Isabel fechou-se em sua cabine, cansada e decepcionada. Sentia-se farta da crueldade daqueles garotos, cujo comportamento, cada vez mais fora de controle, refletia no de seu próprio filho — ao menos era isso que ela pensava; farta de exigências, palavrões, falta de respeito, de não poder compensar as carências deles. Farta de não ter contato com outras mulheres, do arrogante e ambicioso Balmis. Estava enfastiada do calor e de não vislumbrar seu futuro com clareza.
A navegação até Veracruz foi lenta e pesada. O porto, principal via de saída da prata e das riquezas da Nova Espanha, era a parte mais perigosa do percurso das Índias, um autêntico bastião natural responsável por quinze por cento de todos os naufrágios do planeta entre os séculos XVII e XVIII. Aproximar-se dele se tornava uma operação ainda mais delicada devido ao vento norte constante que empurrava o barco em direção à costa e aos arrecifes e obrigava a tripulação a tomar precauções extremas para não encalhar. Quando surgiu no horizonte o baluarte de San Juan de Ulúa, anúncio do porto e da cidade amuralhada, o capitão deu ordens para que barlaventassem em zigue-zague a fim de manter uma distância prudente entre os dois estreitos canais.
Quando, em 28 de julho de 1804, ancoraram em frente ao portão da aduana, estavam todos doentes. Balmis havia perdido peso e parecia outra pessoa. Tinha as bochechas afundadas, o cabelo mais branco, suava frio e caminhava um pouco encurvado devido à dor de barriga constante. Aparentava ter passado anos sem dormir. Estava convencido de ter contraído febre amarela, a qual suspeitava ser transmitida por picadas de um mosquito determinado. Não havia cura conhecida, então tomava as mesmas medidas que tomaria em caso de disenteria: basicamente, hidratar-se. Isabel e as crianças também haviam sido acometidas por moléstias intestinais, de modo que não aproveitaram a chegada. O único a fazê-lo foi o cubano, que via aproximar-se o fim de seu calvário. Para todos, o importante era que a navegação se encerraria. Chegaram ao destino sem maiores percalços e sem uma vítima sequer, à exceção de Juan Eugenio. E o garoto madrileno Andrés, embora ele não tenha chegado a participar da viagem marítima. Isso em si já era um feito prodigioso, considerando as cifras projetadas pela Casa de Contratação de Sevilha, segundo as quais um décimo dos participantes de viagens à América morriam em decorrência de doenças e acidentes.
— Vejam! — disse Balmis, com os olhos iluminados e a voz trêmula. Apontava para o cais do porto, com o intenso movimento costumeiro, o edifício da aduana e, atrás, a torre do convento de São Francisco.
— São as tropas enviadas pelo vice-rei! Até as companhias milicianas estão em formação para nos receber! Olhem esses fogos! Escutam as balas de canhão do baluarte de Santiago? E os sinos?
Isabel olhava para ele, confusa. As crianças não entendiam. Não se via nada na costa além da movimentação cotidiana: carretas transportando mercadorias, bondes puxados por mulinhas, carroças que serviam para recolher o lixo rodeadas por “nopos”, aves pretas que comiam os restos que caíam e estavam por todas as partes. E, assim como em Porto Rico, não havia ninguém para recebê-los. Ninguém para reconhecer o esforço titânico que estavam fazendo, muito menos para agradecer-lhes. Os heróis da expedição da vacina estavam sós, sob o comando de um diretor cujo juízo havia sido distorcido pela febre e que precisou ser tranquilizado como se fosse um dos garotos.
Diante das circunstâncias, Isabel pediu ajuda.
— Por que não avisamos o intendente? — perguntou a Antonio Gutiérrez Robredo, ajudante de Balmis.
Fizeram o trajeto até o cais em um dos botes da embarcação María Pita. Viram-se na cidade mais barulhenta e caótica que já haviam pisado, uma babel cosmopolita e mísera, mescla insólita de servidores reais, oficiais de tropa e marinheiros, bêbados, mendigos e prostitutas. Vendedores de frutas e de peixes, empanadas, água e trompadas — doces típicos de gergelim — percorriam as ruas em que se escutavam português, italiano ou flamenco, porque os donos das peixarias eram mulatos, morenos, chineses, portugueses de Angola, negros andaluzes, índios filipinos, genoveses e judeus africanizados. Veracruz era uma cidade pequena demais para a importância de seu porto; tinha uns poucos edifícios trabalhados com corais e madrepérolas dos arrecifes, residências de dois andares com pátio central e muitas casas de madeira oriunda dos naufrágios.
No casario da Intendência, uma das poucas construções imponentes, foram recebidos pelo intendente, autoridade máxima na região, um homem afável que lhes entregou uma carta do vice-rei dando-lhes as boas-vindas à Nova Espanha. Não se desculpou pela ausência de recepção oficial, pois simplesmente não havia recebido essas instruções. Junto com a carta, entregou-lhes um exemplar de La Gaceta de México.
