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Passaram-se mais de dois meses desde a partida de Acapulco, e a visão das colinas verdes rodeando intramuros, a cidade amuralhada, o coração de Manila, onde viviam e trabalhavam as famílias abastadas e os oficiais reais, os milhares de palmeiras em praias de areia branca, as canoas dos nativos — homens risonhos de pele acobreada — que rodeavam o galeão, o ar carregado do cheiro de especiarias, toda essa visão deixou os passageiros encantados. Isabel estava satisfeita porque os vinte e seis garotos haviam chegado vivos, mas, quando viu o alojamento que o governador havia preparado para eles, sentiu seu ânimo desmoronar. Era um velho edifício extramuros, em uma rua que era na verdade um barral nauseabundo, próximo ao portão chinês de Parián, na parte baixa e insalubre da cidade, onde chineses, japoneses e malaios conviviam com nativos e colonos espanhóis pobres. Como a atormentava a saudade! O que sentia não era falta de sua terra, a Galícia, mas uma falta terrível de seu filho, da vida que levara em Puebla, da terra que a havia acolhido e que agora sentia ser sua. De repente, a perspectiva de passar vários meses naquela cidade tão diferente de todas as que havia conhecido era um fardo pesado demais.

Precisaram da ajuda do deão da catedral, dom Francisco Díaz Durana, e do sargento-mor de milícias para encontrar um alojamento melhor em um convento intramuros, cujo terraço amplo coberto de folhas de palmeira proporcionava um excelente dormitório comunal. Dali, entre o projeto quadriculado das ruas, similar ao de outras cidades fundadas pelos espanhóis na América, podiam discernir as altas torres, o forte colossal e seus canhões, a magnífica catedral e as igrejas, os palácios privados e públicos, as praças, os hospitais e a Universidade Real e Pontifícia de Santo Tomás, a primeira universidade da Ásia. Escutavam os pregões da rua, algumas conversas em línguas desconhecidas e o ruído de carruagens sobre os paralelepípedos. A área intramuros era o centro do governo, da educação e do comércio das Filipinas; ao mesmo tempo, era o símbolo da força do poder real.

Em 16 de abril, no dia seguinte à chegada, Balmis vacinou no palácio os cinco filhos do governador. Fez isso com reticência, porque achou que teria sido mais eficaz realizar essas vacinações em um lugar público. Mas o governador se opôs; misturar-se com o povo não fazia parte de seus costumes. Balmis, já familiarizado com a tibieza das autoridades, e mesmo com sua franca oposição, concordou. Então, deslocou-se até uma sala da direção, oferecida pelo deão, e começaram a vacinar o povo. Mesmo sem apoio concreto do governador ou do bispo, que achavam que o procedimento não servia para nada, o sucesso da campanha foi imediato e duradouro.

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Quatro meses depois, haviam inoculado nove mil pessoas. Os membros da equipe eram forçados a se revezar, porque sempre havia alguém doente. Isabel foi acometida por uma disenteria que a deixou de cama por mais de duas semanas, sob os cuidados das freiras do convento, que também cuidavam dos garotos. O clima quente e insalubre do trópico e as tormentas dos mosquitos faziam vítimas. Quando a campanha de Manila chegou ao fim, Balmis enviou seu sobrinho, o enfermeiro Francisco Pastor, e o enfermeiro Ortega para percorrer as ilhas próximas, onde a varíola havia causado muitos estragos. No sul, nas ilhas Visayas, aconteceu uma coisa que gerou surpresa e comoção. A população de lá estava em guerra com os espanhóis desde o início da conquista, mas, ao ver a chegada Francisco Pastor e de Ortega e saber que eram enviados de seu soberano com o propósito de levar a eles a saúde e a vida, os chefes rebeldes depuseram as armas. O momento da visita não poderia ter sido mais acertado, pois os habitantes estavam sendo dizimados pela epidemia mais virulenta que já haviam testemunhado.

