Introdução
Como pode haver qualquer revolução verdadeira enquanto não soubermos do que somos feitos?
Graham Swift
O empenho de elaboração de um estudo sobre a História Social da Doença e do Doente, especificamente da tuberculose e do tuberculoso, desdobra-se em duas questões preliminares. Primeiramente, indaga-se da possibilidade de uma história da enfermidade e de seus tributários e, em continuidade, dos motivos contextuais de uma pesquisa centrada nos personagens motivados pela Peste Branca.
Nas origens desta pesquisa, encontram-se os compromissos em retraçar os meandros temáticos e metodológicos que possibilitam o dimensionamento do ‘território do historiador’. As últimas décadas foram marcadas por um número crescente de pesquisas na área da História Social, voltados para a pobreza, para a violência, para a sexualidade, para o trabalho e para o lazer, entre outros. Estes trabalhos apontam para uma História emergente por meio da convergência das condições materiais de vida e dos comportamentos coletivos. Nesta trajetória, ‘tipos sociais’ até então preteridos em prol dos ‘grandes personagens’ têm chamado a atenção dos estudiosos: o negro rebelde, a doméstica, a prostituta, o homossexual, o índio e o malandro são alguns desses protagonistas que têm despertado renovados interesses, oferecendo chances para a releitura da sociedade.
Dentre tantos personagens que reclamam pelo tratamento mais conseqüente das Ciências Humanas, encontra-se o Homem enfermo. Apesar da experiência com a doença ser condição própria da vida – portanto, um fato social – a História e as Ciências Sociais pouco ainda contemplaram o tema com olhos criteriosos.
A atenção às doenças e aos doentes como centro de múltiplos filigramas do tecido coletivo implicou na escolha da tuberculose como um dos temas de relevo para estudo. Isto porque a Peste Branca foi definida desde os meados do século passado como ‘moléstia social’ que, alinhada à sífilis e ao alcoolismo, constituíram-se num dos principais conjuntos desafiadores da ordem social, inerente ao contexto das revoluções burguesas.
Com isto, a tísica e suas vítimas tornaram-se objetos exaustivamente vistoriados pela medicina, principalmente a partir do século XIX. Desde então, a continuidade dos enfoques incentivados pelos interesses e pelos medos coletivos elevaram a tuberculose e os fracos do peito a representantes máximos da potencialidade deletéria do cotidiano urbano-industrial, justificando a necessidade e a urgência do estudo da tísica e dos tísicos. Assim, analisar-se-ia também a sociedade e suas estruturas como um todo.
Os cinqüenta primeiros anos do século passado balizam temporalmente, grosso modo, o presente estudo sobre a tuberculose e seus envolvidos, no contexto brasileiro. A opção pela marca cronológica inicial deve-se à ocorrência de vários fenômenos concomitantes, por exemplo: se no contexto internacional ganhava impulso a teoria pastoriana que permitiu, inclusive, a identificação do bacilo de Koch como o agente biológico causal da infecção pulmonar, no Brasil, as ações direcionadas para a institucionalização da Peste Branca e dos pectários deram-se paralelamente à redefinição do moderno Estado Nacional e ao processo de organização da sociedade de classes. Como marco cronológico final, estabeleceu-se a metade do século XX porque então já se dispunha de estratégias relativamente eficientes para o ‘controle’ da tuberculose, ao passo que os principais centros urbanos do país eram tidos como áreas regidas pelos códigos da modernidade.
Por óbvio, não se pretende o enclausuramento analítico – nem sua exaustão –, no meio século assinalado. Tão antiga quanto a própria Humanidade, a tuberculose já contava com uma longa trajetória quando colocou-se como assunto preocupante no Brasil. Esta condição, que sugere o alargamento das perspectivas temporais, permite que luzes antigas sejam utilizadas para o entendimento do período realçado no estudo, exigindo também a nitidez que convida recortes. Recortes que, contudo, devem ser reinseridos no mosaico mais amplo.
O entrelaçamento dos eventos assinalados como balizadores desta pesquisa não é fortuito. As preocupações nacionais com a tuberculose tomaram impulso a partir dos últimos anos do século XIX, no momento em que o país buscava se realinhar no contexto internacional, necessitando para isto ‘regenerar’ a população que vinha sendo platonicamente concebida como um ‘povo’ organicamente articulado.
Fenômeno sobretudo urbano, a tísica reclamava soluções, as quais foram engendradas segundo os interesses das elites acantonadas nas capitais, em particular em São Paulo e no Rio de Janeiro. É certo que houve desdobramentos das medidas intervencionistas da Saúde Pública para outras áreas, mas, na ordem da modernização, os centros urbanos de maior densidade populacional se destacaram.
Juntando-se os fios, define-se o objeto desta pesquisa: o entendimento da tuberculose e de suas vítimas, no contexto do processo modernizador das grandes estruturas da sociedade, dando-se especial ênfase aos olhares e às ações alimentadas pelos paulistas e cariocas frente ao dilema sanitário.
As relações historicamente estabelecidas entre a Sociedade e os Indivíduos enfermos constitui-se na estratégia problematizadora deste livro. Em conformidade com a documentação disponível e com o recorte temporal admitido, buscou-se questionar os elementos norteadores da experiência social que aproximava os sadios dos pectários, bem como as vertentes assumidas pelo processo de constituição do ideário tisiológico nacional. Como elemento articulador destes eventos, localiza-se a trama histórica marcada pelo empenho redefinidor da economia e da sociedade brasileira e, por extensão, os comportamentos individuais e coletivos frente à infecção pulmonar. Fala-se, pois, de vida privada e suas interações com o público. Fala-se também da contextualização brasileira de um fenômeno universal.