— Leiam isso... Quem enviou foi o vice-rei.
O exemplar dedicava-se exclusivamente a descrever os esforços do vice-rei em sua “titânica” luta para disseminar a vacina na Nova Espanha. Aquilo explicava tudo. Mais uma vez, um servidor real de alto escalão, no caso o vice-rei, havia se adiantado à expedição. A história se repetia. Na verdade, como averiguariam depois, a circular de setembro de 1803, que avisava a todos os vice-reis, os governadores e os capitães-gerais da pronta partida da expedição, havia revelado a eles a existência da vacina, e isso os impulsionara a buscá-la a qualquer custo antes da chegada dos expedicionários e reivindicassem para si o feito.
Robredo explicou ao intendente que se encontravam em uma situação crítica devido à doença do diretor da expedição e porque as vesículas das escravas que os acompanhavam desde Havana estavam no ápice. Precisavam inocular outras pessoas para que a cadeia não fosse interrompida.
— Há um perigo iminente de perdermos o tesouro que custou tantas adversidades.
— Vivemos uma grande epidemia poucos anos atrás, e a maior parte da população, a que sobreviveu, está imunizada — respondeu-lhe o intendente. — Além disso, agora até mesmo os barbeiros administram a vacina, por isso é mais difícil encontrar candidatos.
Quando voltaram ao barco acompanhados pelo intendente e por dois secretários que subiram a bordo para cumprimentar Balmis, este já havia se recuperado da confusão mental, mas continuava abatido pela grande decepção da chegada e da notícia de que a vacina, mais uma vez, o havia precedido.
— Sei perfeitamente que o importante não é ser o primeiro a introduzir a vacina, que o mais urgente é possibilitar seu acesso a todos, ricos e pobres, indígenas e espanhóis.
Estavam tão doentes que precisaram esperar alguns dias antes de abandonar o barco, embora tivessem desejos ardentes de descer em terra. Enquanto o capitão e a tripulação preparavam a embarcação para o regresso, Balmis nomeou seu sobrinho, o enfermeiro Francisco Pastor, responsável por uma ramificação da expedição que deveria se dirigir até a Guatemala para, de lá, difundir a vacinação a partir da Ciudad Real de Chiapas até os confins da América Central.
— Será melhor nos dividirmos... Em Oaxaca e Chiapas, os senhores serão mais bem recebidos que aqui, tenho certeza. O tamborzinho seguirá com vocês; já podem vaciná-lo. Depois, precisarão conseguir mais garotos. Voltaremos a nos ver na Cidade do México daqui a dois meses.
O cubano estava feliz por acompanhar Pastor. Aceitaria o que fosse para ficar longe do grupo de garotos espanhóis.
Chegou o momento da despedida. As crianças saíram do barco tão fracas que mal cumprimentaram os marinheiros. Isabel obrigou cada um dos meninos a abraçar ou apertar a mão do tamborzinho, mas Gonzalo, seu pequeno torturador, recusou-se a fazê-lo. O capitão interveio outra vez e ameaçou açoitá-lo em público novamente caso não se despedisse do cubano.
— Além disso, quero ouvir seu pedido desculpas em alto e bom som! — acrescentou.
O garoto não teve opção senão fazê-lo.
— Des... culpas — disse, a contragosto.
Pedro del Barco se virou e exigiu a presença de Cándido. Quando Gonzalo teve certeza de que não o escutavam, acrescentou em voz baixa, enquanto abraçava o tamborzinho sem vontade:
Ao escutar seu nome, Cándido escapuliu assustado, pois temia uma represália de última hora por alguma travessura que não se lembrava de ter cometido. Um marinheiro acabou perseguindo-o pelo barco e, por fim, levou-o nos braços até o capitão.
— Eu não fiz nada — repetia o garoto.
Era verdade. Dessa vez tampouco havia feito nada.
— Só quero lhe dar um abraço — disse o capitão, apertando-o contra o peito. — Meus marinheiros e eu sentiremos saudades de você.
Depois, dirigindo-se aos demais, acrescentou:
— E de todos vocês.
Então, os demais viram que Cándido estava chorando em público pela primeira vez devido à surpresa, ao desconserto e ao esgotamento.
Francisco Pastor, o cubano e dois enfermeiros deixaram a cidade em seguida, e Balmis, Isabel e os garotos foram conduzidos ao local de hospedagem, um convento onde lhes serviram mais comida do que conseguiam engolir, o que era costume mexicano: cinco pratos compostos de peixes, aves e um guisado de carne com cebola, alho e batata, além de chocolate e biscoito. Alguns garotos pareceram voltar à vida com aquela dieta, enquanto outros pioraram.
Nos dias que se seguiram, Balmis e seus ajudantes não conseguiram vacinar ninguém em Veracruz. Ninguém se apresentou, porque nem o intendente nem as autoridades eclesiásticas haviam informado a população. Era pura negligência, e Balmis ficou fora do sério porque os grânulos vacinais no braço das garotas estavam prestes a passar do ponto. Cansado, embora muito fraco, entrou no gabinete do intendente sem ser anunciado. Quando estava de frente para ele, falou sem rodeios:
— O rei, o senhor Carlos IV, não deixará de castigar sua falta de colaboração — disse. — Você está incorrendo em grave irresponsabilidade.
