Balmis retornou ao México em 1810, enviado pela Junta Suprema para supervisionar oficialmente as estruturas organizacionais criadas durante a viagem anterior, mas com a missão adicional de informar sobre os ecos da revolta de indígenas e castas no vice-reinado que haviam chegado à Espanha e preocupavam o governo.
O país a que o médico retornou era muito diferente da aprazível colônia que havia conhecido no passado. Três vice-reis haviam tomado o poder desde que seu antigo inimigo, José de Iturrigaray, morrera. Agora ele se encontrava em Cádiz, trancafiado e incomunicável no castelo de Santa Catalina. Destituído em setembro de 1808, declarado culpado por ter se aliado a um grupo de criollos para estabelecer uma junta autônoma em relação à Espanha, foi submetido a uma longa instrução de juízo de residência em que vieram à tona todos os detalhes de sua atuação à frente do governo. A promotoria acumulou dezoito acusações contra ele, desde traição ao monarca, enriquecimento ilícito, venda de cargos, substituição de magistrados por conhecidos e até mesmo a exigência de que a vice-rainha recebesse o tratamento de majestade!
Na Cidade do México, Balmis comprovou que já não havia garotos da expedição no patronato. Carlos IV cumprira sua palavra, dada naquele glorioso dia no palácio de La Granja. Havia instruído o vice-rei Pedro de Garibay a assumir plena responsabilidade pelos garoto vaciníferos e a tirá-los do patronato, “onde vosso indiferente predecessor os colocou”. Restavam quatro garotos na Escola Patriótica quando Balmis a visitou. Os demais haviam sido adotados ou acolhidos por famílias. Um foi adotado por um cirurgião, outro foi confiado ao reitor do Colégio de San Pedro. Dois haviam sido adotados pelo diretor do Patronato de São Nicolau, e três pelo de São Jacinto. Um comerciante de Ixmiquilpan ficou com o pequeno Aniceto. Seu companheiro Andrés Naya foi adotado por um cura, que voltou três dias depois para reclamar que o garoto havia fugido. Quando detiveram o jovem, este alegou que não queria voltar para o cura porque ele fazia “coisas ruins” com ele. Balmis viu o garoto na Escola Patriótica; aprendia o ofício de carpinteiro e parecia feliz. “No fim das contas”, pensou Balmis, “apesar da guerra para garantir que as diretrizes do rei fossem cumpridas, o destino dos garotos seria melhor no México do que se tivessem ficado em La Coruña ou em Madri”.
“Isabel sabia que fim levaram os garotos?”, perguntava-se Balmis enquanto seguia na diligência que o conduzia a Puebla. Como estaria a vida dela? Queria voltar à Espanha? Levou mais que o dobro do habitual para chegar a Puebla, devido à insegurança da viagem, já que os insurgentes detinham os comboios, inspecionavam os passageiros e, às vezes, cobravam pedágio. No rastro da insurreição, também surgiam bandos de ladrões.
Lembrou-se de sua primeira chegada a Puebla e da emoção transbordante daquela recepção. Hoje a cidade carecia do brilho de outrora: as lâmpadas estavam apagadas e pouca gente perambulava pelas ruas. Encontrou Isabel no Hospital San Pedro, sempre atarefada. Estava com o rosto mais anguloso, as bochechas um pouco afundadas, o cabelo preso em um coque e um jaleco branco. Ela demorou alguns segundos para reconhecê-lo: parecia mais baixo que antes, estava descabelado como sempre e tinha rugas profundas na testa. Mas continuava com o mesmo olhar penetrante que transmitia autoridade.
— Fico muito contente em vê-lo — disse Isabel, deixando entrever uns pés de galinha que acentuavam o calor de seu sorriso.
Balmis piscou, contraiu o pescoço, voltou a piscar. Quase não conseguia falar devido à emoção.
— Na última vez em que nos vimos, a senhora disse: “No ano que vem em Madri”. Eu me cansei de esperar.
— Acrescentei um “Se Deus quiser”, lembro-me perfeitamente — disse Isabel, rindo. — E, bem, Deus não quis.
Isabel tinha a mesma expressão de serenidade, embora Balmis percebesse uma sombra de inquietude em seu olhar.
— Como estão os garotos?
— Garotos? Têm mais barba que você! Estudam direito na aula mayor da Universidade do México, a mesma em que dom Ricardo se tornou advogado antes de entrar para a Igreja.
— Imagino que sua influência tenha sido determinante na hora de escolher o que iriam estudar.
