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Enquanto os garotos corriam pelo barco com vontade de descobrir tudo, Isabel se instalou em sua cabine — havia conseguido uma particular — e começou a escrever. Tinha medo de morrer na viagem, e a curiosidade pelo desconhecido já não atiçava sua curiosidade como na partida de La Coruña. Vivia a perspectiva de passar outra temporada naquele barco como uma penitência, como uma passagem pelo inferno. Mas fazia isso para se redimir de seus pecados, ainda que seu ânimo fraquejasse. Como não podia falar com ninguém nem revelar a ninguém os segredos de seu coração, antes que o barco zarpasse decidiu confidenciar-se a um velho amigo a quem devia uma carta: “Aproveito minha curta estadia em Acapulco, de onde partem os barcos-correios em direção ao Peru, para responder a sua missiva de Lima e lhe enviar meus mais sinceros desejos de recuperação”, escreveu a Salvany. “Estou a ponto de partir rumo às ilhas Filipinas. É uma viagem longa e perigosa e, se Deus me permitir sobreviver, retornarei a Puebla dentro de alguns meses para reencontrar meu filho, que ficou sob os cuidados do bispo. O doutor tem razão quando diz que acreditamos ter vencido ao obtermos um triunfo, mas que uma nova batalha sempre se apresenta. A batalha em que me encontro é uma batalha perdida. Mas o coração não conhece triunfos ou derrotas. Por isso, vou até o outro lado do mundo. Faço essa confidência pela amizade que me une a sua pessoa, a quem admiro mais que ninguém nesta expedição. Desejo-lhe o maior dos sucessos, que tenho certeza que o doutor já alcançou, e que no fim do caminho encontre a saúde de que tanto precisa e o sossego que tanto almeja. Enquanto isso, seguirei seu conselho, o de aceitar a luta, a dúvida, e continuarei avançando, superando um obstáculo após o outro, ainda que haja momentos em que isso não pareça possível...”

Era uma carta crítica e clara ao mesmo tempo, que chegou às mãos de Salvany muito tempo depois, quando já havia realizado as campanhas mais difíceis na cordilheira andina, onde deixou uma magnífica impressão. As administrações municipais de Puno, Oruro e La Paz agradeceram-no pelo trabalho realizado e solicitaram que fosse dado a ele o título de secretário honorário. Mais envolvido com a população indígena que Balmis, por considerá-la protetora e acolhedora, Salvany havia avançado muito lentamente devido à difícil topografia e porque se interessava pelos conhecimentos das populações autóctones, por seus costumes e seus modos de viver.

Recebeu a carta em La Paz, primeira cidade da Audiência Real de Charcas, pertencente ao vice-reinado de Buenos Aires, situada a três mil e seiscentos metros de altitude. Havia se determinado a alcançá-la, apesar da recomendação do médico de Arequipa que tratou de sua afecção recorrente nos pulmões. Havia alertado-o de que, não sendo possível uma cura radical de tão cruel doença, a viagem seria demasiado penosa. Mas Salvany fez pouco caso das recomendações e continuou seu percurso, cruzando vales, cordilheiras e rios e se expondo a sol forte, chuvas e nevascas e a mudanças de temperatura que provocaram nele uma grave afecção reumática. Além disso, ao chegar a La Paz, devido à altitude, começou mais uma vez a sangrar pela boca. Tinha sempre à mão o lenço vermelho com que lhe presenteara Isabel, o qual apertou com força ao terminar de ler a carta. Não queria se deixar levar pela emoção. Entendeu o que não era dito explicitamente, que o coração de Isabel estava sofrendo por um amor que não tinha nada a ver com ele. Como lhe parecia ingênuo agora o sonho a que se havia aferrado tanto, reunir-se com ela em um lugar ensolarado e de clima seco onde se dedicariam a curar pessoas! O tempo era uma onda gigantesca que arrasava tudo, a saúde, o amor, e agora varria suas últimas ilusões. A carta levou-o de volta à realidade de homem doente, solitário e à mercê de uma natureza hostil, enfrentando a árdua tarefa de salvar um continente de um mal bíblico.