Estabelecido o norte desta pesquisa, ocorre a multiplicação dos questionamentos. Qual foi a especificidade dos liames entre a institucionalização da ameaça tuberculosa e o processo de modernização nacional? Quais foram os papéis desempenhados pelo segmento médico-educador na tarefa atualizadora do perfil epidemiológico brasileiro, em conformidade com os modelos representados pelos Estados Unidos e por outros países ‘civilizados’? Como foi que, no Brasil, os consuntivos reagiram em face do tratamento social que lhes era dispensado? Enfim, como os indivíduos – sadios ou enfermos, médicos ou leigos – responderam aos direcionamentos formulados pelo conjunto das instituições sociais?
Livros e artigos médicos, prontuários clínicos, relatórios de instituições públicas e privadas, depoimentos orais, obras memorialísticas e biográficas, composições literárias e artigos jornalísticos, além da bibliografia nacional e estrangeira sobre o tema foram os principais pontos de apoio para a elaboração do presente livro. O fato da História Social da Doença e do Doente contar com múltiplas ramificações, exigiu a recorrência a uma diversidade de fontes documentais, impondo o rastreamento de numerosas bibliotecas, arquivos, museus e ‘sebos’.
Apesar da pluralidade de informações, a variedade documental resultou favorável para o desdobramento do estudo. Sob esta perspectiva, tudo ganha dimensão maior quando o tema tratado constitui-se na tuberculose e no tuberculoso, pois ambos os tópicos revelam-se, por excelência, fenômenos resultantes da malha social brasileira. Os diferentes nexos discursivos que instruem os núcleos documentais aproximam a experiência individual às reações coletivas frente à enfermidade e as medidas preconizadas pelos serviços de Saúde Pública aos modelos higienistas internacionais, elucidando as linhas conflituosas que emprestam compasso reticente aos debates nutridos pelo peso mortífero da Peste Branca entre nós.
Do conjunto de documentos explorados neste livro, a produção literária, os prontuários clínicos e os depoimentos orais ganharam destaques próprios, sendo necessário por isso maiores averiguações sobre o sentido atribuído a estas fontes primárias na composição da pesquisa.
Apesar da constância dos pronunciamentos críticos que pontificam que ‘Literatura não é documento’, o emprego de obras ficcionais como respaldo para o entendimento da tuberculose ganhou interesse pelo fato dos médicos e também os leigos de décadas passadas recorrerem às composições literárias para abordar as ‘fraquezas humanas’ que marcavam os comportamentos dos enfermos em geral e, em especial, o que foi denominado como ‘psicologia’ dos doentes do peito.
O crédito de veracidade emprestado às páginas romanescas mantinha-se como uma atitude disseminada, coagindo os clínicos a somarem as fórmulas hipocráticas aos ensinamentos literários no entendimento da clientela consuntiva. Por isso, o Dr. Clementino Fraga (1942) – um dos principais mestres da tisiologia nacional nos anos 30 – justificou o interesse médico pela produção ficcional por esta compreender análises da vida pública e privada dos doentes, indicando as obras literárias como fonte abalizada para o estudo dos ‘sentimentos dos pacientes’.
Seguindo estes ensinamentos, o Dr. Gastão Pereira da Silva (1959), ao fazer um balanço dos primeiros anos da prática psicanalítica no Brasil, apresentou o escritor Thomas Mann como um dos principais especialistas no setor clínico que estava sendo avaliado, alegando que ninguém estudou tão profundamente a ‘alma humana’ quanto o romancista alemão.
A pena inspirada na ‘Literatura experimental’ fez Émile Zola discípulo de Claude Bernard, selando uma duradoura aliança entre os escritores e os médicos. As descrições muitas vezes tétricas sobre a vida e a morte dos consuntivos impregnaram de horror muitas laudas ficcionais, deixando a impressão de que seus autores haviam convivido intimamente com os personagens infectados – talvez sendo eles próprios vítimas da fimatose pulmonar.
Neste encaminhamento, as obras de ficção assemelham-se aos relatórios etnográficos que se comprazem no registro de até mínimos detalhes do cotidiano e das intenções do grupo que está sendo estudado. Lidos por alguns e disseminados de boca em boca – e também pelas ondas radiofônicas e pelo cinema –, os textos literários integravam-se como assunto de conhecimento amplo, conferindo redobrado vigor às mensagens discriminadoras dos doentes do peito e, na seqüência, instruindo as reações médicas e leigas frente aos infectados. Assim, tematizada pela tuberculose, a literatura torna-se documentação de verificação obrigatória pelos historiadores e cientistas sociais (Laplantine, 1991).
Enquanto ‘doença da moda’, a Peste Branca tornou-se motivo explorado por escritores de prestígio e também por autores estreantes e às vezes pectários, os quais buscavam compartilhar o drama íntimo com a infecção e ao mesmo tempo ganhar reconhecimento intelectual.
