O caminho pavimentado que percorreram em sete carruagens se chamava Calçada dos Mistérios, pois era ladeado por monumentos onde os peregrinos que iam até o santuário podiam rezar. Ao entrar na cidade, Balmis sentiu seus batimentos cardíacos se acelerarem. Foi tomado pelas recordações dos anos vividos ali, durante os quais tanto aprendera, tanto se divertira, tanto amara. Isabel ficou impressionada com a miséria e a imensidão dos arredores, uma infinidade de choças de adobe e palha entre ruelas embarradas e montanhas de lixo e esterco. O fedor era insuportável. Balmis explicou que era devido aos matadouros e também aos cemitérios: a camada de terra era pouco profunda e ficava encharcada porque os terrenos eram pantanosos, de modo que não havia como enterrar devidamente os mortos. Certos mendigos (na maioria indígenas) pareciam cadáveres vivos — estavam cobertos de farrapos ou nus, tinham o rosto sujo e o corpo pintado. Estavam bêbados de pulque, bebida produzida a partir da fermentação de hidromel feito de um tipo de agave conhecido como maguey pulquero, que causava estragos na população. Muitos dormiam ao relento, nas escadarias das igrejas; outros caíam de bruços nos charcos e se afogavam. Em alguns círculos da Administração, dizia-se que aquela era a pobreza mais abjeta de todo o Império Espanhol.
Era também a riqueza mais deslumbrante. Ao chegar ao centro, viram-se em um mundo distinto, aquele que Humboldt batizara de Cidade dos Palácios, com ruas retas e amplas, avenidas largas que abrigavam um público radiante e edifícios suntuosos, muitos deles construídos sobre os alicerces de antigos palácios astecas. Não se comparava com nenhuma das cidades que haviam visitado, nem La Coruña nem Havana. Balmis estava inquieto porque não via sinais de boas-vindas. À época, a cidade abrigava cerca de cento e treze mil habitantes. Não fora possível reunir um pequeno grupo, organizar um jantar de agradecimento para impor sua presença diante da plebe? “Talvez fosse ocorrer na praça do Zócalo, o coração da cidade, onde estava situado o palácio do vice-rei”, pensou o médico, otimista, enquanto mostrava a Isabel e aos ajudantes a universidade, a escola de minas e a de cirurgia, onde havia lecionado. Falou-lhes sobre o Hospital do Amor de Dios, onde trabalhara (na Cidade do México, havia uma dúzia de hospitais e dois sanatórios) e do esplêndido jardim botânico, que se encontrava no recinto do palácio vice-real.
Quando chegaram à enorme praça do Zócalo, parecia que as carruagens iam se desconjuntar devido ao pavimento, tão rudimentar e acidentado. No meio, a estátua equestre em bronze do rei Carlos IV, que o vice-rei acabara de inaugurar. Balmis se sentiu reconfortado; era como ter por perto o próprio mentor da expedição. Mas o resto do panorama era desalentador. Restavam apenas alguns vendedores de comida em barraquinhas. Àquela hora tardia, a silhueta da catedral se recortava contra o céu alaranjado.
O palácio vice-real se encontrava na mesma praça, de frente para o mercado de Parián. Nenhuma delegação esperava por eles — nem magistrados nem funcionários da Administração Municipal. Os guardas que estavam nas grades da entrada pareceram surpresos com a visita. Ninguém os havia avisado.
— Enviei hoje de manhã um mensageiro de Guadalupe para o vice-rei — disse Balmis.
O guarda pediu que esperassem e entrou no palácio. As quarenta pessoas que chegaram nas carroças, entre as quais Balmis, seus ajudantes, os garotos impecavelmente uniformizados e os soldados vacinados, estavam de pé, olhando com incredulidade aquele edifício suntuoso onde se decidiria seu destino.
O guarda saiu acompanhado de um secretário, que transmitiu a Balmis as desculpas do vice-rei.
— Sua Excelência não recebeu nenhuma mensagem anunciando a chegada...
— E a carta que mandei de Havana? E a mensagem de Veracruz? E a Cédula Real de 1803?
Balmis apertava os punhos. Isabel temia que acabasse estourando, mas o médico se conteve.