Quando Balmis terminou de estabelecer em Manila o regulamento para a perpetuação do fluido, também ficou doente, como se seu corpo decretasse o fim de sua missão. A disenteria sanguinolenta havia se tornado crônica. Acometido pela febre alta, ficou vários dias entre a vida e a morte. Em sua agonia, dizia coisas desconexas que tinham a ver com todas as batalhas travadas para organizar e financiar a expedição, as decepções em Porto Rico e na Nova Espanha, a estafa do capitão Crespo... Isabel passava os dias no quarto da diretoria, onde haviam instalado o médico. Era a melhor enfermeira que poderia ter, a mais preparada. Buscava acalmá-lo dizendo que a missão seguia em frente sob a responsabilidade dos enfermeiros e dos praticantes, enquanto passava um pano molhado com chá de camomila na testa, à espera de que um galeno chegasse para fazer uma sangria ou administrar um purgante de dormideira. Mas nem as sanguessugas nem as beberagens nem os medicamentos surtiam efeito.

Chegou a ficar tão debilitado que as freiras solicitaram a presença de um cura para lhe dar a extrema-unção. Mas Isabel se opôs taxativamente, porque sabia que isso implicaria o desmoronamento absoluto do espírito combativo de Balmis. Haviam percorrido meio mundo com crianças para salvar milhares de pessoas, e ainda não era o momento de o diretor sair de cena. Sua experiência com doentes lhe dizia que Balmis tinha a chama da vida acesa em seu interior. Só o que precisava ser feito era cuidar dele, ter sempre à mão o cozido das folhas de goiabeira, dar-lhe limonada concentrada com fécula, alimentá-lo com caldo de espinafre fervido com alho, rezar e esperar que se curasse daquele primeiro golpe da velhice, e não afundar sua moral assustando-o com a morte. A firmeza de Isabel surpreendeu as freiras — algumas se escandalizaram –, porque até então ela se mostrara acomodada, até mesmo flexível.

Durante o mês de maio, de fato, Balmis voltou pouco a pouco à vida, tal e qual pressentira Isabel. Recuperou forças a ponto de conseguir conversar um pouco e discorrer sobre o futuro. Estava puro osso, tinha os olhos febris e a respiração cansada. Enquanto ela o abanava — era o pico da estação quente –, Balmis se preocupava em como organizar o retorno com os garotos ao México. Isabel tinha uma vontade imensa de retornar, ainda que a ideia de viajar novamente no galeão a espantasse.

— A senhora não precisa se preocupar, porque Crespo não é o encarregado pelo retorno. Será outro capitão, de quem me falaram coisas boas. E o doutor Gutiérrez irá com a senhora.

Fez-se um silêncio. Isabel olhava pela janela; o vento movia as palmeiras e, no céu, nuvens espessas e escuras estavam prestes a despejar um aguaceiro.

— Uma vez na Nova Espanha, o que a senhora fará, voltará a trabalhar no Hospital de Puebla?

— Não sei — respondeu Isabel.

Era verdade. Não sabia o que seria de sua vida. Ela passara todos aqueles meses ruminando sobre o futuro, sem ver uma saída clara. Por um lado, queria que seu filho estudasse o máximo de tempo possível; por outro, sabia que não poderia morar em Puebla. Aquela viagem não servira para esquecer dom Ricardo. Pelo contrário. Apegou-se à sua memória como um náufrago que agarra uma madeira flutuante. Pensava vê-lo nas sotainas dos prelados que entravam e saíam dos conventos e das igrejas de intramuros. Consolava-se ao pensar que pelo menos havia conhecido o amor uma única vez na vida, porque sua aventura juvenil com Benito Vélez e seu amor platônico com Salvany já estavam tão longe que não os considerava verdadeiros. Aquela caldeira de felicidade com o bispo de Puebla agora cobrava seu preço, fazendo-a suportar o peso de enfrentar sozinha seu destino.

— Volte à Espanha e reclame sua parte da glória, pois a senhora merece.

— A La Coruña?

— Não, a Madri, onde poderá arranjar uma boa acomodação e trabalho em um hospital. E onde Benito e Cándido continuariam os estudos.

— Na Espanha, sempre serei uma desencaminhada.

— Não. O que a senhora fez pela humanidade a redime, já lhe disse muitas vezes. Tem de acreditar em mim.

