Salvany estava física e moralmente exausto. Apesar do sucesso em Cartagena, começava a se dar conta da magnitude da tarefa.
— É muito território para apenas quatro homens — disse a Grajales.
— O que podemos fazer é instruir o maior número possível de pessoas, religiosos, sanitaristas, mulheres, militares... e que cada um vá instruindo outros...
— Mesmo assim… Temo que uns poucos homens com meios escassos não sejamos o suficiente para vacinar um império.
Mompox ofereceu-lhes uma acolhida espetacular. Praticamente todos os habitantes estavam no cais para aclamá-los enquanto os sinos da igreja soavam. Tinham muito vívida na memória a lembrança da última epidemia de varíola, que quebrantara as atividades da cidade, conhecida pela qualidade das joias que os ourives moldavam em ouro e pela excelência dos objetos de barro e dos adornos de louça feitos por ceramistas locais. Para o deleite de crianças e adultos, aquela epidemia não havia afetado a qualidade de seus doces, suas geleias e suas frutas em conserva. Era outra vez uma cidade florescente, com um colégio conceituado onde se podia estudar gramática latina e filosofia.
Descansaram ali por uns dias. Salvany não pôde aproveitar as férias porque foi afligido por uma surdez repentina, o que, somado às enxaquecas causadas pela ferida no olho, deixou-o prostrado.
— Enganei-me ao pensar que minha saúde melhoraria nestas terras.
— O doutor devia estar muito desesperado para acreditar em todas essas patranhas sobre os benefícios do clima... A América é grande, aqui cabem todos os climas.
— No fundo, eu não quis me informar melhor porque isso significaria acabar com a última de minhas esperanças de cura. Às vezes nos deixamos enganar por nossas próprias fantasias. Eu mal sabia o que era calor antes de chegar aqui.
Qualquer coisa que não enfrentar a irreversibilidade de sua doença, a perspectiva da morte. Enquanto a equipe vacinava a cidade inteira, Salvany jazia em um catre no vicariato da Igreja de Santo Domingo, na rua Real del Medio, onde se concentravam belos edifícios de estilo sevilhano. A surdez acrescentava o isolamento à receita de solidão, desespero e impotência. Era uma porta que se fechava...
“Qual de meus sentidos será o próximo?”, perguntava-se Salvany durante angustiantes noites de insônia. “A visão? O tato? Será assim até que eu desapareça do mundo dos vivos?”
Não escutava o voo ameaçador dos mosquitos; só quando os via pousar sobre seu braço ou sua perna é que os esmagava com um tapa.
— Deixai-me viver alguns anos a mais, Senhor, um mês a mais, um dia a mais, e outro, e outro... Deixai-me vivo até acabar essa missão.
Sentia mais do que nunca falta de Isabel, de suas palavras de terna amizade proferidas com doçura, sua presença reconfortante, seus conselhos cheios do senso comum das camponesas galegas. Via-a como um arco-íris dentro do túnel da solidão. “Se eu sobreviver”, pensava, “irei buscá-la”. Era um projeto improvável, mas ajudava-o a seguir em frente. Não escutou as batidas na porta nem os passos do cura e do enfermeiro Bolaños, acompanhados de facultativo local que carregava uma maleta. Salvany se sobressaltou ao vê-los. O médico sorriu para ele e disse algo que não escutou, tirou os instrumentos da maleta e examinou-o. Então, concentrou-se nos ouvidos.
— Infecção auditiva, temos que limpar bem os canais.
Pôs-se a fazê-lo com delicadeza. De repente, começou a sair do ouvido de Salvany um líquido amarelado, o qual o médico limpou com gazes. Saía aos borbotões. Repetiu a operação no outro; parecia irreal que coubesse tanto líquido em ouvidos.
— Trouxemos goiaba em conserva para o doutor.
Foi a primeira coisa que escutou, por cima de um assobio ininterrupto e dos tampões de algodão. Sorriu. A vida seguiria. Lá fora, um zambo cantarolava:
O branco morre rezando
O negro morre chorando
E o índio não morre mais...
Para ganhar tempo e abranger uma porção maior do território, Salvany decidiu dividir sua equipe até Santa Fé. Enviou por terra o ajudante Grajales, um toledano que havia estudado filosofia, medicina prática e cirurgia, considerado pelo resto da equipe “muito humanitário” e um pouco doido, e o praticante Lozano, enquanto ele e o enfermeiro Bolaños prosseguiriam rio acima, parando para vacinar os povoados ribeirinhos. No relatório que redigiu, Salvany escreveu com seu lendário afã pela precisão o impressionante número de vacinados: “Estima-se 24.410, sem ter sido observado nem sequer um leve incidente entre eles”.
À medida que seguiam rio acima, sempre bordeando as margens para evitar as fortes correntes do centro, a selva ficava mais fechada. Vista de longe, era como um mar verde e preto, tedioso e fascinante, mais intimidador que as próprias águas. A copa das árvores era tão alta que se juntava dos dois lados, aprisionando o rio e impedindo que os raios de sol atravessassem a folhagem. Agora Salvany entendia o estupor registrado nos diários de bordo dos antigos viajantes que adentraram as profundezas da selva tropical.
Perto dos lugares onde acampava à noite, viu nenúfares de um metro de diâmetro, escaravelhos tão compridos quanto a agulha que utilizava para vacinar e castanheiras altas como os campanários de catedrais. Viu enredadeiras que mais pareciam serpentes e serpentes que adotavam a forma de enredadeiras. Dedicou-se a contar o número de espécies distintas morando em uma única árvore caída e parou, cansado, ao chegar a quarenta.
