vacina em recipientes de vidro. Também mandou inocular algumas vacas para conservar o pus e fazer com que adquirisse novo vigor. Organizaram uma equipe de saúde e deram instruções simples e fáceis de seguir. As reuniões seriam feitas semanalmente, e os comissários de bairro teriam de apresentar um garoto a cada nove dias a fim de perpetuar o fluido.
As crianças que ele levara de La Guaira estavam demorando para se recompor de diarreias constantes, e como Salvany queria prosseguir e chegar a Santa Fé de Bogotá, pediu dez garotos ao orfanato de cartaginês para transportar a vacina.
Em 24 de julho de 1804, fizeram uma saída pomposa de Cartagena, benzidos pelo bispo e ovacionados pela população. O governador entregou a Salvany os comunicados oportunos, que davam ordem para que as autoridades dos povoados onde transitariam auxiliassem os expedicionários com tudo de que precisassem. Louvou os céus, a atividade incessante e o esmero de Salvany. Então, os expedicionários deram início à subida do rio Magdalena em sampanas, embarcações velozes com teto de taquara, rumo à savana baixa e úmida, a antessala da selva.