Na Espanha, o julgamento contra José de Iturrigaray foi eternizado. Pela primeira das acusações, que se referia à entrada dos cento e setenta volumes que ingressara ao chegar a Veracruz como bagagem pessoal e que depois vendeu de maneira fraudulenta, foi condenado a pagar 119.125 pesos. Também foi provado que havia aceitado cem onças de ouro pela suspensão de um decreto de prisão e que cobrava uma onça de ouro por quintal de mercúrio extraído de diversas minas e, por isso, foi condenado a restituir as gratificações; outra acusação foi de adquirir papel a um preço mais alto do que o devido. O promotor encurralou-o de tal maneira que, em certa ocasião, diante da resposta que lhe pediram, alegou algo extraordinário por seu descaramento.
— Senhoria, não tenho nem cabeça nem imaginação para isso.
— Admitis ter aceito presentes em troca de empregos?
— Não, senhoria, não admito.
— Sua esposa, no entanto, confessou ter recebido...
— Ah, sim... Minha mulher recebeu determinadas quantias de sujeitos a quem prestei algum favor.
Apesar das evidências esmagadoras, defendeu sua inocência com tenacidade: declarou que jamais havia admitido subornos nem doações e que lhe parecia injustiça que o acusassem de delitos que ele via muito naturalmente como prerrogativas do poder que havia ostentado. Longe da embriaguez do mandato, despojado de suas riquezas, as acusações direcionadas a sua pessoa lhe geravam inexplicável assombro. Aos dissabores do interminável julgamento, somaram-se as campanhas insidiosas em torno de seu nome; os aspectos de seu processo interessavam à opinião pública de Cádiz, que era então o centro da Espanha independente, onde a política começava a se tornar uma paixão do povo. Incapaz de fazer frente aos reclames da justiça, seu salário foi bloqueado, e seus bens, embargados. Viveu os últimos anos entre tribunais, cortes, juízes e promotores. Faleceu em dezembro de 1815, pouco antes de ditarem sua sentença.
Três anos depois da última visita de Balmis a Puebla, o bispo dom Ricardo adoeceu com a peste. Isabel passava os dias e as noites no hospital para contribuir com todos os cuidados possíveis. Nutria poucas esperanças de curá-lo, pois sabia que no fundo eram os horrores da guerra que o estavam matando. Dom Ricardo María Rodríguez de Fresnillo, “de quem jamais se ouviu uma expressão de jactância ou vanglória”, como disseram em suas exéquias, morreu em seus braços em 26 de fevereiro de 1813, no Hospital de San Pedro, instituição que tanto gostava de visitar e que por tantos anos financiara. A cidade inteira compareceu ao funeral, além de multidões de índios e brancos ribeirinhos que foram chorando das aldeias mais remotas de sua diocese.
Isabel permaneceu em Puebla até sua morte, da qual a história não deixou registro. Hoje, a escola de enfermagem da Faculdade de Medicina de Puebla tem seu nome, homenagem póstuma a uma mulher que a Organização Mundial da Saúde nomeou em 1950 como a “primeira enfermeira em uma missão internacional”. Também poderia ter sido nomeada “primeira enfermeira hispânica da história” ou primeira pediatra, antes que existissem os especialistas em saúde infantil. O Prêmio Nacional de Enfermagem, concedido todos os anos pelo governo do México, tem o nome de Isabel Cendala Gómez. Na Espanha, recebeu somente a homenagem da cidade de La Coruña, que lhe dedicou uma rua pequena e estreita no bairro antigo, a rua Isabel López Gandalia.
Durante duzentos e cinquenta anos, até que em fevereiro de 2013 o jornalista corunhense Antonio López Mariño, especialista na história recente da Galícia, encontrasse no Arquivo Diocesano de Santiago o primeiro documento em que Isabel aparecia com sua família em sua aldeia de origem (registro paroquial com a lista das 58 famílias e 258 paroquianos que receberam no mesmo dia o sacramento da confirmação), existiam onze versões distintas de seu nome e sobrenomes, tal era a névoa que rodeava sua identidade. Alguns escritores e historiadores acreditavam que era da alta sociedade, outros, de origem basca, irlandesa ou mesmo inglesa, porque lhes parecia que sua mentalidade não correspondia ao das mulheres da Espanha de então. Ter nascido “pobre de solenidade”, ser mulher e mãe solteira foram fatores que sem dúvidas contribuíram para condená-la não apenas à desonra, como também ao esquecimento. Também pesou o fato de ter cortado vínculos com sua terra natal e ter morrido longe, quando a Espanha e o império estavam se desagregando.