O grandiloquente Balmis não conseguia convencê-la. Como poderia, se desconhecia seu segredo? Mas conseguia obrigá-la a pensar. Balmis insistiu tanto que ela acabou dizendo:

— Deixe-me pensar, doutor. Talvez eu acabe em Madri.

Quanto mais a conhecia, mais Balmis a admirava. Demorou para se dar conta de que era uma companheira perfeita, com a qual tinha muita cumplicidade e que, além disso, aguentava seu humor encrespado, seu caráter tirânico, sua fala enfática, suas injustiças e seu autoritarismo. Era tão egocêntrico que se convenceu de que ela estava deslumbrada por ele e de que a convenceria a voltar à Espanha consigo.

— Precisa pensar em mudar de clima, doutor — disse-lhe Isabel. — Isso é o mais urgente. Não deve permanecer muito tempo em Manila. Com as monções, a temperatura vai subir ainda mais, e isso não lhe convém.

— Esse clima não convém a ninguém. Ouvi dizer que no sul da China o ar é temperado e mais seco. Partirei assim que conseguir ficar em pé... Talvez lá a medicina local consiga fazer com meu corpo o que nossa ciência não conseguiu.

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Quatro semanas depois, sentindo-se melhor, o otimismo retornou e Balmis começou a ver que sua estadia na China poderia ser outra excelente oportunidade para difundir a vacina e até mesmo para aprimorar os interesses comerciais e políticos espanhóis na região. Para isso, só precisava de três ou quatro garotos e de um pouco de dinheiro da Corte. Balmis pediu autorização ao governador, e este a concedeu ipso facto. Desejava que deixasse Manila tanto quanto Iturrigaray havia desejado que saísse do México. As relações azedaram quando Balmis insistiu que o governador, em sua condição de intendente da Fazenda real exigisse os oito mil e seiscentos pesos do capitão Crespo pelo abuso no custo das passagens, além de uma quantia para repor o vestuário dos garotos mexicanos que deviam retornar à Nova Espanha. Aguilar fugiu do assunto.

— É cedo demais para isso, porque o próximo galeão só sairá daqui uns meses.

A partir daquele momento, só se comunicaram por cartas, reproduzindo o padrão que havia se estabelecido entre Iturrigaray e Balmis, no México. Envolveram-se em uma troca de mensagens nas quais Balmis insistia em suas reivindicações, que julgava justas e necessárias, e Aguilar recomendava que se dirigisse a seus superiores, ou seja, a ele. Lembrou-o de que era o único e legítimo representante do poder supremo do governo do rei da Espanha naquelas ilhas — e, como tal, era o chefe em todas as ordens da administração pública — e que se negava a reclamar qualquer quantia ao capitão Crespo. Repetia-se o conflito entre o enviado do rei, Balmis, e o representante do rei, o governador. Como já era de costume, antes de deixar Manila, na carta que o médico escreveu à metrópole, não omitiu reprimendas contra Aguilar por não tomar qualquer providência para convocar a população e recomendar a vacina. Também arremeteu contra o bispo, antes de concluir que “a única coisa que o governador achou propícia foi me conceder um passaporte para seguir a Macau, de lá a Cantão e finalmente à Europa, em uma embarcação neutra, deixando a expedição a cargo de dom Antonio Gutiérrez, meu ajudante, e de Isabel Zendal, para que retornem ao México e depois à Espanha”. O governador se recusou a usar sua autoridade para encontrar os três garotos, alegando que era um problema do diretor da expedição. Foi o cura da paróquia de Santa Cruz quem arrumou três jovens para conduzir o fluido até a China. Antes de partir, passou seu cargo de diretor a Antonio Gutiérrez, aconselhando-o a encomendar todo o necessário para a viagem de retorno, incluindo as reposições para a enfermaria e roupas para os garotos, e cobrar tudo da Fazenda real de Manila. A Isabel, deu instruções para que entregasse os vinte e seis garotos ao vice-rei Iturrigaray para que este os devolvesse a seus respectivos pais.

Quando chegou a hora de embarcar, dirigiram-se a um pequeno mole no porto. Enquanto os comerciantes chineses terminavam de estivar a embarcação que levaria Balmis e os três garotos filipinos até a fragata Diligencia, ancorada na baía, Isabel permaneceu ao lado do médico.