Em nível teórico, o alerta feito por Henry Zalamansky (1970) sobre a necessidade de distinção entre as composições preparadas pelos ficcionistas de ampla aceitação editorial e que, portanto, sentem-se livres para oferecer enfoques originais e o teor da escrita dos novatos, que tendem a reproduzir o que os leitores estariam dispostos a absorver, parece fenômeno diluído no conjunto dos romances que contam com personagens infectados. Isto porque a tuberculofobia, imperante no período analisado, incitava os autores, os editores e o público a adotarem perspectivas convergentes, conferindo encaminhamentos semelhantes às tramas literárias baseadas na infecção pulmonar.
Os prontuários médicos, por sua vez, apresentam-se como outro núcleo valioso para a análise da rotina institucional dos centros tisiológicos e também dos posicionamentos assumidos pelos clínicos e pelos seus pacientes. Até o presente, tais registros praticamente não foram explorados pelos pesquisadores da área das Ciências Humanas, exceto em algumas situações em que os prontuários foram empregados sobretudo como ilustração ou mesmo curiosidade, com diminuta preocupação sobre a especificidade desta fonte.
No Brasil, esta documentação começou a ser produzida no momento da instalação das primeiras escolas médicas, na aurora do século XIX, sendo que a política de padronização e preservação por alguns anos dos registros clínicos ganhou incentivo a partir de 1943, quando tiveram início os estudos para a organização do Serviço de Arquivo Médico e Estatística, que seria implantado no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, que estava em fase de construção.
A possibilidade de encontrar esse tipo de documento, entretanto, é difícil. Da legislação que define a obrigatoriedade dos nosocômios preservarem os seus registros clínicos, por um prazo máximo de dez anos, decorre que, periodicamente, uma parcela significativa do pretérito sanitário nacional acabe sendo destruída. A utilização pelos pesquisadores de prontuários datados de mais de uma década, portanto, é fato incomum, acrescentando-se ainda outros obstáculos para o emprego desta fonte documental: o campo conceitual exclusivo do saber médico-biológico, os códigos e abreviaturas às vezes criados e instituídos segundo a conveniência de uma única casa de saúde e as muitas vezes indecifráveis caligrafias dos esculápios.
Além disso, deve-se acrescentar a dificuldade dos estudiosos não médicos obterem permissão de acesso a esta documentação já que, sob o compromisso de preservar o sigilo médico, as entidades hospitalares tendem a negar autorização de consulta aos relatórios clínicos, mesmo que tais anotações tenham sido realizadas há mais de meio século.
A tentativa de localização de prontuários médicos referentes aos tísicos constituiu-se em uma aventura permeada de obstáculos. O local escolhido para o início das investigações sobre a possível existência deste núcleo documental foi a cidade de Campos do Jordão, devido à condição de antiga estação de cura. As visitas aos hospitais e asilos derivados dos sanatórios para tuberculosos e também ao Centro de Saúde do município revelaram que a maior parte da documentação havia sido incinerada, sendo que em apenas dois instantes constatou-se a preservação dos registros procurados.
No primeiro deles, a diretora de uma casa de repouso para ‘idosos’, após negar a guarda de qualquer documentação sobre o passado do estabelecimento, “lembrou-se” de um “arquivo morto” referente ao período sanatorial sem, contudo, permitir a consulta a tais registros, alegando que os consuntivos que por ali passaram eram “gente de elite” e que “não ficava bem” para a atual administração do nosocômio divulgar dados sobre os seus hóspedes, mesmo que a identidade dos doentes fosse preservada sob sigilo.
Em outro sanatório, transformado em abrigo para doentes mentais, soube-se que um ex-diretor clínico da instituição – que também fora tuberculoso – havia transferido para sua residência toda a parcela do arquivo referente às décadas de 30, 40 e 50, impedindo o acesso a pesquisadores.
A frustração gerada pelas infrutíferas consultas aos hospitais jordanenses levou-me a buscar socorro na cidade de São José dos Campos – área que, no passado, também serviu como espaço de concentração de tuberculosos, se bem que menos expressiva que a estância climatoterápica das montanhas. Naquela cidade, a situação revelou-se ainda mais desalentadora, sendo que quase todas as declarações atestavam a total destruição dos registros tisiológicos. O único fio de esperança foi dado por um servidor aposentado do antigo Sanatório Vicentina Aranha, ao lembrar-se que nos últimos anos da década de 60, houve a transferência de grandes lotes de “papéis velhos” daquele hospital para a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, instituição mantenedora do sanatório joseense.
A permissão de acesso ao Arquivo Central da Santa Casa paulistana ocorreu rapidamente, por meio do apoio prestado pelo Departamento de Medicina Social da Faculdade de Ciências Médicas da própria Santa Casa. De imediato, soube-se que os registros do Sanatório Vicentina Aranha haviam sido destruídos logo após terem chegado a São Paulo, sendo preservados exclusivamente os contratos de trabalho dos funcionários em vias de aposentadoria.
Os dois ‘arquivistas’ encarregados do setor (leia-se serventes semi-alfabetizados que, por problemas de saúde, haviam sido deslocados para as tarefas de arquivo), entretanto, informaram que boa parte dos prontuários de um outro sanatório mantido pela Santa Casa – o paulistano São Luiz Gonzaga, também conhecido pelo nome de Sanatório do Jaçanã – ainda resistia ao fogo. E resistia graças ao empenho dos ‘arquivistas’ que, contrariando a decisão de uma comissão médica encarregada de selecionar os lotes de registros que deveriam ser anualmente descartados, ocultavam nos labirintos do Arquivo Central um grande número de documentos que haviam sido legados à destruição. Foi assim que boa parte dos prontuários do Hospital-Sanatório São Luiz Gonzaga sobreviveu ao tempo e às condições gerais a que estão abandonados vários arquivos brasileiros.
