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Isabel levou alguns segundos para reconhecer Balmis. O homem estava descarnado, com a pele acinzentada, as sobrancelhas espessas, o cenho franzido e o cabelo mais ralo e despenteado que nunca. Mas, ao vê-la entrar, o rosto dele se iluminou; abriu um sorriso que dizia tudo. Chegariam a Acapulco a tempo, agora ele tinha certeza.

— Obrigado por sua presteza, senhora Isabel... — disse, deixando escapar um tique de boas-vindas.

Balmis abraçou-a com força. Com o médico, ela nunca sabia se os abraços eram inocentes ou se escondiam algo mais. Mas, dessa vez, não houve resistência quando ela se soltou do abraço. Balmis estava simplesmente agradecido.

— O doutor encontrou alguém para cuidar dos garotos durante a viagem? — perguntou Isabel.

— Ninguém como a senhora. No fim, contratarei vários enfermeiros.

— Então eu irei com eles.

— Até Manila?

— Sim.

— Essa é a melhor notícia que a senhora poderia me dar.

Fez-se um silêncio enquanto Isabel deixava o olhar vagar pela janela com um ar triste.

— Melhor é o mar — disse quase em voz baixa.

— Perdão?

Isabel deu de ombros.

— Nada, não foi nada.

Balmis a analisou.

— Aconteceu algo em Puebla? E seu filho...?

— Benito e Cándido estão muito bem, a cargo do bispo. Eu venho porque... considero meu dever ajudar o doutor no último trecho. Precisamos terminar aquilo que começamos, não é?

Isabel passou os olhos pela sala, onde o material médico se misturava a varas de tecido, mapas, bolas de esparto, caixas e baús. Pôs as mãos à obra, pois era melhor se esquecer de si mesma.

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A presença de Isabel eletrizou o grupo. Era, de fato, a peça que faltava para que a expedição engrenasse outra vez. Em apenas um dia de trabalho, transformou a casa em uma oficina de costura e contratou uma dezena de alfaiates e costureiras que se alternaram dia e noite para confeccionar as roupas das crianças. O próprio Balmis se dedicou a fabricar alcofas para transportar os víveres em uma caravana de mulas.

Quando Isabel foi ao patronato escolher um garoto para vacinar e levar a linfa até Acapulco, a ama informou-a de que Tomás Melitón acabara de falecer. O pequeno Tomás, aquele com orelhas em abano e olhar assustado, que cuspia melhor que um adulto, o único que a chamava de “mamãe” quando sentia medo, o que reagira tão violentamente à vacina que não deixou ninguém no barco dormir, o que acabara de completar quatro anos. Isabel precisou se isolar no gabinete do capelão diretor para se refugiar do olhar dos garotos. Soluçava com tanta intensidade que logo foi sacudida por convulsões. Então, quando se acalmou, sentiu frio e começou a tremer. Era tomada pelas lembranças, como a valentia do garoto ao receber a vacina quando estavam perto de Cuba.

“Não doeu nada”, foi o que ele disse a ela, orgulhoso.

A última coisa que fizera por ele foi transferi-lo para a ala feminina, “bem pouca coisa”, pensou Isabel, consumida pela culpa.

— Um dia, veio ao patronato uma senhora pobre e adotou Gerónimo, seu melhor amigo — contou a governanta. — Ele ficou sozinho e tristonho. Sonhava que alguém viria para levá-lo também, mas não teve jeito... Há dois meses, acordou com febre e calafrios, e atrás de suas orelhas surgiram umas verrugas avermelhadas. Ai, senhora, pensamos que era varíola, que a vacina não tinha surtido efeito nele! Mas não... Era sarampo.

Os pobrezinhos do patronato, inclusos os vinte e seis mexicanos que esperavam para ir às Filipinas, acompanharam o cadáver do pequeno Tomás pelo longo caminho até o novo cemitério, recém-construído fora da cidade, uma medida de saúde pública recomendada por Balmis em seu relatório ao vice-rei.

Isabel não voltou direto à casa-oficina. Pediu que a levassem para depositar flores na tumba do menino. Estava desolada, pois Tomás havia sido durante um curto período como um filho para ela. O vínculo que havia se formado entre ambos era tão sólido que a morte, ao rompê-lo, deixou-a gaguejando e desorientada.

Atribuía a morte de Tomás Melitón à corrupção e à venalidade dos maus vassalos do rei, porque seguiam mantendo os garotos naquele patronato degradante.

