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Hospital de Puebla, dezembro de 1810.

— Senhora, há um homem que diz conhecê-la esperando no andar de baixo.

— Disse como se chama? — perguntou Isabel.

— Não, não quer dizer quem é. Só disse que é alguém muito próximo. Quer fazer uma surpresa.

Isabel limpou as mãos e deixou a sala de curas. “Quem será?”, pensou. Gutiérrez, ou Pastor, os companheiros de expedição com quem havia compartilhado tantos dias de trabalho nas Filipinas? Sabia que tinham ido morar no México, um porque gostava do lugar e o outro porque não conseguira voltar à Espanha devido à invasão napoleônica. Mas não eram de fazer surpresas desse tipo. Balmis? De Balmis, sim, podia esperar algo do tipo. Podia-se esperar qualquer coisa de Balmis, até mesmo que aparecesse com uma fila de garotos em riste e a cabeça repleta de ideias.

Mas o homem que a esperava no térreo não lhe era familiar. Demorou um bom tempo para reconhecê-lo e, quando reconheceu, foi atravessada por uma pontada de pânico. De repente, os momentos mais difíceis de sua vida passaram por sua mente a toda velocidade, a lembrança do desespero causado por aquele indivíduo voltou à superfície de sua consciência, como um cadáver que sobe inchado do fundo do mar.

— Não me reconhece? Benito.

Isabel tentou balbuciar algumas palavras, mas travava ao falar.

— Mudei tanto assim?

— Sim.

Era Benito Vélez, pai de seu filho. O homem que a enganara e abandonara feito um trapo velho. Isabel, recuperada da impressão inicial, disse:

— Não acha que chegou um pouco tarde?

— Sempre quis voltar para você, mas não tive sorte.

— Você é aquele mesmo que depositava envelopes nos muros de La Coruña com uma mecha de cabelo para me pedir formalmente em casamento?

Benito olhou para baixo com uma expressão constrita.

— Sim, era eu. Sinto muito. Ouvi falar muito de você, não só em Puebla, mas também no México.

— Sei.

— Faz tempo que eu queria vir, mas não me atrevia.

Isabel não disse nada. Sim, reconhecia aquele rosto moreno e anguloso, o nariz aquilino e as costeletas que lhe davam um ar de bandoleiro. Mas já quase não tinha cabelo, e o sorriso que antes a deixava deslumbrada agora deixava entrever dentes escassos, podres e sujos.

— Vim porque estou ferido.

O homem abriu a jaqueta e deixou à mostra uma grande mancha de sangue no ventre. Isabel fico boquiaberta.

— Entre, venha comigo — disse.

As coisas não haviam se saído bem para Benito na América. Fez trabalhos de todos os tipos, desde prático nos estaleiros de Havana até cozinheiro, passando por marinheiro e contrabandista. O que lhe rendeu um pouco de dinheiro fora o envolvimento como mercenário com diferentes grupos armados, geralmente financiados por fazendeiros ou potentados locais que lutavam por território. Participara de campanhas sombrias contra os índios e nem sabia o número de pessoas que havia exterminado. No fim, juntou-se ao grupo de insurgentes que lutava contra os espanhóis. Em um enfrentamento com as tropas do vice-rei, tomou um tiro de mosquete. Estava sendo procurado. Foi então que se lembrou de Isabel.

Quanto a ela, nada teria lhe causado mais aturdimento que aquela visita. Não pelos sentimentos, que já não existiam, nem pelo risco de que as lembranças voltassem a abrir antigas feridas. A preocupação era por aqueles ao redor. “Como ele vai encarar a existência do garoto?”, pensou, porque continuava vendo seu filho como um garoto, embora já fosse um homenzinho. “O que digo a Ricardo?”, perguntou-se também. Pois Benito lutava no lado errado, segundo o bispo. O único prelado criollo da Nova Espanha buscava convencer seus paroquianos da necessidade de defender e apoiar o regime monárquico espanhol. Em seus sermões, insistia nos quase três séculos de fidelidade da Nova Espanha, acusando os insurgentes de serem filhos desnaturados que manchavam a reputação de seus compatriotas e os submetiam às maiores crueldade. Um mês antes, havia ditado éditos de excomunhão contra autores e difusores de pasquins e libelos. Para ele, a insurreição era obra de Napoleão, em vingança pela lealdade ao rei demonstrada pela Nova Espanha.

