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Conforme foi se apagando o vulcão de ira que sentia por Balmis, Isabel Zendal se imaginou retornando ao mundo que deixara para trás. Então, lembrou-se do mal-estar de mãe solteira, dos preconceitos que Benito sofria por ser filho natural e da vida escura e precária no orfanato de La Coruña. Não queria voltar para lá, embora Jerónimo Hijosa fosse ficar agradecido caso isso acontecesse — disso ela não tinha dúvida. Por outro lado, permanecer em Cuba à espera de um barco para retornar à Espanha significaria ficar à mercê de Dom Santiago.

Havia uma terceira razão para seguir viagem. Compromissos eram compromissos, e Balmis cumprira sua parte: ele a havia transformado em “dona Isabel”. O que pensaria disso Ignacia ou Jacobo, que sempre lhe ensinaram o valor da palavra dada? Ou Salvany? Ouvira notícias de sua viagem atribulada, do naufrágio e de sua chegada a Santa Fé de Bogotá. Mas eram informações oficiais, não havia nada de pessoal nelas, exceto a menção das muitas penúrias de que padeceram. Não havia baixas, e era isso que importava. Sim, o que diria Salvany, se ela rompesse o compromisso assumido com a expedição? Agir contra Balmis era agir contra Salvany, contra sua mãe, morta pela varíola, contra dona María Josefa Hijosa, contra todas as vítimas desse mal que haviam marcado sua própria vida. Também era ir contra aqueles dois madrilenos, doze corunhenses e cinco compostelanos infernais aos quais dedicara tanto tempo e energia. Seu compromisso estava onde estava seu coração, e seu coração estava com eles e com a expedição.

Balmis deu um grande suspiro quando a viu, cercada por crianças, na embarcação que os levava até onde a embarcação María Pita estava ancorada. “Graças a Deus, não caiu nos braços do magnata Santiago”, pensou. Mal haviam se cumprimentado, e Isabel voltou a tomar conta de seu espaço. Acabara-se a boa vida. Como despedida, o marquês de Someruelos a convidara na véspera para jantar com a esposa e as amigas que haviam transformado sua maneira de vestir. Já não usava preto em nenhuma situação; a Galícia estava muito longe. Foi um jantar à luz de velas no esplêndido jardim, servido por criados de libré. O fato de ter rechaçado o grande poderoso de Havana a tornara interessante — e até misteriosa — para alguns; outros pensaram que era simplesmente uma galega pouco esclarecida, que não sabia aproveitar as oportunidades. De qualquer maneira, era uma mulher difícil de classificar. Como era possível que ninguém adivinhasse o que acontecia nos meandros de seu coração?

Quando, no convés, Isabel viu chegar a nova trupe, aquelas três garotas escravas e o tamborzinho, ficou devastada. As três garotas eram levadas pela mão e choravam porque não queriam deixar a família.

— Vocês voltarão logo, nesse mesmo barco... — disse para consolá-las.

Era uma mentira piedosa, porque aquelas crianças eram mercadoria, e ela sabia que Balmis precisaria recuperar o dinheiro e vendê-las a quem fizesse a melhor oferta.

Assim que zarparam, Balmis vacinou duas das garotas. Ficaram aterrorizadas ao receber a injeção. Por mais que lhes explicassem, as pobrezinhas pensavam que aquilo era magia negra. Isabel as consolou e protegeu, acomodando-as em sua cabine, e não desgrudou delas durante toda a travessia para protegê-las dos olhares lascivos dos marinheiros. O barco navegava com um vento fraco de popa, o que aumentava a sensação de calor. O ar sufocante e o balanço da embarcação minaram o moral de todos.

Alguns garotos, cansados e entediados, engalfinharam-se com o tamborzinho, mulato comprido como uma taquara que andava dançando, como se seguisse o ritmo de tambores.

— Você não é negro, é branco como nós, olha só, logo você vai ver.

Em vários, empurram-no até o porão e o esconderam perto da latrina. Ao menos uma vez na vida, nem Cándido de la Caridad nem Benito faziam parte da turba. A iniciativa partiu de um garoto chamado Gonzalo, que até então não se fizera conhecer por mau comportamento.

— Agora o chefe sou eu — disse, imitando Cándido e se aproximando do garoto com um pedaço de estopa na mão. — Vou tirar sua cor.

Esfregou a estopa na cara do tamborzinho enquanto os outros garotos o seguravam e um cobria sua boca. Incentivado pelo grupo, Gonzalo perdeu o controle e esfregou tanto e com tanta força que fez sangrar o rosto do cubano.

— Se você sair daqui ou pedir socorro, vou esfregar o resto de seu corpo — ameaçou Gonzalo.

O pobre tamborzinho ficou um dia inteiro na parte mais suja e fedorenta do porão.

Isabel passara a manhã toda procurando por ele.

— Vocês viram o tamborzinho? Ele não caiu no mar, né? Benito, você não viu?

Perguntou diversas vezes, mas Benito não sabia de nada. Cándido respondeu encolhendo os ombros. Exasperada, falou com Pedro del Barco, que deu ordens para que toda a tripulação procurasse o cubano. Os marinheiros reviraram o barco, até encontrarem o esconderijo do menino, que, assustado, não queria sair dali. Isabel ficou tão furiosa que sentiu vontade de trancar todos naquela masmorra.

Mais uma vez, o capitão deu um castigo exemplar. Mandou açoitar Gonzalo na frente de todos e atou os demais ao mastro, um por vez, deixando-os várias horas sob o calor escaldante. Cándido e Benito tampouco se livraram. Não acreditaram neles quando disseram que não sabiam de nada. Até então, haviam participado, e inclusive liderado, todas as badernas, de forma que era pouco crível que não tivessem participado dessa, ainda que de maneira indireta, encobrindo os culpados. Cándido protestou quando recebeu o castigo de limpar os beques.

— Não fui eu, eu não fiz nada! — dizia, chorando.

Quando chegou a vez de Benito, o capitão fez um sinal para Isabel, perguntando se deveria castigá-lo ou não. Ela olhou para o filho, que tremia, embora estivesse convencido de que a mãe o livraria, como tantas vezes antes. Ela sentiu a tentação de salvá-lo do castigo, mas que exemplo seria aquele? Tampouco acreditava que fosse totalmente inocente. De modo que fez das tripas coração e assentiu com a cabeça.

— Mãe! Nããããão...!

Ela tapou os ouvidos para não escutar os gritos.