O razoável estado de conservação do núcleo documental apresentava, em contrapartida, dificuldades materiais para a realização da pesquisa. A ausência até mesmo de cadeira e mesa para a leitura dos prontuários, o acúmulo de poeira, as baixas temperaturas, o mofo do porão transformado em depósito de documentos e a mistura parcial dos registros do sanatório com cerca de um milhão e trezentos mil outros relatórios da Santa Casa determinou que o trabalho padecesse de ritmo excessivamente lento, estendendo-se por cerca de três anos.
Quando já se tinha realizado a localização e fichamento meticuloso de cerca de quatro centenas de prontuários, o Arquivo foi interditado para a pesquisa, sendo declarado como motivo a aposentadoria inesperada dos dois servidores do órgão, vitimados por um mesmo acidente automobilístico. Poucos meses antes, a Irmandade da Santa Casa resolveu construir um novo prédio para abrigar o Arquivo, sendo que, neste recinto, um número significativo de prontuários desapareceu, pois a nova sede do Arquivo Central não só era permeável à chuva como também apresentava vãos na estrutura, condição que tornava livre o ingresso de ‘visitantes’ que, à noite, invadiam o local. Devido a estes fatos, a reprodução de alguns trechos das anotações hospitalares incorporadas nas páginas desta pesquisa representam passagens de documentos que, em parte, possivelmente já foram destruídos.
No decorrer da pesquisa no Arquivo Central da Santa Casa, deparou-se com dois tipos de registros. O primeiro deles constitui-se em uma coleção que, mesmo incompleta, alinha cerca de 12 mil fichas referentes aos tuberculosos internados no Hospital São Luiz Gonzaga entre os anos de 1932 e 1968, tempo de vida do nosocômio. Deste total, 3.438 anotações são referentes ao período que se estendeu até o final de 1945, sendo que tais fichas deveriam idealisticamente corresponder ao resumo dos principais dados contidos nos prontuários correspondentes.
O segundo núcleo documental é formado pelos prontuários propriamente ditos, onde encontram-se anotadas as anamneses realizadas pelos médicos, compostas basicamente pelas seguintes informações: a identificação social do paciente, os antecedentes bio-patológicos individual e familiar, os hábitos de vida do doente e o histórico e a sintomatologia da enfermidade a ser tratada. Para além destes dados, os prontuários ainda comportam: o exame físico do pectário, a seqüência de prescrições terapêuticas, a evolução do caso e seu desfecho, sendo possível ainda encontrar, entre as páginas de alguns laudos, os relatórios preparados pelos gabinetes de Raio-X e de odontologia, assim como os dados registrados diariamente pela equipe de enfermagem.
A comparação entre os resumos escritos nas fichas e os conteúdos anotados nos prontuários apresentam constantes divergências, sobretudo no item referente ao desenlace do caso clínico. A multiplicação de situações em que os prontuários alegavam que o paciente havia sido expulso ou se suicidado e as fichas correspondentes retificavam o dado para “alta a pedido” ou “alta clínica” apontam para um possível desvio proposital dos eventos que poderiam colocar em dúvida a imagem piedosa do sanatório religioso.
Apesar dos claros comprometimentos deste núcleo documental e da seleção praticamente aleatória dos prontuários vistoriados, os registros do sanatório paulistano da Santa Casa constituem-se em fonte ímpar de estudo. Segundo diversas comunicações orais prestadas por pesquisadores de diferentes estados do país, além de difícil localização e acesso, os prontuários antigos guardam uma surpresa: as anotações médicas são geralmente avaras em palavras, deixando em branco os itens referentes à anamnese e, freqüentemente, oferecendo informações pouco precisas sobre a terapêutica e o prognóstico do caso analisado.
Contrariando esta tendência, a documentação produzida no âmbito do Sanatório São Luiz Gonzaga mostra-se pródiga em detalhes. Isto porque esta casa de saúde funcionava nos moldes das instituições que hoje recebem a designação de ‘hospital-escola’, servindo como campo de treinamento dos alunos da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e da Escola Paulista de Medicina, aliás, como ocorreu com todo o complexo nosocomial da Santa Casa pelo menos até o final da década de 40, período em que foi inaugurado o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
Preenchidos os prontuários por um ou por vários estagiários, a inexperiência dos medicandos combinava-se com o propósito de clarear o caso, resultando em anamneses extensas e minuciosas, preservando informações pouco usuais nos registros clínicos. Nota-se ainda a constância de anotações colocadas entre aspas ou acompanhadas do alerta “sic”, fato que sugere as dificuldades encontradas pelos estudantes e pelos recém-formados em selecionar e ‘traduzir’ os depoimentos dos pacientes segundo os critérios empregados pelo registro hipocrático.