O mérito da Real Expedição Filantrópica da Vacina nunca foi suficientemente reconhecido, talvez por ter ocorrido em um período turbulento, decadente e sombrio da história da Espanha, o que faz com que se lembrem mais das intrigas palacianas, das guerras devastadoras e das batalhas perdidas que das ganhas. Poder-se-ia dizer o mesmo de Salvany e, em menor medida, de Balmis. E das crianças? Quem se lembra daqueles órfãos ou filhos de famílias desestruturadas que protagonizaram sem saber a maior façanha médica da história de seu país? No fim, a maioria deles se integrou à nova sociedade surgida após a independência e foram homens de bem. Benito terminou a Escola de Minas e ganhou uma fortuna considerável com o comércio de mercúrio, enquanto Cándido de la Caridad, aquele garoto impossível, acabou se tornando um dos mais renomados advogados de um novo país que passou a se chamar México.
Em 12 de fevereiro de 1819, Francisco Xavier Balmis deu seu último suspiro, em pleno inverno madrileno, em seu apartamento na rua Valverde, número 12, com sessenta e seis anos — o que poderia ser considerado recorde, dada sua saúde quebrantada. Seguindo as instruções que deixou em seu testamento, foi enterrado no Cemitério Geral do Norte de Madri, o primeiro construído fora das igrejas na capital, como medida profilática contra as epidemias. Nunca retornou a Alicante nem se preocupou em saber de sua mulher ou de seu filho. Tanto foi que, em seu segundo testamento, declarou-se solteiro, quando já estava casado havia quarenta anos. Aquele desapego despertou o incômodo de sua irmã Micaela e provocou o distanciamento de toda a sua família. De modo que Balmis — sempre original — redigiu outro testamento, no qual designava como sua única herdeira dona Manuela Ruiz, sua criada, “de estado donzela, devido aos bons serviços que me prestou, por ter sido uma fiel companheira nos trabalhos e nas fadigas de que padeci nos caminhos que trilhei e por não ter herdeiros forçosos, pois, embora tenha uma irmã legítima chamada dona Micaela Balmis, tenho lhe dado e subministrado muito mais do que poderia corresponder”. Depois se reconciliou com a irmã, porque o último de seus testamentos lhe devolveu a condição de única e universal herdeira, sem no entanto deserdar sua fiel criada: “Mando que se entregue de uma vez a Manuela Ruiz, minha criada, que foi casada com Juan cujo sobrenome ignoro, cocheiro de ofício, outros dez mil reales de velo em metais”.4 Também pediu que rezassem duzentas missas para a purificação de sua alma, com uma doação de seis reales para cada uma. Viveu seus últimos anos de maneira confortável, com todas as comodidades possíveis na época. Restaurada a monarquia dos Bourbon, Fernando VII premiou sua atitude crítica diante do governo de José Bonaparte nomeando Balmis cirurgião de câmara e designando para ele uma pensão de oitocentos ducados ao ano. Ao morrer, deixou 80.098 reales em metais, móveis, roupas, utensílios de cozinha, joias, ouro e prata e especificou “que a forma do enterro seja a de menor pompa possível”. Era desejo das pessoas endinheiradas ser enterradas com hábitos modestos, expressando, assim, a vontade de se assemelhar em aparência aos pobres simbolizados por Cristo.
No entanto, seu legado mais valioso serviu a toda a humanidade. Em 1858, quando Louis Pasteur inventou a imunização contra a raiva, chamou-a de “vacina” em homenagem a Jenner. A palavra passou a ser sinônimo de imunização contra um sem-número de doenças que pouco ou nada tinham a ver com a varíola. De modo que, no fim do século XIX, os esforços para vacinar contribuíram de forma determinante para o aumento da população das Américas e da Ásia. Cento e cinquenta anos depois da expedição, em 1951, ocorreu o último caso de varíola no México. No mundo, a última vítima do vírus foi a fotógrafa médica Janet Parker, que, em um acidente, por um erro de manipulação em seu laboratório na Inglaterra, contraiu a doença e morreu em 11 de setembro de 1978. Atualmente, o mais espantoso assassino de seres humanos da história repousa na geladeira de dois laboratórios — o Centro para Controle de Doenças de Atlanta, nos Estados Unidos, e o Centro de Pesquisa em Virologia de Novosibirsk, na Sibéria, Rússia.
Se o homem ganhou essa guerra que travava desde o alvorecer de sua existência, não foi só pela heroica perseverança dos que participaram da expedição, mas também pela visão de futuro, por terem focado na educação pública e na utilização de pessoas relevantes e símbolos locais, que ajudaram a difundir os benefícios da vacina entre a opinião popular. Foi um exemplo de como um esforço sanitário internacional, logisticamente complexo, podia trasladar avanços médicos a contextos culturais distintos e remotos. Nesse sentido, a expedição continua a inspirar os planos internacionais para acabar com as pragas de nossa época.
Mas a frase que talvez melhor defina a odisseia da Real Expedição Filantrópica foi pronunciada pelo próprio inventor da vacina, o doutor Edward Jenner, quando, ao se inteirar do retorno de Balmis à Espanha em uma tarde de 1806, disse a seu amigo, o reverendo Dibbin: “Não imagino que os anais da história tenham abrigado um exemplo de filantropia tão nobre e tão abrangente quanto esse”.