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Diferentemente de Balmis, Josep Salvany contou com a inestimável ajuda das autoridades locais desde o início de seu trajeto pelo território sul-americano. Em Santa Fé de Bogotá, ficou marcado como um homem heroico, entregue ao trabalho apesar dos percalços físicos. Grajales deixou a impressão de ser um homem íntegro, humanista, de temperamento vívido, espiritual e ligeiro. “Toca viola de mão e receita chicha aos doentes”, diziam dele.

Mais uma vez, Salvany padeceu da mesma inflamação de quando percorrera o rio Magdalena, dessa vez no olho saudável, e temeu ficar completamente cego. Olhava para tudo com avidez, como nunca mais fosse ver nada daquilo. Em outro dia, sangrou pela boca como havia ocorrido no barco e precisou adiar a partida. Utilizava o lenço vermelho que Isabel lhe presenteara. Ele também gostava de se deixar levar pelos devaneios e imaginar um reencontro com ela ao término da expedição. Queria levar uma vida tranquila em algum lugar da América, onde se dedicaria a curar o povo e a ensiná-lo a se cuidar. A exercer a sua vocação. Mas, ao contrário de Isabel, quando saía da letargia da semiconsciência e se via diante da realidade, considerava aquilo um sonho impossível. Porque sua vida era uma dança mortal entre a doença e a saúde cada vez mais frágil.

Assim que sentiu que tinha forças, deixou Santa Fé de Bogotá rumo à capitania-geral de Quito e, para alcançar mais território, dividiu a expedição. Decidiram que Grajales e Bolaños se dirigiriam a Neiva e a La Plata pela costa, enquanto o praticante Lozano acompanharia Salvany rumo a Cartago, Trujillo e a província de Chocó. Cada grupo levava seis garotos, indígenas ou mestiços, com menos de dez anos.

Atravessaram uma paisagem de vales e montanhas intermináveis — em um dia de jornada passavam do calor ao frio, de selvas pantanosas a picos de três mil metros de altura. Nas selvas, navegavam por rios sem se afastar da margem por medo de encontrarem correntezas e cascatas e, no caso de soçobrarem, não alcançarem a terra. À noite, o céu que se via entre as copas das árvores era o mais estrelado que Salvany já vira. Sentavam-se ao redor de fogueiras para comer os peixes que os carregadores indígenas pescavam com lanças e, então, dormiam em colchonetes de fibra. Os coaxos de milhares de sapos, os gritos dos pássaros noturnos, os uivos dos macacos e os sons roucos dos crocodilos no cio se mesclavam com os roncos dos índios que dormiam feito pedra, esmagando com tapas os mosquitos que zumbiam ao redor. Salvany não pregava o olho. O que fazia era pensar na próxima jornada, em recrutar mais garotos, em protegê-los do contágio entre si... Seu ânimo oscilava entre o entusiasmo advindo do trabalho realizado e o desalento diante da magnitude da tarefa, entre o medo de morrer e a esperança de chegar ao fim do caminho, gozar de um mínimo de reconhecimento e de sossego. Não havia tempestades nem trovões, mas de vez em quando um relâmpago iluminava o rio. Então, o praticante Lozano, que também era cirurgião, via o rosto abatido de Salvany, sua expressão de susto, e lhe parecia a imagem da própria morte.

Saíam ao alvorecer e, quando não dava para avançar pelo rio, seguiam por trilhas, os índios desnudos e descalços impondo aos demais um ritmo puxado. “A vantagem de caminhar nu”, pensou Salvany, “era que dava para sentir quando uma aranha clara e felpuda do tamanho de um caranguejo saltava de um galho para seu corpo”. Ou uma serpente. A roupa era má proteção naquele ambiente onde os raios de sol mal penetravam a copa das árvores e onde o calor era opressivo. As gotas que caíam das folhas e a umidade do ambiente davam a sensação de se estar em uma sauna insalubre, e a ameaça invisível dos insetos letais transformava as marchas em uma tortura. Salvany redobrava os cuidados com os garotos, que os carregadores inevitavelmente precisavam levar sobre os ombros.

Ao subir, deixavam para trás a selva mais densa e se viam em frente a despenhadeiros intransponíveis. Os índios carregadores que transportavam os utensílios para vacinação se revezavam para carregar, sentado em uma cadeira de taquara e troncos finos, o próprio Salvany. Outros, os “estribeiros”, carregavam os pacotes mais pesados, às vezes em quatro. Os caminhos eram tão estreitos que precisavam avançar de um em um entre a escarpa e o precipício ou tão tomados pela vegetação que se tornava imprescindível contratar nativos que abrissem caminho a machadadas. As marchas eram tão esgotantes que era preciso contratar carregadores substitutos nas aldeias. Durante dias, só comeram peixe e banana. Quando a expedição se reencontrou em Popayán, a primeira coisa que fizeram foi se recompor das fadigas da viagem e da deterioração da saúde. Mas o descanso não durou muito, pois chegou a notícia de que em Quito havia se desencadeado um surto epidêmico.