A riqueza dos dados contidos nas fontes sanatoriais dimensionou os prontuários como importante suporte desta pesquisa, colocando em questão o sentido das informações fornecidas pela série documental. As observações clínicas configuram-se como peças reveladoras da relação médico-paciente, onde o objetivo a ser alcançado compreende a individualização do processo patológico e o efetivo tratamento da enfermidade, tarefas que, para serem cumpridas, exigem um certo grau de desqualificação do paciente como personagem social. Assim, como estratégia de entendimento e intervenção no desequilíbrio orgânico, a medicina compõe registros cuja função é servir como material de comunicação privativo dos iniciados nas práticas terapêuticas e, neste encaminhamento, elabora sentenças que, ao fugir da argumentação e da dúvida, parecem a todo o instante querer negar a existência concreta do ser humano como ‘adoentado’ (Clavreul, 1983).
O caráter ritualístico da relação médico-paciente confere um sentido peculiar a este tipo de registro. O peso das imagens mútuas nutridas pelo clínico e pelo enfermo faz com que cada um deles saiba aprioristicamente o que pode ou não ser dito, bem como o que deve ser anotado na papeleta hospitalar. O prontuário constitui-se, então, formalmente, em um instrumento moldado pela ordem médica e pelo poder institucional, em que a espontaneidade da fala e da escrita estaria comprometida pelas mediações inerentes às circunstâncias, sendo esta dimensão assunto de várias análises teóricas (Britto, 1988).
Ciente dos debates em torno da especificidade e dos limites da documentação nosocomial, mesmo assim acredita-se que os prontuários elaborados pelo setor de tisiologia da Santa Casa abrem perspectivas únicas em que a história clínica se entrelaça com a trajetória existencial do doente, assim como ganha expressão a capacidade intervencionista da medicina e as reações dos clínicos em face da sucessão de relatos tristes, confidenciados pelos seus pacientes. Com isto, os prontuários revelam-se peças fundamentais para a composição de uma história social que busca abarcar as várias facetas do dilema humano orquestrado pela Peste Branca.
Para completar a soma das fontes utilizadas, buscou-se colher alguns depoimentos orais de personagens que viveram o drama sanitário, quer na condição de ‘fraco do peito’, quer no papel de indivíduos próximos dos infectados. Constituindo recurso importante para a realização da pesquisa, as vozes colocadas neste texto mostraram-se reticentes em prestar informações mais detalhadas e, quando o fizeram, cobraram sigilo absoluto sobre suas identidades, sendo que alguns revelaram-se desejosos de serem nomeados por meio de pseudônimos por eles próprios escolhidos. Mesmo assim, salienta-se que tais informações resultaram da espontaneidade dos depoentes, cabendo a eles narrarem o que achavam ‘importante’ ser confidenciado, havendo pouca interferência do pesquisador. Assim, distancia-se dos métodos específicos e das intrincadas técnicas empregadas pela História Oral.
A pluralidade de fontes exigiu que fosse dado um recorte temático às questões encontradas. Metodologicamente, foi apurando a diversidade temática que se buscou qualificar cada tipo de documento. Porque entende-se que a verdade não está nos documentos, procurou-se a confrontação, a soma e o contraste como alternativas prudentes para o exame.
Outros recursos foram usados para diversas fontes. No caso da Literatura, por exemplo, houve empenho em evidenciar a seqüência evolutiva do ‘clima de tragédia’. Neste encaminhamento, aliás, cabe salientar a universalização das vozes. Como em outros circuitos literários, o Brasil integrou o conjunto da produção sobre a tuberculose e isto basta para sugerir reflexões sobre a coerência entre o nosso contexto e os demais.
A nacionalização da problemática da Peste Branca, contudo, mereceu cuidados. Foi por tal atenção que se recorreu à leitura dos textos dos sanitaristas nacionais. Na mesma linha, a voz dos ‘esquecidos’, pobres doentes, pessoas anônimas, também foi recolhida. A formulação de um saber leigo sobre a doença e os doentes, combinada com as formas elaboradas de intervenção sanitária foram enquadradas nos processos de institucionalização do país. Assim, aspectos do ‘público’ e do ‘privado’, se combinaram gerando comportamentos do doente em face do Estado, da sociedade e de si próprio.
O enfoque do pretérito das doenças e dos doentes ainda é uma operação aceita reticentemente pelos historiadores. A disseminação do pressuposto segundo o qual as patologias constituem-se em eventos de exclusivo entendimento das Ciências Médicas teve como conseqüência a percepção de que o convívio íntimo com a enfermidade concretiza-se como experiência individual e única, portanto, de difícil análise pelos historiadores. Como resultado, durante um longo período, as Ciências Humanas acomodaram-se em atribuir ao clínico humanista a tarefa de estudo dos eventos ocorridos no passado e motivados pelos processos biológicos.
Neste contexto, a área genericamente denominada de História da Medicina acabou sendo ocupada predominantemente por pesquisas realizadas em torno de alguns poucos eixos temáticos, principalmente os orientados para a averiguação das ‘idéias antigas’ sobre as enfermidades e os remédios, das instituições médicas e das biografias dos clínicos e cirurgiões de destaque, assim como pelas abordagens gerais que inevitavelmente convergiam para os conceitos de ‘evolução’ e ‘progresso’ do arsenal curativo e preventivo. Neste último tópico, encontram-se constantes observações acerca das devastações provocadas pelas epidemias, sendo que as reações sociais frente aos desastres pestíferos têm sido registradas como ilustrações da precariedade dos recursos sanitários no tempo pretérito e, em alguns momentos, da ingenuidade do espírito humano.
