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Isabel precisou conter o entusiasmo. Dois dias depois da conversa com o bispo, Balmis recebeu uma mensagem do vice-rei exigindo que retornassem à Cidade do México “tão cedo quanto possível”.

— Como durou pouco a glória de Puebla — disse Balmis. — Será que se irritou com nosso sucesso por aqui?

— É muito provável — disse um de seus ajudantes.

Mas o assunto que levava Balmis de volta a cidade do México era mais grave que mero ciúmes do vice-rei. Vários dos primeiros garotos vacinados no patronato haviam falecido, e os oficiais acreditavam que a vacina levada da Espanha havia sido a causa. Iturrigaray dera ordens para que se abrisse uma investigação. Balmis precisava se defender de um ataque que intuía ser orquestrado pelo próprio vice-rei. Por acaso seriam repercussões dos relatórios que Balmis enviara a Madri? Era impossível, não transcorrera tempo suficiente para ele tomar conhecimento.

— Isabel, peço que a senhora me acompanhe com três de nossos ajudantes. Os demais enviarei com Antonio Gutiérrez, um ajudante e dois garotos para propagar a vacina em Valladolid e Guadalajara.

Ou seja, uma viagem de milhares de quilômetros pelo norte da Nova Espanha. Isabel, que sonhava em se aposentar, em levar em um lugar como Puebla uma vida tranquila, sem sobressaltos nem dissabores, sentiu que essa hora ainda não havia chegado, que não podia abandonar Balmis naquele momento. Entre o dever e a felicidade, sempre escolhia o dever — era algo entranhado no fundo de seu ser.

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Quando chegaram a Cidade do México, Balmis foi convocado ao sanatório, onde deveria se reunir com cinco médicos para inspecionar o lugar e os internos. Isabel o acompanhou, morrendo de vontade de ver seus “galeguinhos”. Subiu as escadas correndo e, no segundo andar, foi recebida pela governanta:

— Veja! — disse ela, apontando para um buraco na parede escurecida onde antes havia uma janela. — Cándido!

Cándido havia posto fogo na janela, saltado para o pátio e fugido pouco tempo depois de ela ir a Puebla. A direção do sanatório havia informado à guarda do vice-rei, que estava à procura dele. Isabel sentiu um aperto no coração. Arrependia-se de tê-lo deixado ali, mas nem Balmis nem os demais haviam entendido por que deveriam incluí-lo na viagem. Sentia-se culpada por não ter lutado, um garoto que só almejava ser amado. Amado como o pequeno Benito. Não havia fugido discretamente, havia demonstrado claramente sua raiva ao colocar fogo naquele quarto. “Onde estaria agora?”, perguntava-se, angustiada. Quem lhe daria de comer? Como se viraria sozinho? Isabel era tomada pelos pensamentos mais obscuros, pois havia visto a miséria dos subúrbios, conhecia a insalubridade das marismas e os perigos da vida nos bairros de além-muro, onde os vícios abundavam e a juventude incauta se perdia com facilidade.

Dois dos médicos apontados pelo vice-rei para levar a cabo a investigação eram antigos colegas de Balmis, de quando trabalhara no Hospital do Amor de Dios. Admiravam o médico alicantino, que consideravam eminência desde que conseguira curar o mal gálico com aquele preparado de agave e begônia. Foi um reencontro emocionante, em que trocaram lembranças do vice-rei Gálvez, de Núñez de Haro, das senhoritas do Coliseu, de uma época próxima no tempo e, no entanto, muito distante, pois agora os valores mais elementares pareciam se desintegrar ao mesmo tempo que o império. Concordavam que a corrupção saíra de controle e que se perdera o respeito pelo rei e pela pátria mãe. Todos compartilhavam da sensação de viver o final de um mundo em que a paixão pelo progresso não conseguia superar atitudes e mentalidades próprias da Idade Média.

Após submeter ao escrutínio o Patronato de Expósitos e de discutir casos individuais, cada médico escreveu um relatório, que foi apresentado ao vice-rei. Este os convocou de novo a uma audiência no patronato para a deliberação final, presidida pelo doutor García Jové, diretor do Protomedicato. O vice-rei não compareceu. Depois de escutar cada um de seus colegas, que eram unânimes ao dizer que, antes de morrer, os garotos ficaram com o rosto e os pés inchados, Balmis ofereceu sua versão:

— Contribuíram para essa terrível desgraça a umidade e os quartos mal ventilados da casa, as roupas inadequadas e a má alimentação, a carência de afeto e, sobretudo, a má saúde crônica de que padecem. O esgoto a céu aberto na base do edifício gera o ambiente perfeito para o cultivo de todos os tipos de doença.

— Há tanta umidade no andar de baixo que mandei transferirem os garotos doentes para o andar de cima, onde o ar é mais seco — disse o doutor Serrano.

O doutor García Jové irrompeu:

— Senhores, é um costume europeu atribuir a causas alheias o motivo de acidentes ou desgraças pelos quais podem ser responsáveis. Vocês acham mesmo que “os quartos mal ventilados” ou a “carência de afeto” foram a causa dessas mortes?

Escutou-se um murmúrio generalizado. Balmis respondeu:

— Não foram a causa direta, mas fatores que predispuseram à fatalidade.

— E o fato de que foram vacinados pelo doutor não teve nada a ver com a desgraça?

Virou-se para os outros médicos e prosseguiu:

— É possível que esses garotos padecessem de má saúde crônica, mas não se pode ignorar a relação de causa e efeito da vacina.

Então, olhou para Balmis nos olhos e perguntou:

— Ou não é assim, doutor Balmis?

O doutor Serrano respondeu:

— De maneira alguma, nem mesmo estendendo ao máximo os limites da imaginação, é possível concluir que a vacina tenha causado tal desgraça.

— Muitos foram vacinados no México sem padecer de efeitos secundários — interveio o doutor Arboleya. — Além disso, há mais garotos doentes entre os não vacinados que entre os vacinados.

— Se esses garotos estivessem bem de saúde — acrescentou Balmis —, não lhes teria acontecido nada. A vacina está em perfeito estado, foi um grande esforço mantê-la assim durante a viagem.

Os demais médicos assentiram. Balmis prosseguiu:

— O que observei, como a maioria dos aqui presentes, é que todos os garotos internados têm erupções cutâneas.

— Pode-se afirmar que nenhum está livre delas — disse o doutor Arboleya.

— Verdade — acrescentou outro.

Balmis continuou falando:

— O que aconteceu? A contração de um caso leve de varíola mediante a vacinação fez com que as erupções cutâneas retrocedessem no corpo, o que provocou um edema, cuja manifestação inicial é o inchaço do rosto e dos pés, precipitando um tipo de apoplexia que os matou subitamente.

García Jové olhava para ele, com ceticismo.

— Nesse caso, teriam morrido todos os que tinham erupções, ou seja, todos os vacinados. No entanto, só faleceram seis.

— Faleceram os que se encontravam em piores condições.

Seu velho amigo, o doutor Arboleya, interveio:

— Talvez tenha havido certa precipitação em vacinar crianças que não estavam bem de saúde, mas isso não deve nos levar a condenar a vacina nem o trabalho do doutor Balmis. Seu procedimento é largamente comprovado. Tampouco se pode questionar a qualidade do soro utilizado. As revacinações surtiram efeito e funcionaram bem. Portanto, quem é a favor da absolvição do doutor Balmis e de sua vacina, levante a mão.

Dos cinco, quatro levantaram a mão.