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Isabel, minha querida,

Escrevo-lhe da cama que me foi arranjada pelo arcebispo de La Plata, meu bom amigo e protetor Benito María Moxó, que a senhora teve o prazer de conhecer e que me deu notícias suas, pelas quais tanto ansiei desde que nos separamos. Estou me repondo de um ataque convulsivo em consequência de uma pneumonia. Em atenção às graves enfermidades de que padeço e impossibilitado de retornar à Europa, solicitei um cargo político ao ministro de Graça e Justiça José Caballero para ficar na América e estou confiante em que ele aceitará. Acreditamos ter vencido a guerra quando conquistamos uma vitória, mas sempre se apresenta uma nova batalha. Em Lima, a vacina se compra e se vende como a aguardente e o açúcar, por comerciantes que veem nesse fluido um modo rápido e garantido de enriquecer. É apenas graças ao apoio de um pequeno número de sábios e figuras distintas desta capital que consigo transformar a postura popular diante da vacina... A senhora sabe que meu maior desejo é voltar e encontrá-la em um lugar de clima ameno, saudável e moderadamente seco, mas, caso pela vontade de Deus isso não seja possível, quero que saiba que jamais a esquecerei, que estou com você mesmo a distância. A felicidade, amada Isabel, é aceitar a luta, o esforço, a dúvida e continuar avançando, avançando e superando um obstáculo após o outro...

Isabel recebeu a carta na Cidade do México, esgotada após cinquenta e três dias de uma jornada intensa que a levou a percorrer o interior da Nova Espanha, de Querétaro a Celaya, de Valladolid a Guadalajara, de Guanajuato a Durango. Alarmada e receosa, suas mãos tremiam ao abri-la. Ler a correspondência despertou nela um sentimento indescritível de angústia. Intuía que a saúde de Salvany tinha piorado naquele clima adverso, mas o que pensou ter lido nas entrelinhas, e que a mergulhou em aflição, foi a sensação de despedida. “Caso pela vontade de Deus isso não seja possível, quero que saiba que jamais a esquecerei.” Essa frase e a seguinte, em que dava o que pareciam ser alguns últimos conselhos para a vida, afundaram-na em melancolia.

“Talvez seja o cansaço”, disse a si mesma enquanto passava um lenço no rosto para secar as lágrimas.

O esgotamento produzira tristeza. Havia também a cansativa excursão, em que tivera de lidar com autoridades reticentes e na qual se vira obrigada a cuidar de novos garotos que Balmis ia recrutando para o último trecho da viagem, nas Filipinas. Ele estava muito satisfeito com o resultado da excursão, apesar de não ter conseguido apoio das autoridades locais no Texas, em Salvatierra e em Guanajuato, onde se negaram a organizar juntas de vacinação sem ordens expressas do vice-rei, as quais de fato nunca chegaram. Nas demais cidades, foram recebidos de maneira extraordinária, o que foi uma recompensa merecida. Acima de tudo, estava contente por ter conseguido recrutar vinte e seis garotos para a viagem às Filipinas. Vinte e seis garotos cujo bem-estar recaía sobe os ombros de Isabel. Eram mais dóceis que os galegos porque não eram órfãos e não haviam morado em orfanatos, já que instituições assim eram escassas na Nova Espanha. Eram filhos de famílias muito pobres; nenhuma aceitou o trato oficial, pelo qual a Coroa pagaria os estudos dos garotos em troca de sua participação na viagem. Queriam dinheiro vivo. Como o vice-rei se negou a substituir por dinheiro as promessas do rei, Balmis não teve alternativa senão pagar os pais, o que conseguiu graças a um empréstimo do bispo de Guadalajara.

Em Zacatecas, a Administração Municipal lhes ofereceu os últimos seis garotos, que se apresentaram em uniforme de gala com o escudo real e a inscrição “Dedicado a María Luisa, rainha da Espanha e das Índias”. “Pequenos grandes heróis, tão ingênuos”, pensou Isabel. Mas, na realidade, para ela tratava-se de mais crianças para dar atenção e cuidar, com doenças, caprichos, vitalidade transbordante e necessidades específicas, tanto físicas quanto afetivas. Por mais que estivesse acostumada, era uma tarefa colossal para uma mulher que sentia o desgaste dos últimos meses.

Isabel não queria que o filho a acompanhasse às Filipinas, preferia poupá-lo de um risco desnecessário. Mas a ideia de deixá-lo no México sozinho a destroçava. Seria a primeira vez que se separaria dele. Debatia-se entre sua lealdade à expedição e sua vontade de se desligar do último trecho da viagem. Ficou entre o dever e o amor pelo filho. Entre sua vocação de cuidar dos outros, sua paixão por vacinar e prevenir doenças e a necessidade de levar uma vida normal. Entre o dever e o desejo, havia um abismo que não sabia como transpor. Rebelar-se e bater pé diante de Balmis ia contra seu temperamento; em Cuba, fracassara. Mulher de seu tempo, sabia se posicionar com firmeza. Mas não cabia nela a rebeldia — pelo contrário. Obedecera desde criança, primeiro aos pais, então a Benito Vélez, depois a dom Jerónimo e agora a Balmis, seu chefe. Sua vida evoluía nos limites de seu destino de mulher nascida em uma aldeia pobre do interior da Galícia. No entanto, estava tão farta que, certo dia, antes de retornar à Cidade do México, disse a Balmis:

— Doutor, não posso ir às Filipinas e deixar meu filho aqui.

— Sempre achei que seu filho nos acompanharia.

— Não quero expô-lo ao risco de outra longa navegação.

Fez-se um silêncio. Balmis contraiu o pescoço e assentiu com a cabeça. Entendia.

