7.

Inés jamais gostou de levantar cedo. Porém, depois de três semanas na fazenda com pouca coisa para fazer além de conversar com Roberta e esperar o menino voltar, ela se levanta uma segunda-feira de manhã a tempo de ir com eles à cidade. Seu primeiro destino é um cabeleireiro. Depois, sentindo-se melhor consigo mesma, ela para numa loja de roupas femininas e compra um vestido novo. Conversando com a caixa, descobre que estão procurando uma vendedora. Num impulso, se aproxima da proprietária e ela lhe oferece a vaga.

De repente, a necessidade de mudar da fazenda para a cidade se torna urgente. Inés assume a caça por uma acomodação, e dias depois encontra um apartamento. O apartamento em si é neutro, o bairro tristonho, mas dá para ir a pé até o centro da cidade e há um parque próximo onde Bolívar pode se exercitar.

Eles embalam seus pertences. Pela última vez, ele, Simón, sai pelo campo. É o pôr do sol, a hora mágica. As aves cantam nas árvores se acomodando para dormir. De longe, chega o tilintar de sinetas de carneiros. Ele pergunta a si mesmo se está certo deixarem aquele lugar que foi tão bom para eles?

Despedem-se. “Esperamos que vocês voltem para a colheita”, diz Roberta. “É uma promessa”, diz ele, Simón. Para a señora Consuelo (a señora Valentina está ocupada, a señora Alma lutando com seus demônios) ele diz: “Nem sei dizer o quanto sou grato à senhora e a suas irmãs por sua grande generosidade”; ao que a señora Consuelo responde: “Não é nada. Em outra vida, você vai fazer o mesmo por nós. Até logo, Davíd, meu menino. Esperamos ver o seu nome nos luminosos”.

Na primeira noite em sua nova casa, têm de dormir no chão, já que a mobília que encomendaram ainda não foi entregue. De manhã, compram alguns itens básicos de cozinha. Estão ficando sem dinheiro.

Ele, Simón, arruma um emprego, pago por hora, entregando material de publicidade nas casas. Junto com o emprego vem uma bicicleta, uma máquina pesada, rangente, com uma grande cesta presa sobre a roda dianteira. É um dos quatro entregadores (raramente cruza com os outros três); a área determinada para ele é o quadrante nordeste da cidade. Durante o horário de escola, ele percorre as ruas de seu quadrante, enfiando panfletos em caixas de correio: aulas de piano, remédios para calvície, poda de cercas vivas, consertos elétricos (preços competitivos). Até certo ponto, é um trabalho interessante, bom para a saúde e não desagradável (embora tenha de empurrar a bicicleta nas ruas mais íngremes). É um jeito de conhecer a cidade e também um meio para conhecer gente, fazer novos contatos. O som de um galo cantando o leva ao quintal de um homem que cria galinhas; o homem passa a lhe fornecer um frango por semana, ao preço de cinco reales, e por um real a mais ele mata e prepara a ave também.

Mas o inverno chega e ele odeia os dias chuvosos. Mesmo equipado com uma grande capa impermeável e chapéu de marinheiro impermeável, a chuva acha um jeito de se infiltrar. Com frio e encharcado, ele às vezes sente a tentação de jogar fora os panfletos e devolver a bicicleta ao depósito. Fica tentado, mas não cede. Por que não? Ele não tem certeza. Talvez porque sinta certa obrigação com a cidade que lhes ofereceu uma nova vida, embora não fique claro para ele como uma cidade, que não sente nada, nem tem sentimentos, possa se beneficiar com a distribuição a seus cidadãos de anúncios de faqueiros com vinte e quatro peças apresentadas em belas caixas a preços muito, muito baixos.

Pensa nos Arroyo, marido e mulher, para cuja manutenção ele dá uma pequena contribuição, pedalando na chuva. Embora ainda não tenha tido a oportunidade de distribuir anúncios para a Academia deles, o que o casal oferece — substituir o aprendizado da tabuada por uma dança para as estrelas — não é de natureza diferente daquilo que é prometido pela loção que milagrosamente devolve a vida aos folículos capilares ou o cinto vibratório que milagrosamente dissolve gordura corporal, molécula a molécula. Assim como Inés e ele, os Arroyo devem ter chegado a Estrella sem nada além dos pertences mais essenciais; também devem ter passado uma noite dormindo em cima de jornais ou algo assim; também devem ter se virado até a Academia dar certo. Talvez, como ele, o señor Arroyo tenha tido de passar algum tempo enfiando panfletos em caixas de correio; talvez Ana Magdalena da pele de alabastro tenha precisado se pôr de joelhos e lavar pisos. Uma cidade atravessada por trilhas de imigrantes: se eles todos não vivessem com esperança, se não tivessem cada um o seu tanto de esperança para acrescentar à grande soma, onde estaria Estrella?

