“Os jovens galegos se encontram em máximo abandono, apesar do tanto que custam mensalmente ao Erário. São deixados na miséria e tratados com desprezo”, escreveu Balmis ao ministro Caballero. Depois do ocorrido, era imperativo encontrar uma solução. O alcaide sugeriu deixá-los sob a proteção do arcebispo e ingressar os mais velhos em seminários. Como o rei e o arcebispo concediam um grande número de bolsas todos os anos, os rapazes poderiam ser educados sem custos para o Erário.
— Dessa maneira, se tornarão úteis à monarquia e à Igreja. Proponha essa solução ao ministro, doutor.
— A resposta demorará umas seis semanas para chegar, e não podemos esperar tanto tempo.
— Mas a Coroa precisa cumprir com seu compromisso — insistiu Isabel.
— O destino de vinte órfãos não é prioridade para o governo da Espanha — disse Balmis, abatido.
— Insista com o vice-rei, doutor, eu imploro.
— Repugna-me a ideia de me dirigir a ele.
— Eu sei, mas às vezes é preciso fazer das tripas coração. Se o senhor não for, irei eu — disse, estimulada pelo sucesso de sua missão com o bispo de Puebla.
Balmis a encarou. Tinha olheiras e parecia tão cansada quanto ele. Estavam perdendo a saúde naquela viagem com demasiados dissabores e escassa cooperação.
— Que notícias temos de Cándido? — perguntou Balmis.
— Nenhuma.
A contragosto, Balmis insistiu com Iturrigaray, sempre por meio de cartas, pois a relação era tão tensa que um encontro face a face não era concebível. Como bom burocrata, o vice-rei respondeu-lhe que, antes de tomar qualquer decisão, precisava ter certeza de que a educação no patronato não estava à altura das expectativas do rei. “Como se não soubesse!”, pensou Balmis. Um oficial chamado José Antonio de Araujo ficou encarregado de elaborar um relatório para o vice-rei. Nele, informava que catorze garotos, aqueles com mais de seis anos, assistiam regulamente às aulas de manhã e à tarde, recebendo instrução religiosa, já que nenhum sabia sequer fazer o sinal da cruz. Informou que, dos catorze, cinco eram estudantes aplicados, e os outros nove eram menos hábeis. Os seis garotos mais jovens iam à creche da ala feminina, onde os colocara Isabel. Araujo citou o caso de Cándido como exemplo do mau comportamento geral daquelas crianças e elogiou o esforço dos professores para fazê-los esquecer as obscenidades e blasfêmias que haviam aprendido com os marinheiros durante a viagem à América. Era exatamente o que o vice-rei precisava para não mover nem um dedo. Aqueles garotos estavam onde deviam estar.
O que fazer? A expedição não poderia parar no México, à espera de ordens da Espanha que obrigassem o vice-rei a cumprir suas obrigações com os garotos. Por outro lado, Francisco Pastor e seus dois ajudantes haviam retornado da viagem pela Guatemala e pelo sul do México, onde, graças à colaboração ativa das autoridades, implantaram a vacina com eficácia. Voltaram cansados, mas felizes, sem o tamborzinho, que havia optado por retornar a Veracruz e, de lá, embarcar de volta a Cuba, sua terra natal, da qual sentia saudades.
Impulsionado pelo sucesso de seu sobrinho e pelo dele próprio em Puebla, Balmis decidiu visitar as províncias do norte do México não apenas para introduzir a vacina, mas também para selecionar os garotos da cadeia humana que levaria o fluido às Filipinas. Na Cidade do México, fora impossível recrutar algum. Os pais resistiam a emprestar seus filhos, porque havia corrido a notícia da má situação em que se encontravam no patronato do México os jovens europeus. A única possibilidade era recrutá-los nas províncias.
— Parte-me o coração deixá-los aqui — disse Isabel. E se eu ficar com eles?
Balmis empalideceu.
— Preciso da senhora para os preparativos... Sua presença aqui não vai mudar a situação.
No entanto, eles tiveram de atrasar a saída porque, como ocorrera antes com Balmis, agora todos os membros da expedição, ajudantes, enfermeiros e médicos foram vítima de uma nova pestilência. A casa da marquesa de Casa Nevada parecia uma clínica onde entravam e saíam velhos amigos de Balmis, médicos levando remédios baseados em receitas astecas, recompilados no Códice Badiano, o grande livro ilustrado das ervas do vale do México que o médico de Felipe II, Francisco Hernández, havia levado à Europa e do qual Balmis era fervoroso admirador. Defender o “magistério primitivo” dos indígenas pré-hispânicos lhe rendera o escárnio dos colegas madrilenses. Mas não restavam dúvidas de que a purga de jalapa, planta trepadeira cujas raízes serviam de purgante, a salsaparrilha, a água de baratas, a ipecacuanha e a quina para a febre amarela eram remédios eficazes. Acerca de outros, como a receita de carne de lagartixa para curar o câncer, ele era mais cético.