— Além disso, Benito está agressivo devido ao excesso de contato com marinheiros... O bispo de Puebla me ofereceu uma bolsa para que estude no Colégio Carolino, dizem que é muito bom...

— É uma excelente oportunidade, sem dúvidas.

— Entenda, doutor. Nunca me separei dele, e fazer isso em um país desconhecido...

Balmis percebeu como Isabel, desgarrada, lutava para conter a emoção. Tinha olheiras profundas, a pele mais pálida do que nunca e um ar tristonho.

— Sei que meu compromisso me obriga a ir até Manila, mas...

— Entendo a senhora, Isabel. Não posso pedir mais do que a senhora já fez pela expedição.

— Não é que eu não queira continuar, doutor, é que... O senhor sabe o que significa para mim voltar para a Espanha.

— De uma mulher que salvou o mundo de uma doença atroz se perdoa tudo... até na Espanha.

— Não tenho certeza. Minha motivação foi de empreender uma nova vida na América, com meu filho reconhecido como tal.

— Eu sei. E foi difícil chegar até aqui.

Outro longo silêncio se instaurou entre eles. Sim, fora difícil. Sempre houvera algum garoto doente, sentiu pânico nas travessias com mau tempo e uma grande solidão por ser a única mulher no grupo. Balmis tentou uma última cartada, por pura vaidade, embora não tivesse esperanças de que funcionasse.

— Eu tinha o sonho, sem qualquer fundamento, devo dizer, de voltar com a senhora a Madri e compartilhar da glória do sucesso da expedição. E com seu filho, é claro.

— E Salvany? — respondeu Isabel.

Balmis mudou de semblante. Isabel prosseguiu:

— Não merece ele, mais que qualquer outra pessoa, compartilhar a glória da expedição com o doutor?

— Teremos de ver como se saiu com seu trabalho.

Balmis percebeu que seu comentário havia chocado Isabel e prosseguiu:

— É... é um homem doente, que nunca deveria ter se juntado à aventura. Ignoro as razões que o motivaram.

— Queria dar um sentido para sua vida, ao que lhe resta da vida... O fato é que lhe coube a parte mais dura.

— Não é verdade. Ao ter de se deslocar por terra firme, poupei-o dos riscos inerentes à navegação. Ademais, já se havia sido dito em Madri que a expedição seria dividida.

— Mas não tão cedo, pelo que eu entendi.

— As coisas ocorrem quando têm que ocorrer. Salvany não estava se comportando...

Balmis pigarreou, como sempre fazia quando tinha dificuldade para dizer algo ou não queria dizer. Procurava as palavras. Por fim, disse:

— Um profissional entregue a uma tarefa tão complexa quanto levar a cabo esta expedição tem de saber se comportar em toda e qualquer circunstância.

Olhou para ela, sem dizer que era com ela que Salvany “não havia se comportado”. Isabel ruborizou, violenta.

— Então eu também...

— Com a senhora é diferente.

— Por quê?

— Porque é impecável e única em seu desempenho. Sua função de inculcar confiança e compartilhar carinho com as crianças é fundamental.

Balmis, que não era prodígio em matérias de elogio, achou que assim corrigia a gafe. Mas Isabel já não era ingênua. Acreditava que a obsessão de Balmis com as Filipinas se explicava porque, por não ter conseguido introduzir a vacina na Nova Espanha da maneira que havia esperado, ele queria buscar nos confins do império a glória pela qual tanto ansiava. Era um grande homem, com reações por vezes mesquinhas. Nunca admitiria o ciúmes que sentia de Salvany, ainda que o sentisse. Isabel lembrava com asco de quando precisou se debater para que ele soltasse sua mão no dia em que resolvera consolá-lo. Não havia dúvidas de que era um grande líder com uma enorme capacidade de trabalho e organização, um excelente médico, um valente que nada nem ninguém amedrontava, um entusiasta, um idealista capaz de dar a vida pelos outros... Mas um homem tosco na hora de lidar com os sentimentos das pessoas e com os próprios. Como podia ser tão duro com Salvany?

“Teria Balmis alcançado sua façanha sem o afinco e a firmeza que demonstrara?”, perguntou-se Isabel. Salvany era o exemplo de que era possível ser útil à causa sem maltratar as pessoas. Pelo contrário, gerando afeto. Balmis justificava tudo pelo bem da humanidade, até mesmo comprar escravas para transportar a linfa ou utilizar garotos com pouca saúde, como o que morreu ao retornar a Porto Rico. Se tinha ciúmes dos que se aproximavam de Isabel, não era por ela como pessoa, mas porque ela lhe era útil — foi o que ela pensou. Agora que o conhecia melhor, Isabel entendia que Balmis não teria uma relação duradoura com nenhuma mulher, tampouco se casaria por amor. Nas relações pessoais, nos sentimentos, era um cavalo que dava coices a torto e a direito. “Não ama as pessoas pelo que são, mas pelo que têm para contribuir”, concluiu Isabel.

No entanto, Balmis a surpreendeu:

— Fique em Puebla com Benito — disse a ela. — Transmitirei o aviso correspondente ao Ministério da Fazenda para que continue lhe pagando o salário de quinhentos pesos anuais. Mas peço que a senhora me ajude a encontrar alguém capaz de substituí-la.

Isabel, desconcertada, viu o céu se abrir.

— Sim..., sim, ajudarei o doutor — disse, balbuciando.

Não esperava aquela reação de Balmis. Sim, o doutor também podia ser surpreendente. Na verdade, Balmis pensou que mais valia liberar Isabel que forçá-la a permanecer na expedição. Sabia que ela dispunha de uma desculpa mais forte que todos os argumentos que ele poderia apresentar: seu filho, Benito. Não se separa a mãe de um filho. Balmis sabia que aquela batalha estava perdida de antemão.