Em 14 de agosto de 1806, Francisco Xavier Balmis chegou a Lisboa no navio Bom Jesus d’Além, procedente de Macau e Santa Helena. Chegava carregado com mais de trezentos desenhos que reproduziam a flora do sudeste asiático e com dez caixas contendo as plantas medicinais mais admiráveis da China, a fim de transplantá-las e enriquecer o Jardim Botânico Real de Madri.3 Também levava consigo artigos que comprara em Cantão com planos de revendê-los na Espanha a fim de recuperar os oitenta mil reales que desembolsara para garantir um fim satisfatório para a viagem: dois quintais de chá, vinte bandejas — oito de marfim — e seis baús com potes de porcelana. O que não tinha era dinheiro, nem sequer para chegar até Madri. Procurou o embaixador da Espanha em Portugal, que lhe adiantou quinze mil reales para pagar ao capitão do barco — cobria o preço de sua passagem e os gastos para alugar uma carruagem e retornar à capital da Espanha.
Essa viagem foi outra odisseia. Sozinho para cuidar dos três garotos filipinos aterrorizados, quase sem forças e mal conseguindo se agachar, Balmis conseguiu, não obstante, vacinar um dos garotos durante o tufão que arrebentou a fragata Diligencia. Passou o resto do tempo implorando misericórdia divina para que não fossem mortos por uma onda gigantesca. Depois de seis dias à deriva, o vento amainou, mas não a soçobra dos sobreviventes, porque surgiu um novo perigo: piratas e ladrões chineses que singravam aqueles mares após as tormentas para saquear os restos dos naufrágios. De novo, a sorte estava a seu lado. Balmis era um homem de sorte — um barco pesqueiro chinês o resgatou e transportou com a tripulação que havia sobrevivido. Em Macau, foram recebidos de braços abertos pelo bispo de Goa e pelo juiz ouvidor dom Miguel de Arriaga da Silveira, que se voluntariaram para receber a vacina — exemplo que se espalhou entre o povo e influenciou centenas de homens, mulheres e garotos a fazer o mesmo. Ao cabo de três semanas, firmemente estabelecida a vacina na colônia lusitana, Balmis decidiu se dirigir a Cantão, onde existia a ameaça de epidemia. Encontrou um jovem chinês para carregar o vírus, pagou trezentos e onze pesos do próprio bolso para os cobrir os gastos e comprar roupas para o menino e entregou aos pais uma pequena quantia em dinheiro. Mas a recepção em Cantão não foi nada parecida com a de Macau. Ali, precisaram aguentar mais uma vez duros enfrentamentos com os responsáveis pela Companhia Real das Filipinas, que haviam recebido informações contrárias a eles enviadas pelo governador Aguilar desde Manila. Durante o mês e meio que durou sua estadia, só conseguiu vacinar vinte e duas pessoas. Retornou a Macau em 30 de novembro de 1805 para embarcar, alguns dias mais tarde, no Bom Jesus d’Além rumo a Lisboa.
Depois de completar uma volta ao mundo, regressava a Madri com saúde debilitada, mas com a profunda satisfação de missão cumprida. O ambiente nas ruas era o mesmo de sempre, alegre e agitado, como se o povo preferisse esquecer as ameaças da França e a situação de pobreza e degradação em que o império vivia. Balmis sabia, pela experiência que tivera com os poderosos, que naquele império o sol finalmente iria se pôr.
Acabara de fazer três anos que saíra de Madri com os garotos do orfanato, mas para ele ao subir as escadas de sua casa, suando profusamente devido ao calor tórrido que ainda recaía sobre a capital, era como se tivessem passado séculos. Ninguém esperava para recebê-lo, e ele tampouco esperava alguém. Não nutria ilusões sobre seus compatriotas, resistentes a reconhecer e premiar os serviços prestados à comunidade. Na solidão de sua casa, lembrou-se das acolhidas triunfais que vivera durante a viagem. Como sempre, as melhores lembranças são as que mais perduram na memória. Lembrou-se de Isabel. Sentia falta dela como jamais pensara que pudesse sentir de alguém, com dor. Com uma profunda saudade, termo usado pelos portugueses do barco. Saudades de sua companhia, bálsamo para sua alma ferida, e do prazer imenso de contemplar sua beleza plácida.