— Quando o vice-rei cumpriria sua promessa de colocá-los na Escola Patriótica? — perguntou a Balmis, com os olhos avermelhados.

Balmis ficou sem saber o que dizer. Estava abatido, também era corroído pela culpa. Lembrava dele como um garoto alegre e educado, do tipo que não causava problemas. Havia morrido longe da Espanha por causa de uma promessa frustrada do governo de seu próprio reino.

— Que vergonha — murmurou Balmis enquanto fabricava os alforjes que serviriam para transportar os mexicanos durante os trezentos quilômetros que os separavam de Acapulco.

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Em 18 de janeiro de 1805, uma caravana de trinta cavalos mansos seguida por uma dúzia de mulas que carregavam a bagagem saiu da Cidade do México com destino ao Pacífico. As crianças iam nas alcofas, cada uma de um lado dos pangarés. À altura da serra Madre do Sul, contemplaram a esplendorosa baía de Acapulco, onde cresciam tamarindos, amendoeiras, goiabeiras e mangueiras. Único porto natural de águas profundas em toda a costa oeste da América do Norte, Acapulco nascera como estaleiro, e ali haviam sido construídas as embarcações que ajudaram Francisco Pizarro em sua conquista do Peru, as galés de Cortés que descobriram as ilhas do mar Bermejo, onde eram abundantes as pérolas, e as de Legazpi, que chegaram às Filipinas e de lá tomaram posse em nome do rei, fechando assim o círculo do império onde o sol nunca se punha.

Ancorado nas águas azul-turquesa estava o Magallanes. Tinha os típicos castelos de proa e de popa e um bom comprimento de convés.

— Essa será nossa casa durante os próximos meses — disse Isabel aos garotos.

“Ou nossa tumba”, pensou. Conhecido como o Galeão de Manila, cobria a linha marítima mais longeva da história em uma viagem de ida e volta às Filipinas, que durava um ano e meio e era conhecida pelos enormes riscos e pelas complicações. De longe, parecia um castelo no mar.

Apesar de sua história grandiosa, Acapulco era um povoadinho de poucas e tortuosas ruelas esparramadas ao redor do forte de San Diego, que fora erigido para protegê-la dos piratas ingleses. A vida era de uma prazerosa monotonia, interrompida somente dois meses por ano, quando chegavam ou partiam as frotas da China e do Peru. Então, seus habitantes, na maioria negros e mestiços, espreguiçavam-se e viam a aldeia se transformar em uma grande feira de comércio conhecida no mundo inteiro. Em suas ruas, os membros da Real Expedição Filantrópica da Vacina se viram rodeados de viajantes da Ásia e do Peru, de traficantes de ouro e prata, de comerciantes atraídos pelas sedas do Oriente, pelas pérolas e especiarias, pelos objetos laqueados, pelo arroz ou pela porcelana que trocavam por milho, prata, pimenta ou tomate do México. Os chineses transportados em liteiras abriam caminho em meio a uma multidão de indígenas andinos cobertos por chapéus de ponta alta, de religiosos de todas as ordens imagináveis, de índios vendendo ervas medicinais, de soldados, marinheiros, estivadores, prostitutas, curandeiros, charlatões e malabaristas.

Enquanto Isabel e os garotos se instalavam no casario do governador do porto, Balmis foi diretamente ao encontro do capitão Ángel Crespo para negociar o preço das passagens. Encontrou-o em uma casa de jogos, sentado no chão e recostado na parede com um copo de pulque na mão.

— Estava com medo de não chegar a tempo... Por que o capitão anunciou a saída de maneira tão apressada?

— Porque estamos sempre lotados, assim não precisamos recusar os que não chegam a tempo.

Cuspiu no chão e prosseguiu.

— Comunico ao doutor que nos atrasaremos três dias, porque estou à espera de frades capuchinhos que vêm da Guatemala.

— Bom, isso nos dará tempo para vacinar.

Balmis expôs as duras e cruéis penúrias sofridas pelos garotos durante a travessia do Atlântico e pediu a ele que os garotos da Nova Espanha encarregados de transportar a vacina até o arquipélago filipino fossem comodamente alojados.

— Já disse ao doutor que o galeão está cheio.

— Mas temos preferência, por ordem direta de sua Majestade.

— Eu respondo ao vice-rei, é ele meu superior.

— Sim, eu sei. Antes o capitão nos aceitou sem problemas, então disse que não podia fazer nada sem a permissão do vice-rei.

— Poder, sempre se pode.

Foi então que Balmis se irritou.

— Bem, quanto é a passagem?

— Quinhentos pesos por pessoa.