O direcionamento assumido por esta vertente de análise do passado da ‘arte de curar’ prima por anunciar a medicina como uma área sintonizada com as necessidades sociais, mas ao mesmo tempo ‘neutra’ e autônoma para compor seu campo de conhecimento e sua esfera de atuação. A ótica tendencialmente internalista que instrui a História da Medicina resulta no quase total desvinculamento entre a doença e o doente, pois, enquanto os processos patológicos foram reconhecidos como eventos passíveis de alterações no tempo, o Homem enfermo foi, de regra, desqualificado como personagem histórico, dando repercussão ao preceito antigo – mas ainda em voga – segundo o qual a medicina resume-se ao ‘encontro de uma técnica científica e de um corpo’.
A cirurgia acadêmica que isolou as patologias dos seres humanos diretamente atingidos pelas enfermidades permitiu o florescimento da linha de estudo que situa o morbus e seus pesquisadores como personagens exclusivos de interesses. De Hans Zinsser a McNair Wilson, na primeira metade do século passado, até Michel Foucault, Robert Gottfried e François Delaporte, em datas mais recentes, a História da Medicina e suas ramificações produziu textos que, variáveis na metodologia e na documentação, afastaram-se do compromisso de registrar os dilemas experimentados pelos agrupamentos abatidos pelas doenças.
O pouco de atenção que o enfermo recebe ocorre quando, relegado à condição de paciente clínico, os historiadores o relacionam aos momentos exaltativos das descobertas científicas ou quando torna-se necessário exemplificar as supostas alterações morais produzidas pelo estado enfermiço. A possibilidade mais corriqueira que favorece a individualização do ‘debilitado’ está ligada às situações onde ele é registrado como o primeiro ser humano a receber o benefício de uma nova droga ou técnica desenvolvida pela medicina, sendo exemplar a consagração dos nomes dos meninos James Phipps e Joseph Meister, pelo fato de terem sido as primeiras pessoas vacinadas, respectivamente, contra a varíola e contra a raiva.
Caso diferente é protagonizado por uma Old Lady britânica que garantiu lugar nas páginas médicas como exemplo da ‘paciente leviana’, pois diariamente percorria os hospitais londrinos em busca de remédios gratuitos para tratar de várias moléstias que a importunavam, utilizando as drogas, porém, para dar sabor especial aos pastéis que ela própria vendia em praça pública.
Menções como estas ganham formatos novos quando o doente avaliado constitui-se em personagem de projeção social. Nestes casos, os distúrbios patológicos aparecem como fenômenos definidores da identidade e das ações dos enfermos, sendo que coube ao Dr. Cabanès instituir o ‘gabinete secreto da história’, consultório literário no qual desfilaram os principais nomes da política e da cultura européia moderna. Segundo as conclusões do Dr. Cabanès (1937), os adoentados sucumbiam frente ao gigantismo da doença, situando a anafrodisia de Luis XIV, a epilepsia de Luis XV e a úlcera estomacal de Napoleão, dentre outros possíveis desarranjos orgânicos e psíquicos, como os verdadeiros motores da História mundial.
A localização do Homem com a saúde debilitada como personagem de expressividade histórica mais ampla manteve-se como proposta de uma minoria de pesquisadores, dentre eles o clínico alemão Henry Sigerist. Na posição de diretor do Instituto de História da Medicina da Universidade de Leipzig, coube ao Dr. Sigerist, ainda no final dos anos 20, abrir novas perspectivas de análise, sugerindo a necessidade de conjugar as doenças aos seus tributários, enfatizando ainda a carência de pesquisas voltadas para o estudo da construção simbólica das enfermidades e da reação dos doentes frente à estigmatização (Sigerist, 1932).
No início da década de 30, a transferência do Dr. Sigerist e de alguns de seus principais auxiliares para a Johns Hopkins University, permitiu que florescesse na América do Norte um atuante centro de pesquisas de História da Medicina. Aglutinados em torno dos princípios aparentados do marxismo, pesquisadores do porte de Erwin Ackerknecht, Bernhard Stern e George Rosen – além do próprio Henry Sigerist – incentivaram a diversificação dos temas sob análise, resultando em inovadoras perspectivas para o entendimento dos fenômenos patológicos e da intervenção médica, segundo o gradiente fornecido pela organização classista da sociedade.
A multiplicação dos estudos sobre as enfermidades e também sobre as condições de vida dos agrupamentos humanos e os vínculos entre a ação médica, a política e a economia determinou que a proposta sigeristiana de análise da experiência individual com a enfermidade fosse momentaneamente preterida. No ano de 1943, novamente o Dr. Sigerist voltou a se interessar pelo tópico, mas, surpreendentemente, aproximou a identificação dos doentes da vertente assumida pela sociologia neopositivista, representada sobretudo pelos ensinamentos de Talcott Parsons.
Tomando como exemplo os tuberculosos, o clínico alemão anunciou os pectários como vítimas da pobreza material que conduzia à infecção pulmonar mas, ao mesmo tempo, generalizou todos os enfermos como indivíduos que se deixaram adoecer para assumirem um novo ‘papel social’ e, com isso, fugirem das obrigações cobradas da parcela sadia da população. Em continuidade, os Homens com a saúde abalada foram indicados como personagens perniciosos e carentes de pronta reeducação moral.