Viveu seu dia de glória em 7 de setembro de 1806, quando sua carruagem entrou pelos portões de acesso do palácio de La Granja de San Ildefonso, onde Carlos IV passava o verão fresquinho. Fazia um dia esplêndido, com a temperatura agradável das montanhas no final do estio. A intensidade dos problemas internos e externos de que padecia a Espanha se fazia notar no clima do palácio, onde grupos de cortesãos cochichavam nos cantos como se estivessem conspirando. Reinava um ambiente de tensa calma. Balmis seguiu acompanhado de um gentio de câmara por intermináveis corredores e salões solitários até chegar ao umbral do salão do rei, onde um arauto anunciou sua chegada: “Dom Francisco Javier Balmis y Berenguer, diretor da Real Expedição Filantrópica da Vacina!”. De repente, seu coração acelerou, suas pernas tremeram, pois ali estavam o rei da Espanha, a rainha María Luisa, o filho Fernando, príncipe de Astúrias, o ministro Godoy, outros ministros — entre os quais discerniu José Caballero — e os ilustres membros do Protomedicato e cirurgiões de câmara. Todos o aplaudiram demoradamente, de pé, rendendo a ele uma merecida homenagem, que outros quiseram roubar dele, a começar pelo vice-rei Iturrigaray. Aquele momento compensava todas as amarguras da aventura. Pensou em Isabel. Como teria gostado de compartilhar esse dia com ela.
Aproximou-se para beijar a mão do rei, mas o monarca segurou a de Balmis entre as suas.
— Não fazeis ideia de como me sinto comprazido pelos resultados terem excedido às expectativas que todos depositamos nesse projeto. Graças a vós.
Balmis respondeu com um tique e uma contração do pescoço.
— É uma hon... honra, Majestade. Tenho o prazer de proporcionar-vos outra glória: vosso súdito aqui presente — piscou com força — foi o primeiro, em vosso nome, a introduzir a vacina no Império Chinês.
O augusto soberano se reclinou pouco, visivelmente satisfeito.
— E como conseguistes?
— A notícia chegou a mim pouco depois de ter partido de Cantão. Agentes da British East India Company estabeleceram uma clínica para ministrar a vacina, e o fizeram seguindo as instruções que deixei.
— É um grande orgulho para vós. E um presente que haveis deixado aos ingleses. Eles não merecem.
— Não, claro que não. Eles descobriram a vacina, mas não a maneira de distribuí-la. O que não vos disse é que em Cantão os britânicos cobram por inoculação.
Carlos IV pôs-se a rir.
— Ah, esses filhos da Grã-Bretanha... sempre tão pérfidos! Um dia se darão conta de que cobrar pela vacina vai contra seus próprios interesses, que não são diferentes dos nossos, pois todos buscamos erradicar o mal.
Balmis estava mais sereno e conseguia controlar seus tiques. Em um tom confiante, disse ao rei:
— A grande dificuldade, Majestade, foi engajar os demais, entusiasmar servidores nem sempre leais a vossa Majestade... Muitos se deixam levar pela ganância, não pelo bem público.
O rei assentiu com a cabeça.
— Conheço o problema... até bem demais. É uma questão difícil de solucionar. Mas não se preocupe — continuou o monarca —, pois a justiça será feita.
Balmis teve a impressão de que o rei dizia aquilo sem convicção. No fundo, ambos tinham consciência de que a monarquia estava perdendo o controle do império e de que não havia força no mundo capaz de impedir isso. Carlos IV mudou de assunto.
— O que me haveis contado tem um significado simbólico — disse a Balmis. — Partiram para lutar contra a varíola no extremo oeste do continente asiático, lá onde, séculos atrás, a técnica da variolização começou a ser difundida até chegar a nós.
— De fato, Majestade.
Balmis ficou surpreso com o quanto o rei era culto.
— Haveis fechado o círculo, Balmis. Eu vos felicito de coração.
— Cumprimos as designações do rei como vassalos fiéis.
Era a primeira vez que Balmis mencionava o resto dos correligionários. Na verdade, não pensava em Salvany nem em Grajales nem em Gutiérrez. Só em Isabel.