Era uma quantia exorbitante, que deixou Balmis estupefato.

— O capitão não pode cobrar dos garotos o mesmo que cobra dos adultos.

— Ocupam o mesmo espaço; arrisco a dizer que comem mais que os adultos, pois estão em fase de crescimento.

— Não, não é possível. O que me pede é... é descabido.

— É o preço. Ninguém vai obrigá-los a embarcar.

“Esse é da mesma laia que Iturrigaray”, disse Balmis a si mesmo. “Outro cínico.”

— Tem que me dar um desconto pela passagem dos garotos, caso contrário...

— Volte amanhã, doutor — interrompeu Crespo. — Verei o que posso fazer conforme os lugares que sobrarem.

No dia seguinte, Balmis fechou negócio depois que Crespo aceitou reduzir a trezentos pesos o preço da passagem de cada garoto. Contrariado, Balmis pagou onze mil e trezentos pesos — uma fortuna; fez isso porque não tinha outra opção. Sentia-se estafado, convencido de que parte daquele dinheiro acabaria nos bolsos do vice-rei.

Três dias antes do embarque, recebeu uma última mensagem de Iturrigaray, que ordenava que levasse consigo todo o equipamento da expedição e retornasse à Europa direto das Filipinas. Informou-o de que o Erário real não podia cobrir os gastos de seu retorno ao México. Caso Balmis decidisse voltar à Nova Espanha, teria de fazê-lo por conta própria. Essa foi a despedida “oficial” de Balmis, sem nenhum reconhecimento nem qualquer demonstração de apreço. O vice-rei mandava que deixasse o reino e não regressasse.

Já estava acostumado ao escárnio do vice-rei e a levar coices das mais altas autoridades. Mas aquele último golpe foi especialmente sutil, porque atingiu-o onde mais doía.

— Em Manila, nos separaremos em definitivo — disse a Isabel. — A senhora retornará com os garotos da Nova Espanha e reaverá seu filho. Eu voltarei diretamente à Europa de algum porto da China.

Sentiu uma pontada no coração. Seu inimigo fizera picadinho de seu sonho parte infantil, parte disparatado de voltar a Madri com Isabel para compartilhar a glória da expedição.

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Embarcaram em 7 de fevereiro de 1805, mas a falta de vento atrasou a partida. Trancado em sua cabine, Balmis permaneceu o dia inteiro sozinho, pensando, rememorando a trajetória, fazendo um balanço da expedição. Apesar das decepções, das humilhações do vice-rei, da insensibilidade do capitão e dos enfrentamentos com os servidores corruptos do rei, podia ficar orgulhoso do que conseguira na Nova Espanha. Em pouco mais de sete meses, ele e seus ajudantes visitaram as principais cidades e muitos dos povoados do vice-reinado. Haviam impulsionado a criação de uma rede de clínicas gratuitas sob a direção de autoridades civis e religiosas e de médicos bem instruídos a respeito das últimas técnicas de vacinação e conservação da vacina. Um sistema de organizações locais interligadas garantia sua existência por meio da linfa conservada e dos portadores humanos. Quantos teriam vacinado? Cinquenta mil, cem mil? Que diferença fazia? O importante era a infraestrutura estável que ali deixaram: as equipes de vacinação, as redes de centro e os espaços sanitários onde era aplicada a vacina. “Não há dúvidas de que padecemos muitíssimo nessa última visita e de que se fragilizou a saúde de alguns dos que haviam resistido às penúrias da última viagem”, escreveu Balmis ao ministro Caballero a bordo do Magallanes, um dia antes de zarpar. “Faltam-me recursos para explicar o mérito tão notável de todos os indivíduos da expedição, entre os quais merece especial atenção Isabel, que se distingue pelo cumprimento de seus deveres e pelo amor e pelo carinho que dedica às crianças, todas, adotando-as como filhos; é com ânimo varonil que ela vai com a expedição às Filipinas para não as perder de vista, enquanto seu filho e Cándido permanecem em Puebla sob os cuidados do bispo.” Terminava a carta pedindo, “a fim de justificar ao público a correção com que fiz valer minha comissão, atendendo aos serviços prestados e para robustecimento de minha autoridade, que se me conceda a Ordem de Carlos III, dispensando-lhes as provas, ou melhor, as honras do Conselho das Índias”. O pedido não foi atendido, provavelmente por causa de um relatório do vice-rei em que este tentou se esquivar da responsabilidade, descrevendo Balmis como uma vítima de seu próprio “atropelamento e capricho”.