Como contar a Ricardo sobre a visita de Benito? Sim, precisava contar a ele, não podia ocultar, agora que aquele mequetrefe estava internado no hospital, sustentado em grande parte pelos fundos do próprio bispo. Iria jogá-lo na rua? Não, certamente não. Talvez entregá-lo à guarda do vice-rei? Essa possibilidade a preocupava mais, embora tivesse confiança de que o convenceria a não fazer isso. Não guardava nenhum ódio de Benito, que, ao fim e ao cabo, era o pai de seu filho. Nem ódio, tampouco ressentimento — o tempo havia sepultado tudo. Na realidade, não sentia por ele mais do que poderia sentir por qualquer paciente, por qualquer homem doente, uma piedade básica. Pensando bem, estava até ficava agradecida pelo abandono.

Quando terminou seu turno no hospital, voltou para casa. Comeu sozinha com seu filho; Cándido estava ensaiando com o coro da catedral.

— Quero que você venha comigo ao hospital…

— Agora?

— Sim, quero apresentá-lo a seu pai.

O garoto franziu o cenho. Não sabia se a mãe estava lhe pregando uma peça. Isabel contou da visita e de tudo o que ocorrera naquela manhã. O garoto ficou aborrecido.

— Ver pra quê, mãe? Ele não é meu pai nem nada.

— É seu pai e sempre será. Quero que você o conheça, só isso.

— E digo o que a ele?

— Não sei… ué, diga que antes tarde do que nunca.

— Isso é mentira… seria melhor que não tivesse vindo. Por que está aqui?

— Eu já disse, está ferido e veio para ser curado.

— Ele quer me ver?

— Ele não sabe que você existe.

— Então, vamos deixar assim.

Isabel se perguntou se havia sentido em forçar tal encontro e temeu que aquilo pudesse afetar o filho. Mas então pensou no escárnio que tivera que aguentar quando pequeno. Lembrou-se de um dia, em La Coruña, quando ele chegou da rua e se agarrou a sua saia chorando porque o haviam chamado de filho da...

— Não, vamos — intercedeu Isabel. — Eu sempre lhe disse que você tinha pai. Só quero que você o conheça para que saiba que nunca menti, que não sou uma desencaminhada.

O garoto entendeu que era importante para a mãe que fosse conhecer seu pai e concordou, ainda que a contragosto. Como o ferido reagiria ao descobrir que o garoto que tinha à frente era seu filho? Isabel não esperava nada daquele homem. Via aquilo como um ato de justiça.

No hospital, precisou esperar até que Benito acordasse. Então, deu de frente com o garoto. Isabel disse:

— Lembra daquela tarde perto da Torre de Hércules, aquela que passamos naquele bote desconjuntado? Bem, esse é seu filho. Tem seu nome.

O homem ficou boquiaberto. Tinham uma semelhança inegável, ainda que leve. As feições do garoto eram menos abruptas que as do pai, e era mais alto e corpulento.

— O que você faz? — perguntou Benito pai.

— Es... es... — O filho não conseguia terminar a palavra. — Es... estudo.

Isabel percebeu que seu filho voltava a gaguejar como nos piores tempos e reagiu em seguida.

— Vamos para casa — disse Isabel.

E então, dirigindo-se a Benito, disse:

— Só queria que ele o visse para comprovar que é de carne e osso, porque falei tanto de você a ele quando era pequeno que não queria que achasse se tratar de uma invenção minha.

Voltar para casa bastou para que o garoto recuperasse a fala normal. Isabel não se arrependeu de ter forçado o encontro. Fez aquilo pela própria exigência de apagar a mancha de seu passado. Agora, por fim, sentiu que tinha conseguido.

Quando, vários dias depois, retornando de uma visita pastoral, dom Ricardo passou para vê-la no hospital, Isabel não hesitou um único instante e contou tudo. Já havia confessado no início de sua relação que Benito não era filho adotivo, mas o produto de um engano, e dessa vez rogou a ele que não denunciasse aquele que jazia ferido na maca, ainda que lutasse do outro lado.

— É pedir demais?

Dom Ricardo não se alterou nem demonstrou a mínima aversão por Benito. Estava muito acostumado a lidar com situações difíceis.

— Só vos peço que me deis um pouco de tempo para refletir e ver o que faremos com ele.