Depois da emoção inicial, exacerbada pela pompa e pelo decoro, Balmis recobrou a lucidez.
— Majestade, tenho um pedido a vos fazer. E é muito importante, não só para os interessados, mas também para os que tomaram parte nessa aventura, sobretudo para vossa glória e a da Espanha. Eu vos rogo que intercedais pelos garotos que seguem no patronato do México e que soliciteis ao vice-rei que cumpra com as diretrizes que haveis estabelecido, ordenando o ingresso deles imediatamente na Escola Patriótica.
A menção aos garotos despertou o interesse de Carlos IV, que fez uma série de perguntas sobre o comportamento deles durante a travessia, a reação diante das adversidades, a resistência... E ainda que tenha lamentado as baixas, felicitou-o por ter concluído com sucesso a missão.
— Foi um feito prodigioso — concluiu o monarca —, e me sinto honrado por ter sido o viabilizador. Talvez nunca seja lembrado por isso, porque os homens se recordam mais facilmente dos feitos de guerra e das fofocas de alcova que dos gestos em prol da humanidade, mas logo chegará o momento de prestar contas ao Todo-Poderoso, e no fundo do coração, eu sei que Ele, sim, levará isso em conta.
Balmis piscou e espichou diversas vezes o pescoço.
— Eu vos dou minha palavra, Balmis, de que atenderei ao pedido em relação a essas criaturas.
De novo, o médico pensou em Isabel, em como ficaria orgulhosa por ele ter obtido semelhante compromisso com o rei. Se não fosse por ela, provavelmente não teria pedido, teria se esquecido do destino que coubera aos garotos. Pensou no amor: sempre havia considerado preciosismo, mas agora se dava conta do quanto era capaz de mudar o mundo.
Então vieram os discursos. Manuel Godoy ressaltou o sucesso de uma expedição cosmopolita e filantrópica que honraria para sempre a memória e o reinado benéfico de Carlos IV. O ministro José Caballero agradeceu pelos serviços prestados à humanidade, que tanta fama rendiam ao bom nome espanhol, e acrescentou:
— Esse feito proporciona à Espanha tanta honra quanto a chegada de Cristóvão Colombo à América.
Era a glória por que Balmis ansiara desde que era novo. À época, achava que alcançá-la seria o mesmo que se tornar imortal, pois sua memória perduraria para sempre. Agora, sabia que a glória humana não era mais que um sopro de vento, como escreveu Dante, que podia soprar algumas vezes daqui e outras de lá.
Depois da glória, a solidão. Balmis retornou ao apartamento, mas tinha recursos para não se deixar tomar pela melancolia. Era o momento de apresentar as contas e pedir ressarcimento dos gastos que cobrira do próprio bolso. Devido a sua lendária persistência, conseguiu que a justiça obrigasse o capitão Ángel Crespo a lhe devolver os oito mil e seiscentos pesos cobrados injustamente. Uma vitória que também lhe rendeu glória e lhe deu asas para seguir com seus projetos.
“Suas atividades são tão portentosas que não sei de onde tira tempo para fazer tudo o que faz”, comentava seu amigo e colega Ruiz de Luzurriaga, ao lado de quem havia defendido com tanta convicção o invento de Jenner nos círculos científicos de Madri.
Balmis conseguiu apresentar um dicionário chinês-espanhol à Secretaria de Estado enquanto organizava no Jardim Botânico o transplante das mudas que sobreviveram à viagem da China. O rei nomeou-o seu assessor médico e manteve seu cargo de diretor da expedição. Então, Balmis solicitou a Gutiérrez, que havia ficado no México, um relatório sobre o desenrolar das campanhas de vacinação nas terras da Nova Espanha desde que a equipe retornara das Filipinas. Também lhe sugeriu que retornasse à Europa. Para Salvany, mandou uma carta similar, em que solicitava o envio urgente de um relatório de atividades.
— Que notícias tem de Salvany? — perguntavam-lhe alguns.
— Nada. Não se dignou a mandar nada. Não sei nem se está vacinando. E, até que o saiba, não posso dar a expedição por concluída.