— Sim, pois não tive sucesso ao incentivar que ao menos um se tornasse cirurgião. Diga-me, sabe de Salvany?
A pergunta desencadeou vários tiques.
— Morreu em julho. Em Cochabamba.
Isabel acusou o golpe. Virou-se de costas, fingindo organizar alguns vidros de remédio, mas seu objetivo era que Balmis não visse a perturbação em seu rosto.
— Não respondeu a última carta que lhe enviei... Como foram seus últimos dias?
— Eu trouxe para a senhora o informe publicado por uma gazeta local, está assinado pelo médico que o atendeu.
Retirou de sua jaqueta um papel e entregou-o a Isabel, que leu em voz baixa: “Morreu em sua casa e em comunhão com nossa santa mãe Igreja dom Josep Salvany, espanhol, solteiro, natural de Cervera, trinta e três anos de idade. Confessou-se antes de morrer, recebeu o viático e a extrema-unção. De minhas mãos e para que conste, assino. Doutor Melchor de Ribera y Terán”.
— Não sabe mais nada?
Balmis fez que não com a cabeça.
— Morreu sozinho?
— Sim.
— O doutor organizou um responso, uma homenagem em Madri?
— Não — disse Balmis, cabisbaixo. — Comuniquei sua morte à regência antes de partir.
— Em todas as notícias que chegam da Espanha, vi que o doutor era mencionado... Até a mim o doutor agradeceu pelo esforço da expedição, é algo honrável. Mas nunca li nada que o senhor houvesse dito sobre Salvany.
— Ele me deixou sem notícias durante muito tempo, e isso me tirou do sério. Agora entendo que precisou enfrentar grandes penúrias, mas à época eu não via assim.
— O doutor sempre foi duro com ele.
— Reconheço isso. Fui eu quem pôs obstáculos a seus planos, opondo-me a que lhe concedessem um emprego fixo nos reinos das Índias. Ainda que isso não fosse salvá-lo da doença, digo isso com o coração na mão.
— Aprecio que o doutor seja franco, sempre foi...
Balmis suspirou. Achou que havia contornado a crise, mas Isabel acrescentou:
— Mas a sinceridade não o exime da culpa.
— Não sei por que fui tão...
Isabel o interrompeu. Havia tempo que deixara de ser aquela garota dócil, sempre vítima dos acontecimentos. Tinha valores e vontade de dizer o que ficara calado por tantos anos.
— O doutor foi duro com ele porque ele se fazia gostar — disse, com aquela mescla tão sua de aprumo e integridade —, porque o considerava frouxo, porque era doente. Ao mesmo tempo, invejava sua juventude, por ciúmes, porque soube que eu o amei...
Balmis tapou os ouvidos com as mãos.
— Pare, eu imploro. Eu sei, sei de tudo isso.
— Desculpe-me, doutor, me deixei levar. São... são os nervos.
Depois de morto, Salvany se interpunha como escolhos intransponíveis diante dos planos de seu chefe, como se essa fosse sua vingança póstuma por tanta insensibilidade e tanto agravo. Naquele momento, Balmis entendeu que quando utilizou seu poder para afastar Isabel de Salvany, naquele instante, a perdeu para sempre.
Optou por mudar de assunto, desfazer o clima pesado.
— E a senhora, como está? — perguntou, em um tom mais íntimo.
Isabel se esquivou de uma resposta mais pessoal.
— Temos cada vez mais dificuldades para manter as vacinações regulares na diocese. O ambiente de guerra que vivemos afeta tudo, dom Ricardo está muito desmoralizado.
— Sei que socorreu os bispos da Nova Espanha refugiados em Cádiz com cinco mil pesos.
— Sim, mas não poderá mais fazê-lo; tem cada vez menos apoio e menos recursos.
Então contou da visita de Benito Vélez, que bem podia ter sido um dos insurgidos que o pararam no caminho, e de como o bispo tivera a ideia de contratá-lo para trabalhar no hospital.
— Quando Benito melhorou da ferida no ventre, o bispo pensou que mais valeria tê-lo sob controle que lutando nos montes e colocou-o para trabalhar de carroceiro. Disse que talvez a visão de tantos mortos despertaria alguma reação e o afastaria da luta, dos saques, das expulsões forçadas, das execuções. Mas um dia seus companheiros vieram atrás dele, que desapareceu sem dizer obrigado nem adeus... Foi assim.
— E seu filho, como reagiu ao encontrar o pai?