— Precisamos partir o quanto antes — disse Salvany, mais debilitado que nunca.

Outra vez dividiu a expedição e outra vez enfrentaram uma geografia de beleza deslumbrante, mas pela qual era um estorvo transitar. Os rios eram os piores obstáculos: caudalosos, de leitos profundos, retardavam a marcha. Era preciso encontrar pontes, tirolesas ou, ainda pior, atravessá-lo pela água. Salvany temia pelos momentos em que precisava entrar em uma espécie de saco de couro e deslizar suspenso entre duas forquilhas para chegar à outra margem. Os solavancos lhe davam enjoo e vertigem, sensações que permaneciam em sua memória. Também havia pontes formadas por uma corda grossa em que era preciso se segurar enquanto se pisava em um chão salpicado de taquara e cipó; era fácil perder o equilíbrio. As frequentes chuvas torrenciais podiam durar dias inteiros. Embora a viagem fosse penosa e arriscada, em nenhum momento os expedicionários deixaram de levar a cabo seu trabalho filantrópico e sanitário, instruindo os facultativos dos povoados por onde passavam. “Não fomos detidos em nenhum momento por falta de caminhos, precipícios, muito menos por chuva, neve, calor, fome e sede de que muitas vezes padecemos. A dureza causada pelo cruel contágio em nossos primeiros passos serviram de estímulo para dar um brilhante fim a tão nobres e humanitárias tarefas”, escreveu Salvany ao ministro José Caballero.

Em 16 de julho de 1805, na catedral de Quito, após terem sido recebidos como verdadeiros heróis, o cônego magistral predicou um sermão de ação de graças. Na saída, os garotos foram carregados nos ombros do povo entusiasmado e agradecido aos expedicionários por terem detido o contágio na província de Pasto, livrando a cidade de outra epidemia.

Salvany deitou-se na cama, exausto. Bem depressa a satisfação pelo sucesso foi ofuscada por um incidente que o afetou de maneira desproporcional. Descobriu que um dos serventes, Ramón Chavarría, sujeito de maior confiança, conforme lhe disseram, havia roubado cem pesos fortes e parte de seu equipamento. Denunciou-o às autoridades, que abriram uma investigação. Ao cabo de vários dias, descobriram que o servente vivia entregue ao vício do jogo e gastara o dinheiro em uma mesa de truco. Aquilo despertou em Salvany uma intensa melancolia. Sua tristeza era tão profunda que não conseguia explicá-la.

— Não é pelo dinheiro, embora seja uma canalhice roubar de nós, que somos tão justos... É pela decepção — disse Salvany. — Sinto como se algo dentro de mim tivesse quebrado.

— É o cansaço acumulado, doutor.

— Não... é algo que observei várias vezes em meus pacientes, um fato insignificante pode desencadear uma grande melancolia.

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Quando chegaram a Cuenca, duas semanas depois, ele continuava tão impactado que se fechou no quarto da casa em que se hospedaram. Não participou das festas pomposas nem das touradas, tampouco dos bailes de máscaras. Nem sequer o fato de a cidade ter permanecido iluminada por três noites em sua honra ou de que houvessem vacinado setecentas pessoas no primeiro dia o tirou daquele estado de profundo estupor. Ao chegarem notícias de uma epidemia de varíola que ameaçava a cidade de Trujillo, decidiu seguir viagem. Em Piura, precisou parar devido a uma pneumonia.

Quando enfim chegou a Trujillo, encontrava-se em tal estado de esgotamento e tinha tanta febre que se manteve vários dias distanciado de tudo, submetido a banhos de água fria, tendo alucinações, sem vontade de viver nem de morrer, em um estado de confusão mental que não lhe permitia tomar decisões. Seus companheiros viam que seu chefe estava partindo e não podiam fazer nada. Salvany era um morto em vida que se consolava dizendo que a equipe e as pessoas que eles instruíram continuariam seu trabalho. Era como se ele mesmo desistisse. Permaneceu duas semanas na escuridão do quarto, o que de alguma forma refletia a falta de luz em sua mente. Pouco a pouco, a febre foi baixando e a tosse cedeu, mas o ânimo continuava ínfimo. Tudo levava a crer que aquela ramificação da expedição estava terminada, mas a vida tem sua lógica própria, que nem sempre coincide com a lógica dos homens.