Davíd traz para casa um Aviso aos Pais. Haverá uma apresentação aberta na Academia. O señor e a señora Arroyo vão apresentar aos pais a filosofia educacional da Academia, os alunos farão uma apresentação, depois da qual haverá uma recepção. Os pais estão convidados a trazer amigos que possam ter interesse. A sessão começará às dezenove horas.

Nessa noite, o público é decepcionantemente escasso, não mais de vinte pessoas. Das cadeiras que foram colocadas, muitas ficam vazias. Ao tomar seus lugares na primeira fila, ele e Inés escutam os jovens artistas cochichando e rindo atrás da cortina fechada no extremo oposto do estúdio.

Com vestido de noite escuro e um xale sobre os ombros nus, a señora Arroyo aparece. Durante um longo momento, fica parada em silêncio diante eles. Mais uma vez, ele fica impressionado com seu porte, sua beleza calma.

Ela fala. “Sejam bem-vindos, todos vocês; muito obrigada por terem comparecido nesta noite fria e úmida. Hoje vou falar um pouco de nossa Academia e do que meu marido e eu esperamos conseguir com nossos alunos. Para tanto, será necessário traçar um breve perfil da filosofia da Academia. Os que já conhecem, por favor me perdoem.

“Como sabemos, desde o dia em que chegamos a esta vida, deixamos para trás nossa existência passada. Esquecemos dela. Mas não inteiramente. De nossa existência anterior, trouxemos certos resquícios: não lembranças no sentido usual da palavra, mas o que chamamos de sombras de lembranças. Então, quando nos habituamos a nossa nova vida, até essas sombras se apagam, até termos esquecido inteiramente nossa origem e aceitado que aquilo que nossos olhos veem é a única vida que existe.

“A criança, porém, a criança nova, ainda guarda impressões profundas de sua vida anterior, sombras de lembranças que ela não tem palavras para expressar. Não tem palavras porque, junto com o mundo que perdemos, perdemos uma linguagem adequada para evocá-lo. Tudo o que resta é aquela linguagem primal de um punhado de palavras que chamo de transcendentais, dentre as quais os nomes dos números, uno, dos, tres são as principais.

Uno-dos-tres: são apenas um canto que aprendemos na escola, um canto sem sentido que chamamos de contar, ou existe um jeito de ver através do canto aquilo que existe por trás e além dele, ou seja, o campo dos números em si, os números nobres e seus auxiliares, excessivos para se contar, tantos quantos as estrelas, números nascidos da junção dos números nobres? Nós, meu marido, eu e nossos auxiliares, acreditamos que existe esse jeito. Nossa Academia se dedica a conduzir a alma de nossos alunos para esse campo, a sintonizá-los com o grande movimento subjacente do universo, ou, como preferimos dizer, a dança do universo.

“Para fazer os números descerem de onde residem, para permitir que se manifestem em nosso meio, para lhes dar corpo, contamos com a dança. Sim, aqui em nossa Academia nós dançamos, não de um modo deselegante, carnal ou desordenado, mas corpo e alma juntos, para trazer os números à vida. Assim como a música nos penetra e nos leva a dançar, também os números deixam de ser meras ideias, meros fantasmas e se tornam reais. A música evoca sua dança e a dança evoca sua música: uma não vem antes da outra. Por isso nós nos consideramos tanto uma academia de música como uma academia de dança.

“Se minhas palavras esta noite parecem obscuras, queridos pais, queridos amigos da Academia, isso só revela o quanto as palavras são frágeis. Palavras são frágeis… por isso nós dançamos. Na dança convocamos os números de onde eles vivem entre as estrelas distantes. Nos rendemos a eles na dança, e enquanto dançamos, por obra deles, eles vivem entre nós.

“Alguns de vocês, posso ver em seus rostos, são céticos. O que são esses números de que ela fala e que vivem entre as estrelas?, os senhores murmuram uns para os outros. Eu não uso números todo dia quando faço negócios ou compro legumes? Os números não são humildes servidores?

“Eu respondo: os números que os senhores têm em mente, os números que usamos quando compramos e vendemos, não são números de verdade, mas simulacros. São o que chamamos de números formiga. Formigas, como sabemos, não têm memória. Nascem do pó e morrem no pó. Esta noite, na segunda parte de nossa apresentação, os senhores verão nossos jovens alunos fazendo o papel de formigas, realizando as operações formigas que chamamos de baixa aritmética, a aritmética que usamos em nossas contas domésticas e assim por diante.”

