por António Lobo Antunes
Ao redigir O Som e a Fúria já William Faulkner, então com 32 anos, se libertara da influência de Huxley e de Joyce, patente nos dois primeiros romances (A Paga do Soldado e Mosquitos) e, a conselho de Sherwood Anderson, que conseguira fazer-lhe publicar a primeira novela («Arranjo-te um editor na condição de não me obrigares a ler o que escreveste»), se voltara para o seu Sul natal. O Som e a Fúria, dado à estampa em 1929, é o seu trabalho mais audacioso e, sem dúvida, uma das obras mais importantes deste século.
A narrativa, que se ocupa da decadência e desintegração da família Compson, divide-se em quatro partes. A primeira é contada por um idiota incapaz de falar, Benjy, cujas associações se fazem por cheiros, cores e imagens. Faulkner ajuda o leitor alterando o tipo de letra para itálico sempre que acontece uma mudança de tempo, mas caminha-se às cegas ao longo do nevoeiro dessas páginas, tanto mais que, por exemplo, o nome de Quentin cobre duas personagens diferentes, tio e sobrinha, e Benjy se chamava originariamente Maury, nome que partilha com o irmão da mãe. Nas segunda e terceira partes o nevoeiro principia a dissipar-se: na segunda, ocorrida dezoito anos antes, é o irmão mais velho de Benjy, Quentin, que toma a palavra, para descrever a véspera do seu suicídio, e na terceira outro irmão, Jason, prossegue a descrição do conflito familiar. Chegados à quarta parte, na terceira pessoa, o nevoeiro dissipa-se por completo, e a história surge, inteira, à nossa frente, fazendo-nos compreender todo o longo relato que a antecede. Entendemos de súbito o que se nos afigurava estranho e confuso, e todo o quadro se abre luminosamente perante nós. O Som e a Fúria possui a qualidade de ser um romance que, tal como a grande poesia, se relê no maravilhamento da descoberta: a todo o passo damos com pormenores que nos haviam passado despercebidos, em cada página nos emocionamos. Já visitei este livro mais de 30 vezes, e continuarei decerto a fazê-lo com o mesmo deslumbramento e o mesmo entusiasmo.
27 de Janeiro de 1994