— Não sei dizer, senhor. O que sua Excelência me indicou a fazer é acompanhar os senhores até um local de hospedagem. É provisório, porque sua chegada não era esperada tão cedo. Os senhores alteraram o itinerário, não é? O vice-rei achou que ficariam alguns dias em Puebla...
Era uma maneira diplomática de pôr a culpa por aquele desencontro no próprio Balmis.
— Viemos diretamente para cá, mas repito que mandei diversos avisos a sua Excelência. É urgente para mim falar pessoalmente com ele. Nós nos conhecemos, fomos companheiros de regimento em Algeciras...
— A essa hora, temo que não vá ser possível.
— Rogo ao senhor que, por favor, faça com que me receba. Essa expedição é uma vontade do rei da Espanha.
O secretário voltou a entrar no palácio. A noite caiu sobre a praça, os garotos corriam uns atrás dos outros e se queixavam de fome e sede, mas o homem não voltava. Vários mendigos e comerciantes se aproximaram e circundaram a comitiva, atraídos por tão inusitado grupo. Balmis esperava sentado em uma carruagem, olhando para o chão. Que império era aquele onde se ignoravam as ordens da autoridade máxima? Isabel se compadecia dele: havia dito tantas vezes que no México seriam brindados com uma acolhida espetacular e que era amigo do vice-rei, havia falado tanto da Nova Espanha, como se fosse uma espécie de terra prometida, que aquela espera se tornava patética. O uniforme dos garotos já estava sujo de poeira e barro. O homem que via ali sentado, aquele sonhador doente, avelhentado e decepcionado, não merecia esse tratamento, por mais orgulhoso ou vaidoso que fosse. Nenhum deles merecia.
O secretário levou mais de uma hora para sair do palácio com a notícia de que o vice-rei não receberia Balmis. O médico apertou os punhos e clamou aos céus, mas não havia muito o que fazer para atenuar sua raiva.
Mais surpresas os esperavam. Escoltada pela guarda do vice-rei e guiada pelo secretário, a comitiva foi à hospedagem. Logo deixaram o México dos palácios e suas avenidas iluminadas para adentrar mais uma vez na periferia. As pessoas saíam de casa ao escutar os ruídos da comitiva, achando que se tratava de uma ronda militar. Eram dez da noite quando chegaram ao local que lhes haviam designado, ao lado de um açude cheio de imundícies, vestígio da antiga cidade lacustre. O ar fedia, pois estavam no bairro dos curtidores de peles.
— Como organizarei as vacinações daqui? — perguntou ao secretário. — Precisamos ficar alojados em um lugar central.
Assim que entrou, sentiu na pele o desprezo que o vice-rei tinha por eles. Era uma casa com paredes rachadas, quase sem móveis, em reforma e cheia de pó. Escutavam-se os gritos dos bêbados de uma pulquería vizinha. Não havia camas, mas esteiras no chão.
— É um alojamento inapropriado para um emissário do rei da Espanha — balbuciou ao secretário, porque quase não lhe saíam as palavras, estava mal. — Preciso de uma residência oficial.
— Ofereço-lhes minhas desculpas, mas, como disse aos senhores, não sabíamos... A residência oficial também está em obras — acrescentou. — Está totalmente desmobiliada.
— Bem, levaremos lâmpadas e móveis para torná-la habitável! — disparou o médico, exasperado. — Não podemos permanecer aqui, diante dessa mistura de embriaguez e alvoroço — disse, apontando para o bar ao lado.
— Amanhã conseguiremos uma casa mais central para vocês.
Balmis tremia de raiva e impotência. Estava envergonhado diante da sua equipe, pois havia estimulado suas ilusões e os decepcionara. Mais uma vez, pecou pela ingenuidade. Isabel, esgotada, recolhia os uniformes dos garotos para guardá-los.
— Tendo em vista como o vice-rei nos recebeu, o que me preocupa é como irá cuidar das crianças — disse Isabel.
— Farei com que cumpra as diretrizes do rei.
— Fará o que tiver vontade.