— Não existe um buraquinho sequer, por menor que seja, onde não habite alguma forma de vida — observou, antes de se perguntar: — Quantos seres invisíveis não devo esmagar a cada passo que dou na selva?
Durante aquela viagem, viu nuvens de mariposas multicoloridas que pousavam sobre a areia de uma praia e revoadas de papagaios que davam voltas sobre aquele imenso aglomerados de árvores e mato. De vez em quando, mestiços e remadores que viviam de contrabando acenavam da margem. O que era indescritível era o calor do meio-dia, quando precisavam parar e já não eram protegidos pela brisa produzida pelo avanço da sampana. Calor, umidade e mosquitos transformavam aquele éden em uma emboscada infernal. E, então, havia a água onipresente; os aguaceiros não davam trégua. Alternavam-se com furacões que sacudiam a folhagem das árvores com violência descomunal, quebrando galhos e arremessando-os pelos ares como projéteis. Nada permanecia seco. Nem sequer estendendo a roupa perto do fogo durante a noite eles conseguiam secá-las.
— Seria bom consertarmos a sampana — sugeriu o marinheiro.
— Melhor não pararmos até chegarmos a um povoado maior... — disse Bolaños.
— Não quero naufragar outra vez — replicou Salvany. — É melhor pararmos, se você julgar conveniente.
— Se parar de chover, melhor seguirmos até Nares. Nos povoados dessa região não encontraremos bons materiais para os reparos.
Chegaram a Nares ao entardecer. Qual não foi sua surpresa quando, ao desembarcar das sampanas, descobrir que eram esperados por seis homens e duas crianças? Um deles chamou-o pelo nome.
— Doutor Salvany?
— Sim, sou eu.
— Estamos há dois dias esperando vosmecê... Viemos de Medellín.
— Deram sorte, pois quase não chegamos... a que se deve sua presença?
— Fomos enviados pelo doutor Gómez, também de Medellín, para... é que... para vosmecê nos comunicar...
O homem entregou um papel a Salvany. Era um bilhete do doutor Gómez pedindo fluido vacinífero.
— Há muita varíola por lá, senhor...
— Bolaños, nossa fama nos precede — disse Salvany, com clara satisfação, ao ajudante. — Vamos preparar-lhes um frasco com soro.
Feitos os reparos na sampana, prosseguiram viagem, mas Salvany estava a cada dia mais fraco. Na cidade de Honda, onde vacinaram duas mil pessoas, perdeu quase totalmente a visão do olho esquerdo, o que machucara durante o naufrágio. Em seu diário, escreveu: “Só pude verificar as duas primeiras vacinações, pois fiquei totalmente cego devido ao excesso de calor e da luminosidade necessária para esse processo”.
Forçado a parar mais uma vez, Salvany voltou a temer o pior. A febre, somada ao calor e à umidade, lhe provocou surtos de asmas, e ele tinha a impressão de viver em uma sauna asfixiante. Escreveu para o vice-rei Antonio Amar y Borbón mencionando o agravamento de seus males. Teve de recomeçar a carta diversas vezes, pois as gotas de suor borravam a tinta. O papel amolecia e se desfazia. Um assovio acompanhava sua respiração enquanto escrevia, como se quisesse eximir-se de culpas: “As doenças e os acidentes não têm piedade de mim”. Em Santa Fé de Bogotá, o vice-rei ficou alarmado. Temeroso de que a vacina não chegasse à capital, enviou um médico com o material necessário para atender Salvany, acompanhado de várias crianças que transportariam o fluido, caso o médico falecesse.
Salvany não morreu naquele dia, mas perdeu para sempre a visão do olho esquerdo. Despediram-se do rio e empreenderam a subida pelo pé dos Andes. Como foi bom deixar aquele calor maléfico, paralisante e opressor. Os mosquitos pararam de atacar, e Salvany pôde respirar outra vez um ar fresco, que ele tinha a sensação de ingerir. Mas logo o ar se tornou frio e, mais acima, rarefeito. O cansaço passou a dominar, como antes havia sido o calor. A extenuação retardava a caminhada. Os guias nativos ensinaram-nos a combater o mal da altura à base de marmelada e chocolate.
Em 18 de dezembro de 1804, pouco antes de entrar em Santa Fé de Bogotá, reencontraram Grajales e Lozano, que chegaram na véspera. Ver Salvany encheu-os de emoção, não apenas porque temiam por sua saúde, mas também pelo apreço sincero — e pela admiração — que tinham por ele. Nunca agira nem respondera mal a seus subordinados, como costumava fazer Balmis. Salvany crescia com as adversidades; quanto mais doente ficava, mais força e domínio de temperamento demonstrava.
Foram recebidos com entusiasmo pela população. Nas igrejas, os cônegos exaltaram o sacrifício dos expedicionários e recomendaram o uso da vacina. O vice-rei ofereceu uma sala no Hospital San Juan de Dios, mas Salvany recusou.
— Excelência, temo que não seja bom que o povo relacione a vacina com a morte e a doença.
A primeira coisa que fez, para servir de exemplo às pessoas, foi vacinar o vice-rei e toda a sua família. E não parou ao criar uma equipe de vacinação. Sua ambição foi adiante: constituiu uma equipe de saúde, cujo fim era cuidar da saúde pública em geral, porque, além da varíola, existiam ali outras doenças mortíferas, como a febre amarela. Quando deixaram Santa Fé de Bogotá em 8 de março de 1805, quase oito meses após terem partido de Cartagena, a Junta Municipal de Salubridade e Higiene calculou que havia sido atingida a espantosa cifra de 53.327 vacinações.