Seguiu enumerando todas as represálias possíveis, e o homem, que fugia do confronto e era sibilino, acovardou-se:
— Só o que posso fazer é trazer para vocês uma dezena de recrutas do regimento do quartel — propôs.
Balmis suspeitava que tinha à frente um oficial mais disposto a receber honras que a lutar contra a varíola, mas concordou porque não dispunha de alternativa. Algumas horas mais tarde, antes que pudessem descansar, já estavam abrindo cortes nas pústulas das garotas para extrair o pus e vacinar os soldados em seus próprios quartos, no convento.
Isabel, preocupada com a má saúde dos garotos e temerosa de que tivessem sido contaminados pela febre amarela (como aparentemente acontecera com Balmis), propôs que saíssem dali o quanto antes e abandonassem aquele clima asfixiante.
— Não temos mais nada para fazer aqui — disse Balmis, convencido da inutilidade de permanecer em um lugar onde não haviam sido bem recebidos. — Subiremos até Jalapa e, quando estivermos recuperados, seguiremos até o México. De lá, com a colaboração do vice-rei, espero, estabeleceremos algumas rotas para difundir a vacina por toda a Nova Espanha.
No dia seguinte, uma caravana de carroças puxadas a cavalo postas à disposição de Balmis pelo intendente conduziu a maltratada expedição até o clima mais benéfico e seco do pé da cordilheira. Balmis levava consigo três dos recrutas que vacinara, e a última coisa que fez em Veracruz foi negociar o preço das três escravas cubanas com o intendente. Isabel se despediu delas com o coração apertado. Eram tão frágeis e vulneráveis...
— Vai saber onde vão parar... — comentou.
— O intendente me prometeu que as colocará como criadas em boas casas — disse Balmis.
— Temo que acabem trabalhando como prostitutas em algum boteco do porto.
— Essas garotas foram batizadas, não lhes é permitido exercer a prostituição.
Isabel deu de ombros. A ingenuidade de Balmis a exasperava. Dividida entre o impulso de não as abandonar e a obrigação de prosseguir com a expedição, disse:
— Ninguém as protegerá, e o doutor... o doutor não está nem aí! Quanto ganhou com essa venda?
Mais uma vez, Balmis sentia o dedo acusador de Isabel encravar-se como um punhal em seu coração. Lembrou-se da última discussão, acerca da morte do garoto porto-riquenho, e resolveu ser cauteloso.
— O intendente se recusou a me pagar o que custaram. Perdi dinheiro na transação, mas conseguimos preservar o vírus.
— Felicito o doutor, cumpriu com o objetivo primordial da expedição.
Isabel olhou pela janela. Deteve-se na embarcação María Pita, ancorada ao lado de muitas outras.
— Cumpri? Não! Cumprimos. Nós, a expedição; inclusive a senhora, Isabel.
— Eu me sinto culpada por essas garotas. Culpada por algo que eu jamais teria feito, que é embarcá-las no navio.
— Não vi outra opção. Fazemos o que podemos, que nem sempre é o que queremos.
— Fico revoltada por utilizarem escravas na grande missão patrocinada pelo rei da Espanha e pelo fato de o doutor abandoná-las no primeiro porto.
— Não foram abandonadas, estão a cargo da autoridade competente. Garanto que serão bem tratadas.
— Autoridade competente! Não foi o que o doutor disse ontem...
— O fato de não terem nos recebido como deviam não significa que não...
Isabel o interrompeu.
— Sempre escutei o doutor dizer que essa expedição despertará inveja nas demais nações do mundo... Por enquanto, para mim, desperta vergonha.
— Você está sendo injusta, Isabel. A senhora teria me entregue seu filho Benito se fosse mãe de uma família normal? É claro que não. Fomos avançando com o que podíamos, com órfãos, garotos abandonados e escravas... Devemos ser condenados por isso, mesmo se conseguirmos acabar com uma praga terrível?
— Se os abandonarmos, não teremos o perdão de Deus.
Outra vez ela falava em abandono. “Depois de ter trabalhado em um orfanato cheio de garotos desamparados, como poderia esquecer aquela palavra?”, pensou Balmis. Quis responder que as pirâmides do Egito foram construídas por operários cativos, que as grandes obras da humanidade haviam exigido o sacrifício de muitos párias, escravos e prisioneiros, que não se devia buscar justiça neste mundo, mas no outro, que eles seriam julgados pelo resultado da expedição, não pelo que ele considerava um detalhe, como aquelas garotas cubanas. Mas ela parecia tão obcecada, tão cheia de fúria contida, que ele preferiu se calar. Não queria provocar a erupção do vulcão que se escondia por trás de uma personalidade aparentemente mansa.