Isabel se deitou junto com seu filho e os mais novos. Balmis ficou olhando como os demais se organizavam nas esteiras enfileiradas para dormir e como alguns continuavam com suas brincadeiras, alheios ao drama dos mais velhos. Cándido e Benito gostaram da casa, pois não tinha móveis e eles podiam jogar objetos de um lado para o outro. Balmis olhava para eles como se os visse pela primeira vez. Até então, só havia reparado no problema logístico que implicavam, porque precisava arrastá-los consigo depois de vacinados. Agora, via-os como o que eram, seres cheios de vida que demonstraram vigor e resistência admiráveis. Diante das piores circunstâncias, não cansavam de brincar nem de rir. Então, percebeu que sentiria saudades deles e que precisaria defendê-los do descaso do vice-rei. Pensou em seu filho e sentiu uma pontada de remorso, porque pela primeira vez se deu conta de que realmente não o acompanhou em um período valioso: a infância.
Balmis estava tão desanimado e se sentia tão mal fisicamente que não conseguia pegar no sono. Condenou-se por cogitar a ideia pueril de que seu nome estaria na boca de todos ou que suas antigas amizades estariam esperando por ele. Levantou-se e entrou no quarto dos garotos, iluminado por um lampião a óleo. Dormiam placidamente. Isabel estava entre os dois pequenos; seu cabelo solto sobre a esteira, sua pele branca quase transparente. O médico permaneceu um longo tempo observando-a. Pensou em si mesmo, em como sua vida havia passado rápido, nos anos que voaram desde os tempos da begônia e do agave. Sentiu-se velho e exaurido. Pela primeira vez, pensou no depois, se é que terminaria a expedição sem interrompê-la por falta de apoio oficial. Na melhor das hipóteses, terminaria seus dias como herói, realizando assim seu sonho de infância, mas de qualquer maneira seria um herói solitário, sem ninguém com quem compartilhar a glória. Então, foi tomado pela imagem de Isabel nos braços de Salvany e sentiu uma pontada de ciúmes. Ela era das poucas pessoas no mundo por quem ele sentia admiração; tinha por ela um profundo afeto que nascera do trato contínuo durante aqueles meses. “O que teria sido da expedição sem ela?”, perguntava-se. O que seria dele sem ela? Sua presença lhe incutia segurança, um bem-estar difícil de explicar. Tê-la por perto lhe dava a impressão de que tudo estava sob controle. Era uma sensação viciante. Balmis, que havia dedicado toda sua força, seu tempo e seu talento ao trabalho, naquela noite pensou que talvez tivesse se esquecido de si mesmo, que seu trabalho o deixara sem vida própria, que seu destino de homem da ciência era, no fim das contas, a solidão. Mas agora via que a solidão podia se tornar um fardo pesado demais e que, nos últimos tempos, estava redirecionando a Isabel o interesse que era capaz de sentir pela humanidade inteira.
Vestiu-se, saiu da casa e pediu ao cocheiro que estava à disposição que o levasse até um endereço na parte nobre da cidade. Era uma noite escura, com cheiro de lama e fumaça de fogueiras ao redor das quais indígenas se aqueciam acocorados. Chegou a um edifício próximo ao Coliseu. Subiu dois andares ofegando e bateu na porta. Uma criada índia abriu.
— Senhora Bárbara Ordóñez?
— Não, senhor.
— Já não mora aqui?
— Nunca ouvi esse nome.
— Bárbara Ordóñez! A atriz! — insistiu Balmis, exaltado porque a criada não a conhecia.
— Não sei — disse a índia, de modo automático.
Balmis voltou até a carruagem e deu outro endereço ao cocheiro, dessa vez de uma casa perto da catedral. Um criado negro que usava um turbante abriu a porta. Cheirava a tabaco e flores murchas.
— Sou o doutor Balmis, avise a senhora de que estou aqui.
O homem se ausentou por alguns instantes e voltou pedindo que o acompanhasse. Na sala iluminada pelo fogo da lareira, estendida no sofá, estava Antoñita San Martín, a atriz de Cádiz, a maior atração do Coliseu, que conseguira se separar do marido que a maltratava e vivera um breve romance com Balmis. Vestia um roupão de seda estampado com flores vermelhas, tinha o cabelo tingido de ruivo e seu rosto parecia uma estátua de gesso. Balmis se assustou.
— Não tenha medo, amado, sou eu mesma...
— Com tanta maquiagem eu não tinha...
— Não é maquiagem, é para tirar as rugas. Um pouco de cera misturada com esperma de baleia. Os anos cobram seu preço...