Apesar deste posicionamento, o próprio professor Sigerist (1987) reiterou, nos anos 50, a necessidade de elaboração de uma História da Medicina ‘sob a ótica do paciente’, declaração que recebeu severas críticas porque considerada como sugestão desarrazoada. Herdeiro intelectual de Henry Sigerist, George Rosen (1967) retomou a mesma proposta na década seguinte, convocando os historiadores profissionais para colaborarem nas pesquisas centradas na problemática sanitária.
Uma das primeiras cartas orientadora da participação dos historiadores na análise dos eventos instruídos pela enfermidade deveu-se à pesquisadora francesa Elizabeth Carpentier (1962). Apoiada nos núcleos documentais produzidos em torno das epidemias que assolaram a Europa e parte da Ásia no decorrer do século XIV, esta autora tematizou a quadra pestífera em várias subáreas de estudo, enfatizando a necessidade de inquirições sobre o poder médico, a reação do Estado frente às crises sanitárias e a diversidade dos comportamentos coletivos. Posicionamento semelhante impregnou os seguidores da New Social History (Grob, 1977), que indicaram como setores carentes de estudos os processos patológicos, os padrões de mortalidade e morbidade, as conseqüências institucionais das crises epidêmicas e também os papéis desempenhados pela medicina no contexto da modernização do tecido coletivo.
Paralelamente a isto, alguns pesquisadores buscaram estabelecer as possibilidades teóricas de enquadramento do doente no contexto histórico. O norte-americano William McNeill (1976) situou os agrupamentos infectados como ‘macróbios’ que não souberam se esquivar da ação patológica dos micróbios, conferindo um caráter biologizante a uma possível história dos enfermos. O francês Jacques Léonard (1981), por seu turno, classificou o estudo do pretérito dos doentes como uma ramificação da ‘história dos vencidos’, reiterando o caráter passivo e acomodado dos doentes no contexto social.
Deve-se ao médico e pesquisador espanhol Pedro Laín Entralgo (1969, 1983, 1984) uma das mais persistentes tentativas de interpretação histórica dos personagens adoentados. Autor de numerosos livros que incorporaram o enfermo na condição de paciente da clínica, Laín Entralgo tem se proposto a retraçar a trajetória deste grupo na tela das relações sociais engendradas entre os médicos e sua clientela. Avizinhando-se do idealismo neokantiano, este estudioso tem apoiado suas análises nas fontes consagradoras dos compromissos éticos que unem os personagens aproximados pela condição doentia, resultando em versões caricaturais da ‘realidade do ser’, isto porque frutos de enfoques distanciados das conjunturas históricas específicas.
As dificuldades de diálogo com os ‘tipos’ carentes de saúde exigiu que pesquisadores contornassem suas limitações por meio da exploração de tópicos correlatos à existência enferma. Além dos estudos clínico-epidemiológicos e dos ensaios quantitativistas elaborados pela Demografia e pela Sociologia, o congraçamento celebrado nas últimas décadas entre a História e a Antropologia permitiu que, seguindo as pegadas de Marcel Mauss e Mary Douglas, aflorasse uma gama de estudos sobre o corpo como substitutivo parcial das análises englobadoras das enfermidades e dos enfermos. Adotado pela Nouvelle Histoire, tal encaminhamento tende a simplificar demasiadamente a convivência íntima com a enfermidade, sendo significativo que um dos primeiros textos a propor esta vertente de pesquisa ostente o seguinte título: “O corpo: o homem doente e sua história” (Revel, 1976, 1978).
As pesquisas instruídas pela tísica e pelos pectários refletem integralmente as limitações desta área do conhecimento. Assinalada insistentemente nas histórias gerais da medicina e nos ensaios monográficos, a Peste Branca e seus desdobramentos têm sido objeto de extenso tratamento descritivo, havendo entretanto pouca atenção dos pesquisadores acerca da reação dos tuberculosos frente à enfermidade, inclusive porque durante as últimas décadas e até o advento da Aids, a tísica foi considerada como ‘doença dos países pobres’ e, por contraste, ameaça ‘sob controle’ nas sociedades mais abastadas.
Neste contexto, apenas os relatórios orientados por Roland Barthes e enfeixados no livro Histoires de la Tuberculose buscaram conceder algum destaque às memórias e recordações dos doentes do peito que ganharam projeção social, havendo em anexo uma copiosa lista composta pelos nomes de ‘tísicos ilustres’, tendência herdada da produção acadêmica anterior. Apesar da proposta inovadora, esta obra define-se mais pelo empenho de suas autoras em conceder oportunidade de expressão aos agrupamentos médicos, limitando o espaço para os pronunciamentos daqueles que foram supliciados pela intimidade forçada com a moléstia kochiana (Grellet, 1983).
Um balanço sobre a historiografia européia e norte-americana permitiu ao historiador Jacques Le Goff e ao médico Jean-Charles Sournia (1985) declararem, sem qualquer dificuldade, que as ‘doenças têm uma história’, observando o recente acúmulo de pesquisas sobre o tema.
Em contraposição, as sociólogas Claudine Herzlich e Janine Pierret (1984) alertaram sobre a existência de uma história da medicina desumanizada, registrando a ausência de estudos com base na trajetória de vida dos indivíduos e dos grupos assolados pelas enfermidades. No final das verificações sobre a historiografia estrangeira, parece irônico afirmar que os pesquisadores já produziram inclusive excelentes histórias dos cadáveres, sem contudo ainda atentarem para a necessidade de estudos centrados nas vidas dos adoentados.