— Ficou com vergonha. Confessou-me que teria preferido não o conhecer.
Quando saiu do hospital, era quase noite. Antes de retornar a sua casa, Isabel passou pela catedral, onde ascendeu uma vela que iluminou seu rosto danificado. Ficou de joelhos e rezou pelo eterno descanso de seu amigo Salvany.
Balmis se dirigiu ao palácio episcopal para ver o bispo, o homem que mais o ajudara durante a campanha de vacinação de 1804. Encontrou-o envelhecido, o cabelo grisalho estava agora branco como a neve.
— Dedico tudo a salvar o chão que me viu nascer — confessou-lhe.
— Viveis aqui as consequências dos quinze anos de desastres e desilusões de que padecemos na Espanha; a guerra contra Napoleão nos arruinou, nos dividiu.
— Aqui, não consigo impedir a destruição do povoado. Vós vos inteirastes de que o Texas está amotinado?
— Sim, estou sabendo.
— É muito difícil acalmar os ânimos, diminuir a funesta rivalidade entre os filhos da pátria da Nova Espanha — disse a Balmis. — Há curas que, amparados pela imagem da Virgem de Guadalupe, não hesitam em fomentar o assassinato de centenas de peninsulares. Há um ódio feroz entre povos e castas que sempre foram amigos. Todos lutam contra todos, os criollos estão divididos em facções que se matam. Imaginais o que será dos indígenas, caso uma facção dessas chegue ao poder?
— Serão escravos de novos donos. A não ser, Eminência, a não ser que o rei volte ao trono e reforce as leis de proteção aos nativos.
— Tendes grande fé no rei, mas essas leis não foram de grande utilidade. Sabeis tão bem quanto eu que as leis não passam de pedaços de papel se não há vontade de cumpri-las.
— Vós fizestes o impossível para cumpri-las.
— Estamos dispostos a morrer antes de violar as leis de nosso reino. Mas minha diocese é pequena, e a Nova Espanha, muito grande.
Ergueu os braços ao céu.
— Ó, meu Deus! Por que nasci para ver a ruína de meu povo?
Então, virou-se para Balmis e lhe disse, com ar perplexo:
— Em toda a Nova Espanha falam em independência, mas não vos deixais confundir, doutor Balmis, trata-se de uma guerra civil.
Não havia sentido em permanecer em Puebla. Chegavam notícias de que os caminhos até Valladolid ficavam mais perigosos e intransitáveis a cada dia. Balmis levaria a cabo uma série de experimentos em uma fazenda onde haviam sido descobertas vacas infectadas com o vírus da varíola bovina e temia não encontrar seu ajudante Gutiérrez.
— Custa-me deixar a senhora aqui, sozinha, com tanta violência ao redor.
— Não se preocupe, doutor, estou bem protegida.
— Não acha que chegou o momento de voltar à Espanha?
— Meu lugar é aqui, não quero abandoná-lo.
— Aqui a senhora corre perigo...
Balmis insistiu, pensando que, se havia conseguido convencê-la uma vez a se unir à viagem da expedição, poderia repetir a façanha. Continuava sendo um otimista inveterado, um grande ingênuo. Isabel não cogitava deixar Puebla, continuava tão apaixonada por dom Ricardo como no primeiro dia, ou mais, mas isso ela não dizia.
— Gosto de viver aqui, apesar das circunstâncias — disse a ele, com um sorriso de ternura. — Vivo em um estado parecido com o que deve ser a felicidade... E a verdade é que isso se deve ao doutor, eu sempre disse. Doutor, aproveite sua glória, pois ela é muito merecida.
— Alcancei a glória quando ela já não me interessava. E deixou de me interessar quando vi a morte de perto, pouco depois de deixar a senhora no cais do porto de Manila... Estávamos prestes a ir a pique, tive a revelação deslumbrante de que precisava estar com a senhora, e se havia uma glória, precisava compartilhá-la com a senhora.
Isabel ficou alguns segundos em silêncio, baixou a cabeça e, quando a ergueu, tinha um sorriso brincalhão de puro ceticismo.
— Já ouvi o doutor dizer isso de compartilhar a glória, mas no fundo não acho que gostaria disso.
E pôs-se a rir, com uma gargalhada cristalina cujo som tocou Balmis no mais fundo de sua alma. Ele a acariciou com um olhar de olhos mansos, sabia que a negativa daquela mulher que ele levava no coração o condenava à velhice solitária que recebera em troca de salvar o mundo.