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Com Salvany novamente no comando, a expedição chegou ao vice-reinado do Peru. Na entrada da pequena cidade de Lambayeque, toparam com índios que resistiram à vacinação. Com um repertório de argumentos racionais, Salvany se desdobrou em explicações, mas aqueles índios se mantiveram firmes à crença de que a vacina era algo diabólico, até mais que a própria doença. Por fim, diante da insistência do homem branco, o cacique encasquetou:

— O senhor é o anticristo!

Disse de maneira tão ameaçadora que os expedicionários optaram por seguir caminho. Entraram na cidade, mas não encontraram onde se alojar. Por medo de represálias, ninguém queria ser visto com aqueles brancos.

— Fujam daqui — disse a eles um vizinho. — Esses índios estão dizendo que vão persegui-los. São bravos, fujam.

Tiveram de abandonar precipitadamente a cidade, mas no caminho até a aldeia vizinha de Chota os arreadores que os guiavam e acompanhavam para o transporte dos garotos abandonaram a expedição. Desorientados e desprotegidos, Salvany e seus expedicionários sentiram um medo extremo de que os índios de Lambayeque armassem uma emboscada. Enquanto vagavam pelo campo sem encontrar aldeias nem camponeses para socorrê-los, alimentaram-se unicamente de milho tostado. Ao fim do quarto dia, já desesperados, encontraram um homem a cavalo.

— Mas o que vocês fazem aqui, vivendo feito ladrões de gado?

Era um fazendeiro rico chamado Juan Espinach, que os acolheu, deu-lhes de comer e abasteceu-os com víveres.

O incidente ficou gravado na memória de todos. Durante muito tempo, Salvany acordava suando durante um ataque de pânico, achando que estava perdido em meio às montanhas, à mercê de indígenas hostis.

O caminho até Lima passava pela cordilheira dos Andes. Tiveram de subir até quatro mil metros de altura na estação mais rigorosa de chuvas e neve. Os garotos estavam fascinados com aqueles flocos que caíam do céu, cobrindo os campos de um manto branco. Mas o frio fez com que sua saúde minguasse. A falta de trilhas demarcadas e a necessidade de conter o contágio da varíola nos povoados por onde passavam estenderam a viagem. Já perto de Lima, Salvany comprovou que o comportamento dos locais era veladamente hostil. Longe de serem recebidos de braços abertos, eram evitados pelos camponeses. Tampouco ali queriam se vacinar; não havia medo no rosto deles, mas desconfiança.

— Acham que vai lhes custar dinheiro — disse um dos guias.

— Diga a eles que é gratuito.

— Não confiam. Já vieram vaciná-los e, depois, pediram quatro pesos. Ao chegar a Lima, soube a razão pela qual os índios de Lambayeque e os camponeses dos povoados próximos os haviam evitado. A vacina já aparecera por lá e era um bom negócio. Não estava nas mãos de médicos, mas de comerciantes pouco preparados, de modo que muitas vezes faziam o procedimento com um fluido que havia perdido propriedades ou o faziam de qualquer jeito, e a vacina não surtia efeito. Essas falhas fizeram com que as pessoas depreciassem a profilaxia da varíola. A Administração Municipal, que também comercializava a invenção, não parecia se importar com o fato de que grande parte da população não tinha acesso a ela por falta de recursos.

— As autoridades não demonstram muito empenho em nos favorecer — observou um dos ajudantes de Salvany.

— Dizem por aí que podem fazer tudo aquilo de que a expedição é capaz.

Salvany enfrentava o mesmo desafio de Balmis no México e, assim como o alicantino, também pôde medir o escárnio e o deboche com que foram recebidos pelo alojamento que lhes foi oferecido: uma casa modesta com três mesas velhas, uma dúzia de cadeiras, um canapé desconjuntado e quatro catres para os garotos, sem lençóis nem cobertores. Para os mais velhos, havia colchões tão sujos que preferiram dormir no chão. Em seu diário de viagem, Salvany contou que a Administração Municipal, que teoricamente deveria auxiliar aqueles garotos, deixou-os um dia inteiro sem comida e, nos dias seguintes, não lhes deu pão para o café da manhã nem iluminação à noite. Indignado, mandou cartas urgentes de protesto ao vice-rei, que imediatamente se dedicou ao assunto. Ordenou às autoridades locais que asseassem o alojamento e os acomodassem com mais dignidade, acrescentando uma nota: “Que sejam tratados com esmero os indivíduos da expedição”. Salvany também pediu ajuda ao arcebispo Benito María Moxó, que interveio diretamente, celebrando uma missa solene com iluminação e rufar de tambores. Já havia dado ordens a todas as paróquias para que difundissem o fluido pelas províncias do vice-reinado.

— Mas não cumprem minhas ordens — confessou a Salvany. — Não as cumprem porque aqueles que vendem a vacina subornam-nos para que não o façam.

Lima não era México: ali, tanto as autoridades vice-reais quanto as eclesiásticas estavam em sintonia. Não existia competição para assumir os méritos pela descoberta da vacina. Não existia luta política que reivindicasse a descoberta. O que havia eram fortes interesses privados que comercializavam uma vacina de má qualidade e que viram a chegada da expedição como ameaça aos negócios.

— Os que querem lucrar à custa da saúde do povo sabem manipular a ignorância deste — disse-lhe o arcebispo. — Sabem comprar vontades. Por isso é tão difícil lutar contra esses interesses privados.

— Então — disse Salvany —, vamos mudar de tática. Esquecer as vacinações em massa e nos concentrarmos em elaborar um regulamento e planos de vacinação para todo o vice-reinado.

— Sim, não abandonarei a ideia de que haja saúde ao alcance de todos, brancos e negros, cholos e criollos.

Não era essa a ideia a partir da qual a monarquia havia concebido a expedição? Duas concepções de saúde se confrontavam na América: a de saúde pública organizada pela Real Beneficência e outra, cujas inovações técnicas estariam ao alcance de quem pudesse pagar por elas.

Graças ao arcebispo, Salvany foi apresentado à elite intelectual da Universidade de San Marcos de Lima. O reputado médico doutor Unanue convidou-o a participar de tertúlias iluministas celebradas nas casas de criollos ricos. O Peru não estava alheio à influência do Iluminismo. Tinha bibliotecas como a de San Pablo, com quase quarenta mil volumes que incluíam livros de Bacon, Newton e outros líderes da revolução científica do século XVII. Estava em circulação El Mercurio, um grande jornal. Naquele ambiente culto, Salvany descansou, estudou e pensou.

Mas, apesar do repouso, sua saúde não melhorava de todo. Havia resgatado a vontade de viver e o entusiasmo pelo trabalho, até que um ataque súbito de convulsões que os médicos confundiram com apoplexia o prostrou outra vez. Não tinha nem trinta anos, mas as dores no peito, a ausência total de apetite, os enjoos e os ataques de tosse fizeram com que se sentisse muito velho.

“Essa deve ser a tragédia da velhice”, pensou Salvany, “ter a cabeça lúcida e cheia de projetos, mas um corpo incapaz de levá-los adiante”.

Naquela noite, deve ter sentido que a morte o rondava, porque se pôs a escrever uma carta para Isabel.