Refletindo a tendência internacional, a História e as Ciências Sociais brasileiras mostraram-se reticentes em assumir a temática da doença e dos doentes. Neste contexto, destaca-se a dissertação de mestrado em Ciências Sociais do sociólogo Oracy Nogueira (1945) e consideravelmente revista na publicação datada de 1950 que, versando sobre a experiência grupal com a tuberculose, permaneceu como exceção acadêmica por um longo período. Explorado na minha pesquisa tanto como obra de referência quanto como fonte primária, o texto do professor Nogueira ganha dimensão histórica própria, tornando-se indispensável para o conhecimento das vítimas da Peste Branca no período anterior ao advento da estreptomicina.
Em anos mais recentes, algumas tentativas foram levadas a cabo no sentido de recuperar o condicionamento social da existência tísica. A pesquisadora Alice Marques (1983) buscou verificar a eficiência dos canais de comunicação entre os assistentes sociais e os pectários, ambientando seu trabalho em uma unidade hospitalar especializada, sem contudo orientar seu estudo para a análise dos pectários no cenário social mais amplo.
Ao mesmo tempo, o epidemiologista Antonio Ruffino Netto e o sociólogo José Carlos Pereira (1981;1985) buscaram contextualizar a existência dos doentes do peito, definindo genericamente o tuberculoso como ‘um Homem histórico, concreto, que preenche um lugar no tempo e no espaço’, concepção articulada ao entendimento da saúde e da doença como fenômenos explicados pelas ‘relações globais’ ao nível da ‘realidade social concreta’. Infelizmente, estes autores apenas sinalizaram as possibilidades de tratamento histórico dos pectários, desviando suas análises para o campo de ‘determinação social’ da Peste Branca.
Neste contexto, destaca-se o importante estudo realizado pela pesquisadora Ângela Pôrto (1997) sobre as repercussões da tuberculose na trajetória pessoal e profissional do poeta Manuel Bandeira. Seguindo as trilhas abertas pela recente História Social, esta estudiosa lançou novas luzes sobre as relações possíveis entre doença, trajetória individual e sociedade, aflorando como iniciativa original assinada por uma profissional da História.
O quase silêncio dos historiadores acerca dos doentes não é um fenômeno isolado. Compartilhado por outras áreas científicas e até mesmo por uma ampla parcela da comunidade hipocrática, as questões sociais e sobretudo os dilemas existenciais suscitados pelos agrupamentos de enfermos parecem receber respostas furtivas, revelando as dificuldades de incorporação dos adoentados tanto nos debates acadêmicos quanto nas discussões administrativas e de políticas públicas.
Em conseqüência, ainda são recentes e lacunares as tentativas de conferir direitos específicos aos indivíduos com a saúde abalada, inclusive o privilégio de conhecer em detalhes as alternativas terapêuticas apropriadas para o seu caso e os riscos inerentes às opções selecionadas pela medicina. De regra, tudo ocorre como se o paciente fosse privado de discernimento próprio, cabendo ao médico e a um ‘responsável’ pelo doente a tarefa de resolver as questões suscitadas pela enfermidade. Assim, a apatia dos historiadores revela-se como uma das facetas do isolamento social a que são relegados os grupos tocados pelos desarranjos de fundo orgânico e/ou psíquico.
A ausência de análises que situam a Peste Branca e suas vítimas como elementos de uma mesma problemática histórica, no tocante ao contexto brasileiro, produz a sensação de que tudo ainda está por ser feito. Por isso, antes de focar os personagens consuntivos, impõe-se a necessidade de fixar o cenário. Cenário que se torna fundamental para a compreensão das atitudes individuais e coletivas frente ao dilema sanitário. Com isso, a pesquisa ganha sentido e extensão bem mais abrangentes que o inicialmente programado, permitindo o enquadramento da História Social da Doença e do Doente na ampla teia do pretérito nacional.
Assim, tomando-se como opção o enquadramento dos doentes como ativos participantes da vida cotidiana, advoga-se que a luta contra a doença que mina o organismo encontra continuidade nas respostas individuais e coletivas frente ao isolamento e à estigmatização. Seguindo esta linha de entendimento, a História Social da Tuberculose e do Tuberculoso ganha novos ramais, fluindo para o estudo das reações produzidas pelos impulsos estigmatizadores. Reações estas que não obedecem sentido único, seguindo caminhos múltiplos e contrastantes que, no final, mostravam-se como estratégias para ressaltar a própria condição humana que muitas vezes era negada aos pectários.
As lacunas deixadas pela historiografia mostram-se flagrantes para os estudiosos da doença e dos doentes. Desafios permanecem, mas, sem dúvida, os caminhos estão dispostos. Seguindo esse pressuposto, desenvolveu-se este livro. Nele conta-se um pouco da história da tuberculose, dos fracos do peito e também da sociedade brasileira. Sob tal égide, o autor se colocou como um atento ouvinte dos personagens aproximados pela tísica, compartilhando os medos, as esperanças de todos e sobretudo o desespero de uma legião de infectados que lutava contra a decretação da morte social, bem antes da visita do Ceifeiro Implacável.