Depois de ler a carta, seu estado piorou. Perdeu o apetite e precisou chamar um médico.

— O doutor se queixa de padecer de febres terçãs, crupe e o que mais?

— Tenho dor no peito. E também dói aqui — disse, apontando para o coração.

O médico o auscultou.

— Aí é o coração.

— Também está doendo.

— Vejamos, vamos distinguir os sintomas falsos dos verdadeiros...

— Todos são verdadeiros, doutor.

— Não duvido de sua sinceridade, Deus me livre e guarde, mas o doutor sabe, como médico, que alguns sintomas se devem mais ao estado de espírito que às afecções... As febres terçãs se devem provavelmente à malária.

— Sim, e crupe à difteria.

— E a dor no peito à pneumonia. Mas o coração bate com regularidade — disse, colocando o estetoscópio sobre a mesa.

— No entanto, sinto dor.

— Deve ser esgotamento geral.

— Deve.

O sentimento de solidão extrema em que mergulhara com a leitura da carta era a origem de sua dor, mas não podia dizê-lo ao médico.

Na verdade, Salvany se deu conta de que havia muito território a percorrer, de que não poderia seguir, tampouco retornar à Espanha. Estava em um beco sem saída. A única solução que lhe restava era obter um cargo público na América, escolher aquele lugar de clima temperado, saudável e moderadamente seco para passar o resto de seus dias, sozinho, mas com dignidade, sem estar vinculado à Expedição Filantrópica. Além de ter perdido a visão de um olho no rio Magdalena, havia deslocado o pulso em seu trânsito pela cordilheira e precisou imobilizar.

— Não me serve para outra coisa senão para vacinar e escrever — dizia.

De modo que escreveu ao ministro José Caballero, solicitando que seu pedido fosse concedido, pois ele se encontrava tão doente que lhe seria impossível retornar à Europa. Mas a resposta não chegava nunca. Ponderou que, para a Corte, alvoroçada com a desastrosa situação política provocada por uma possível invasão de Napoleão, seu caso não merecia consideração. No entanto, continuou enviando escritos em tom cada vez mais desesperado, insistindo na necessidade de que a monarquia lhe destinasse algum cargo de relevância que lhe permitisse recuperar a saúde e endireitar sua vida.

O que fazer diante do silêncio da Corte? O que fazer se renunciasse ao trabalho na expedição? Deixar de receber o salário e morrer lentamente de fome em alguma cidade do altiplano? Descer até a costa e suplicar por um emprego na Universidade de Lima? Ficou alguns dias pensando em sua situação. Deu-se conta de que já não podia ignorar o mal que o assolava. Quanto lhe restava de vida? Uma semana, um ano, dois, dez? Havia se recuperado tantas vezes que se acostumara a conviver com a doença, como se fosse uma companheira caprichosa e cruel, mas que, quando chegava ao extremo, sempre o perdoava. Dava por certo que, após uma crise, ressuscitaria. Sua vontade de viver, a paixão por seu trabalho, seu afinco e a curiosidade infinita que animava seu espírito, tudo aquilo que constituía o motor de sua existência incitava-o a seguir em frente. “Até quando?”, perguntava-se agora. Não era melhor continuar com o trabalho profilático que estava realizando que se afastar do mundo e esperar a morte? Se já não existia a possibilidade de um reencontro com Isabel, que sentido havia em se retirar para um lugar ensolarado e seco? Não era melhor ir até o final, morrer salvando os demais, dar a vida em prol da saúde pública? De La Paz, com sua mão deformada, escreveu uma carta para a Espanha informando que continuaria com a expedição e anunciando que se dispunha a seguir até Buenos Aires.