Certa manhã, recebeu uma visita que o levou a crer que era vítima de outra alucinação. A sua frente, na penumbra do quarto, discerniu os traços familiares de um homem mais velho, alguém que não vira desde seus anos de estudante em Barcelona. Era um velho amigo da família, um homem respeitado pela honradez acima de qualquer prova e pela dedicação aos demais.

— O senhor… aqui! — sussurrou Salvany.

— Segui seus rastros desde que soube que o doutor fazia parte da expedição. Tive até mesmo a honra de conhecer o doutor Balmis e sua equipe quando chegaram ao México.

Dom Benito María Moxó, antigo bispo de Michoacán, havia sido nomeado arcebispo de La Plata. Informado do lamentável estado físico e mental de Salvany, embarcara em uma longa e arriscada viagem até Trujillo apenas para prestar-lhe a ajuda necessária.

— Como estavam meus colegas?

— De saúde, bem. O resto, difícil.

Contou-lhe da situação na Nova Espanha, da oposição do vice-rei Iturrigaray e do problema com os garotos do patronato. Salvany escutava com grande atenção, imaginando-os perfeitamente, fechando os olhos para perscrutar os rostos, escutar os galegos trocando insultos, reviver os bons momentos compartilhados durante aquela navegação... Sentia que fazia parte daquilo que dom Benito contava, um relato que o vinculava ao mundo e, pouco a pouco, devolvia-lhe a vida. Por fim, fez a pergunta que tinha na ponta da língua:

— Havia uma mulher com eles, encarregada de cuidar dos garotos… Sabe alguma coisa dela? Chama-se Isabel.

— O último que soube é que o bispo de Puebla lhe ofereceu um trabalho no hospital, e ela aceitou. Mas não sei se ficou em Puebla ou se continuou com Balmis. Se prosseguiu, devem estar rumo às Filipinas.

— Conte-me, senhor, ela perguntou por mim?

— A verdade é que, quando a conheci, estava tão absorta por ter que cuidar dos garotos que seriam recebidos pelo vice-rei que não me lembro bem.

— Ela não achou incrível a coincidência de encontrar alguém tão próximo de mim em um lugar tão distante?

— Suponho que sim, Josep.

Haviam avisado ao prelado que Salvany, além de doente, estava com os sentidos alterados. Ao comprová-lo por si mesmo, procurou tranquilizá-lo.

— Pensando agora, sim, perguntou pelo doutor — disse dom Benito. — De onde nos conhecíamos, como você era quando criança, como eram seus pais...

— Prossiga, por favor, prossiga…

— Contei a ela dos passeios pelas montanhas quando vivíamos em Cervera, falei de sua vocação tão precoce, de como o doutor se tornou o dissecador de cadáveres mais famoso de Barcelona...

Salvany conseguiu rir. O arcebispo continuou:

— Pediu-me que, se por acaso me encontrasse com o doutor, dissesse que ainda o levava no coração.

— Sério mesmo? — disse Salvany, com o rosto iluminado.

— E desejou-lhe saúde e força para guiar a expedição até um porto seguro.

Salvany permaneceu um longo tempo em silêncio, agitado por suas fantasias. Ter dom Benito a seu lado era o melhor remédio que poderiam ter lhe administrado. Significava sentir suas raízes outra vez, recuperar a confiança, não se sentir tão só diante de uma missão gigantesca.

— Juntos vamos estancar o contágio que ameaça Trujillo — disse-lhe o arcebispo. — Vim para oferecer todo o apoio de minhas paróquias, bem como minha dedicação pessoal. De modo que me encarregarei de levar a cabo o que o doutor me instruir. Só o deixarei quando já estiver recuperado.

— O senhor acha mesmo que me recuperarei?

— Tenha fé, Josep.

Contar com o apoio decisivo de um homem poderoso como dom Benito permitiu que o método de vacinação fosse consolidado em toda região. O próprio arcebispo aprendeu tão bem a lição que instruiu alguns facultativos. Sua presença e seu prestígio deram a Salvany a chance de descansar, recuperar-se da pneumonia e recuperar as energias.

— O senhor foi meu verdadeiro protetor e, por tabela, também salvou a expedição — disse-lhe Salvany, mais uma vez a ponto de partir. — Não tenho palavras para agradecer pelo que o senhor fez...

— Não são necessárias palavras... É suficiente seguir no caminho de Cristo, esse que o doutor tem desbravado com tanta coragem. Sempre estarei presente para ajudá-lo. Nós nos veremos em Lima.