Isabel, que a duras penas mantinha-se saudável, gostava de ir ao mercado comprar plantas medicinais e comida acompanhada de alguns criados da casa, cuja missão, além de carregar as compras, era perguntar por Cándido aos indígenas que vagavam pela praça do Zócalo. Com montes de frutas, verduras, legumes, carnes brancas e vermelhas, de criação e de caça, rãs, anfíbios como axolote e peixes de água doce, era o mais espetacular de todos os mercados. Atravessando um canal, chegava-se à praça del Volador, com o embarcadouro onde atracavam as canoas provenientes da lagoa, repletas de verduras e hortaliças, e onde passeavam as vendedoras de ovos entre mostruários de queijos frescos e envelhecidos, de cabra e de vaca, e de doces gostosos. Isabel nunca tinha visto tamanha abundância de mercadorias — o que contrastava muito com a miséria do povo, que só comia milho, feijão e pimenta.
Um dia, o criado chegou acompanhado de um indivíduo mestiço, desdentado e com um olho torto como o de um peixe, que exalava um odor fétido de pulque.
— É huachinango, mas diz que sabe de um garoto branco escondido em uma choça.
Huachinangos eram os vagabundos que faziam escambo, jogavam conversa fora e matavam as horas por falta de trabalho.
— Senhorita... procura garoto? — perguntou o vagabundo.
— Um garoto branco, espanhol, com olhos muito claros… Você o viu?
— Sim, sim! Eu conheço.
— Onde está?
— Escondido.
Isabel e o criado estavam convencidos de que se tratava de Cándido.
— Eu levo você, mas aí você me dá uns reales.
— Darei depois que você me levar até ele.
— Nããão — disse o homem, dando meia-volta.
Isabel não sabia o que pensar... E se fosse verdade? E se soubesse do paradeiro de Cándido? Ao fim e ao cabo, não havia tantos garotos loiros de olhos azuis.
— Está bem — disse. — Tome. — Entregou-lhe algumas moedas. — Agora me leve até ele.
O homem era um dos vinte mil miseráveis que pipocavam pela capital. A maioria passava a noite ao relento e deitava ao sol durante o dia, envolta em mantas de flanela. O homem a conduziu por dois canais e, então, por ruelas ladeadas por casas de madeira e adobe com teto de palha. Andaram um bom tempo, longe do centro, ela sendo alvo dos olhares das vizinhas que se perguntavam o que fazia naquelas ruelas uma senhora espanhola acompanhada por um huachinango. A expectativa de encontrar Cándido atenuava o medo de estar em um subúrbio perigoso e cheio de imundícies, onde ratos brigavam por restos de comida. Por fim, chegaram a um jacal, uma choça indígena de apenas um ambiente e teto de palha. Enquanto seus olhos se acostumavam à escuridão, e seu olfato, ao fedor, Isabel discerniu panelas e caçarolas de barro, colheres de vários tipos, cestos para armazenar provisões e um fogão para esquentar a água e cozinhar milho. De repente, escutou um grito gutural e se assustou ao ver que um ser disforme se lançava contra ela. Caiu no chão de barro e tentou se debater. O criado fugiu apavorado da choça.
— Ele não é violento, só quer abraçar você! — disse o huachinango.
Isabel percebeu que aquele monstro com lábio leporino e espinha bífida era um garoto deficiente. Deslocava-se de quatro, pela distância que lhe permitia a corrente que tinha ao redor do pescoço.
— Menino branco! — repetia o huachinango.
Sim, era muito branco, pois além de tudo era albino.
— Tem olhos claros, muito claros — dizia, para demonstrar que não a havia enganado.
Aquele garoto era cego e tinha as pupilas brancas. A família lhe dava de comer, mas não o tirava dali jamais por vergonha e por acreditar que um garoto assim atrairia a fúria dos deuses. Só emitia sons guturais, mas era capaz de demonstrar afeto. Isabel deu a ele um dos doces que havia comprado, e o garoto saltou feito um macaco para comê-lo. Estava sujo, tinha o cabelo grosso e as unhas pretas e encurvadas de tão compridas. Provocava nela uma mistura de espanto e piedade. Mas ela o acariciou, pouco a pouco, primeiro as mãos, então o rosto. O garoto foi se apaziguando, erguia o pescoço, e um fio de saliva caiu por seus lábios rasgados. Emitia um som rouco de prazer, como um animal selvagem. Isabel ficou lá por um longo tempo, comunicando-se por gestos e pelo olhar, até que o garoto pegou no sono. Então, saiu na ponta dos pés.
— Me dê reales, me dê! — dizia a ela o huachinango. — Queria garoto branco, olhos claros, eu trouxe você até um garoto muito branco com olhos brancos!
Ela tirou moedas de uma bolsinha de couro e entregou-as ao vagabundo, que se ajoelhou em um gesto de agradecimento.
— É muito, senhora — disse o criado.
— Vamos ao Zócalo.
Inquieta, mandou o criado com as compras para casa e entrou na catedral, na mesma praça. Precisava de sossego, queria apagar o fogo que queimava suas entranhas. Ajoelhou-se e, furiosa com Deus, perguntou por que permitia semelhantes injustiças, por que não lhe devolvia Cándido. Então, acalmou-se e rezou pelos mortos, Ignacia e Jacobo, e pelos vivos, seu filho Benito, os outros no patronato; rogou para que os expedicionários adoecidos sarassem logo... Entrou em um estado de semiconsciência e se deixou levar por devaneios: via Salvany, sorridente, satisfeito por ter cumprido com sua extraordinária missão, disposto a passar o resto de seus dias com ela. Aquele sonho era um bálsamo para sua alma dolorida.