— Não se esqueça de tomar a água de arroz. Coloquei cânfora na sacola dos medicamentos para que o doutor misture com álcool e unte o ventre quando tiver um de seus ataques. E erva-cidreira para infusões. O doutor sabe que convém beber bastante.

— O que será de mim sem a senhora?

— O senhor se cuida muito bem sozinho, doutor.

— Que... quero lhe agradecer...

Interrompeu suas palavras piscando forte.

— ...por ter afugentado aquele cura...

— Que cura?

— Aquele que vinha para me dar extrema-unção.

Isabel riu.

— O senhor ainda tem muitos combates pela frente, doutor.

O médico olhou para ela com ternura, como nunca havia feito antes.

— Acha que é possível combater sozinho? Não precisamos de muitos para vencer uma guerra?

Isabel se limitou a sorrir. Então, disse:

— Eu também preciso agradecer-lhe; não me perdoaria se deixasse de fazê-lo caso, por quaisquer circunstâncias, não voltemos a nos ver.

— A senhora não tem nada que me agradecer — disse Balmis.

— Sim, doutor, obrigada. Agora tenho uma vida, uma vida que é minha.

O médico fez um gesto com a mão, como que fazendo pouco caso do que havia ouvido. Não podia suspeitar como era atribulada e complicada aquela vida da qual Isabel falava. Ele permaneceu calado, sacodido por uma série de tiques que traduziam sua emoção. Subiu no barco e se virou para a ela.

— Eu também quero lhe dizer uma coisa.

Custava-lhe encontrar as palavras.

— Quero que a senhora saiba…

Ele a encarava, embora piscasse com força.

— Quero que a senhora saiba que, ainda que esteja fora do alcance de meus olhos, nunca estará longe de meus pensamentos.

Isabel sabia o esforço sobre-humano que Balmis fizera para soltar uma frase como aquela. “A vida muda todo mundo”, pensou ela, “ainda mais quando era tão intensa, tão concentrada como na viagem da expedição”. Ela deixara de ser uma mulher submissa e aprendera a se afirmar; Balmis, a enfrentar seus sentimentos.

— Espero vê-la em Madri — disse ele, já no barco, enquanto se afastava do cais.

— No ano que vem, se Deus quiser.

— Deus vai querer… Deus vai querer… — Foi o que ela escutou Balmis dizer de longe, acenando com a mão.

Era 2 de setembro de 1805 quando a fragata Diligencia deixou a baía de Manila. Isabel permaneceu no cais um longo tempo, até que a embarcação desapareceu na linha do horizonte.

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Depois de uma agradável travessia de sete dias, Balmis estava em frente à costa da colônia portuguesa de Macau. O vento refrescou subitamente, e, como soprava de proa, a embarcação não conseguiu alcançar a baía. O mar se transformou em um imenso caldeirão efervescente. Em poucos segundos, foram atingidos por um tufão, e o vendaval ficou tão violento que desprendeu a vela-mestra e a enxárcia, destroçou os botes salva-vidas, arrancou o pau do traquete e varreu do convés vinte marinheiros, cujos corpos foram engolidos por um mar esbravecido. Trancado em sua cabine, Balmis achou que tampouco sobreviveria, que era questão de horas, talvez de minutos, até que se abrisse na fragata uma entrada de água e ela fosse a pique. Mas, no fim, a embarcação ficou à deriva, desgovernada. Dessa vez, o médico percebeu a ironia da vida: ele, que havia partido com o propósito de restabelecer sua saúde quebrantada, viu-se diante da morte. “É o fim”, disse a si mesmo. Passaria a fazer parte das estatísticas de desaparecidos em naufrágios nas viagens transoceânicas. De repente, toda a glória que merecia, pela qual ansiava e que esperava receber ao retornar à Espanha, pareceu-lhe insignificante. A vaidade não tinha vez diante do além. Para combater o medo, refugiou-se em pensamentos com Isabel e rezou para que não acontecesse com ela o mesmo em seu regresso à Nova Espanha. Amaldiçoou-se por não ter dito o quanto precisava dela. Agora se dava conta, com a nitidez que tudo adquire aos olhos da morte, do quanto a amava.