Tinha chiqueadores presos às têmporas, parecendo pintinhas — tratava-se de um remédio caseiro contra a enxaqueca, feito com rodelas de papel untadas com gordura. Abriu sua cigarreira de filigranas de prata e acendeu um cigarro. Duas mulatas sentadas sobre uma almofada de pele de jaguar a abanavam.
— Eu sabia que você estava por aqui de novo...
— Deve ser a única a saber.
— Eu li no La Gaceta.
Balmis contou para ela da expedição, da decepção da chegada, dos obstáculos impostos pelas autoridades. Então, relembraram os velhos tempos, os sucessos do teatro e o caso de amor que tiveram, o qual culminou com a revelação do “mal francês”.
— Você me curou direitinho. Nunca mais tive problemas. Mas teria preferido continuar como sua amante a me tornar paciente... Apesar de suas estranhezas. Você continua piscando descontroladamente?
Como resposta, Balmis soltou seu tique habitual. Antoñita gargalhou.
— Como está agora? — perguntou Balmis.
— Velha, murcha e feia. Você não percebe por causa da máscara.
— Todos estamos envelhecidos, e os que não estão logo estarão. Está, sim, com um pouco mais de idade do que quando a deixei. Mas nem murcha nem feia, isso jamais. Você me parece bem-cuidada...
— Eu tive sorte, e um bom amante cuidou de mim. Quando morreu, herdei esta casa e seus outros bens. Então, agora estou a salvo. Não como a pobre Bárbara...
O médico se sobressaltou ao ouvir o nome da antiga amante.
— Morreu na indigência, pois não encontrou alguém para tirá-la daquela vida, e no fim já não lhe ofereciam trabalhos como atriz. Vivia da caridade dos amigos. Veja bem, o bispo nega tudo a nós, comediantes: os sacramentos e até mesmo o direito de sermos enterrados. Assim, ela acabou em uma vala comum. Bonita como era, não teve jeito.
Balmis ficou aturdido.
— Lembro-me de sua risada...
— Ela gostava muito de você. Dizia que vocês se casariam e morariam na Espanha. Pura fantasia, porque o conheço melhor e sei que não nasceu para viver acompanhado.
— Não é bem assim, foram as circunstâncias... — disse, abatido.
— As coisas mudaram muito desde que você morou aqui. Antes, os vice-reis gostavam de teatro e das artes e nos apoiavam. Mas esse está muito ocupado em enriquecer. Torna nossa vida impossível. Paga mal e atrasado.
Iturrigaray havia se tornado o centro de todos os esquemas do México. Antoñita contou como, na época de chuvas, ele pegou na enxada certo dia para motivar os trabalhadores que tentavam conter as inundações. Sempre a fim de ganhar popularidade.
— Pouco a pouco, foi afundando na areia movediça — contou a mulher —; esteve a ponto de morrer, não fosse pela atenção dos cavalheiros que o acompanhavam o tirarem do lodaçal.
Riram com vontade.
— Como estão longe os tempos de Bernardo de Gálvez...
— Ele, sim, teria ajudado você. Teria se empenhado, e a população formaria fila para ser vacinada.
— E o bispo?
— O do México não facilitará as coisas. Não se afasta da política nem das diretrizes do vice-rei. Para nós, garante a condenação eterna.
Antoñita deu uma tragada funda. Então se esticou na direção de Balmis e disse a ele em voz baixa, para que as criadas não a ouvissem.
— Saia dessa cidade, amado, ela estará amaldiçoada enquanto o vice-rei continuar aqui.
Ela se recompôs e mudou de tom.
— Quem pode ajudar é o bispo de Puebla, dom Ricardo María Rodríguez del Fresnillo. Ele o receberá como você merece. É um grande senhor. Foi um advogado conhecido antes de entrar para a Igreja, sempre ao lado dos pobres, dos índios e dos que não tinham um pesinho que fosse para se defender. É como você, preocupa-se com os necessitados e sabe muito de tudo... Assim como você, acredita no bem.
— E você, acredita no bem?
— No bem? Não tem jeito. Eu acredito é no bem-me-sabe, prato que comíamos em Cádiz, com muito cominho.
Riram de novo, o que provocou o riso das criadas, que se divertiam com aquele homem que erguia a voz enquanto piscava e sacudia a cabeça descontroladamente.