Formigas. Baixa aritmética. Ele se volta para Inés. “Está entendendo isso?”, ele sussurra. Mas Inés, lábios comprimidos, olhos apertados, observando Ana Magdalena com intensidade, se recusa a responder.

Pelo canto dos olhos, ele espia Dmitri, meio escondido na sombra da porta. Que interesse pode Dmitri ter pela dança dos números, Dmitri, o urso? Mas é claro que está interessado é na pessoa da palestrante.

“Formigas são criaturas obedientes à lei”, Ana Magdalena está dizendo. “As leis que elas obedecem são as leis da adição e da subtração. É só isso que fazem, dia e noite durante cada hora do dia: cumprem a sua lei mecânica, dupla.

“Em nossa Academia, não ensinamos a lei da formiga. Sei que alguns de vocês estão preocupados com esse fato, o fato de não ensinarmos nossos alunos a jogar jogos de formiga, somando números a números e assim por diante. Eu espero que entendam por quê. Não queremos que nossos alunos se transformem em formigas.

“Basta. Obrigada por sua atenção. Por favor, deem as boas-­-vindas aos nossos intérpretes.”

Ela faz um sinal e dá um passo de lado. Dmitri, usando a farda do museu, que pela primeira vez está bem abotoada, avança e abre as cortinas, primeiro a da esquerda, depois a da direita. Ao mesmo tempo, do alto, vêm os sons abafados de um órgão.

Em cena, uma única figura se revela, um menino de talvez onze ou doze anos, usando sapatilhas douradas e uma toga branca que deixa um ombro nu. Braços erguidos acima da cabeça, ele olha ao longe. Enquanto o organista, que só pode ser o señor Arroyo, toca uma série de floreios, ele mantém essa postura. Então, acompanhando a música, começa sua dança. A dança consiste em deslizar de um ponto a outro do palco, às vezes devagar, às vezes depressa, chegando a uma quase parada em cada ponto, mas sem parar de fato. O desenho da dança, a relação de cada ponto com o seguinte, é obscura; os movimentos do menino são graciosos, mas sem variedade. Ele, Simón, logo perde o interesse, fecha os olhos e se concentra na música.

As notas altas do órgão são minúsculas, as notas baixas não têm ressonância. Mas a música em si toma conta dele. Baixa a calma; sente que algo dentro dele (sua alma?) segue o ritmo da música e se movimenta acompanhando. Cai num leve transe.

A música fica mais complexa, depois simples de novo. Ele abre os olhos. Aparece no palco um segundo bailarino, de aparência tão semelhante ao primeiro que deve ser seu irmão mais novo. Ele se ocupa em deslizar de um ponto invisível para outro. De vez em quando, os caminhos dos dois se cruzam, mas parece nunca haver qualquer perigo de colidirem. Sem dúvida ensaiaram tantas vezes que sabem de cor os movimentos um do outro; mas parece haver ali mais do que isso, uma lógica que determina a sua passagem, uma lógica que ele não consegue captar direito, embora se sinta a ponto de fazê-lo.

A música chega ao fim. Os dois bailarinos atingem seus pontos-finais e retomam as posturas estáticas. Dmitri puxa a cortina esquerda, depois a direita. Há um aplauso esparso da plateia, ao qual ele se junta. Inés também está aplaudindo.

Ana Magdalena avança de novo. Há nela um brilho que ele está disposto a acreditar que tenha sido produzido pela dança, ou pela música, ou pela dança e pela música juntas; de fato, ele sente certo brilho em si mesmo.

“O que vocês acabaram de ver são o Número Três e o Número Dois, dançados por dois dos nossos alunos mais velhos. Para encerrar a performance desta noite, nossos alunos mais novos farão a dança da formiga de que falei antes.”

Dmitri abre as cortinas. Diante deles, enfileirados, estão oito crianças, meninas e meninos, usando shorts e camiseta e gorros verdes com antenas ondulantes para indicar sua natureza de formiga. Davíd é o primeiro da fila.

O señor Arroyo toca uma marcha ao órgão, enfatizando o ritmo mecânico. Com grandes passos à direita e à esquerda, para trás e para a frente, as formigas se recolocam de uma fila de oito em uma matriz de quatro fileiras em duas colunas. Eles mantêm suas posições durante quatro tempos, marchando no lugar; depois, se recolocam em uma nova matriz de duas fileiras em quatro colunas. Mantêm essa posição, marchando; depois se transformam em uma única fila de oito. Mantêm essa posição, marchando; então, de repente, rompem as fileiras, e quando a música abandona o ritmo staccato e se torna um único acorde maciço e dissonante depois do outro, correm pelo palco com os braços abertos como asas, quase se chocando (e num caso real­mente se chocam e caem ao chão num paroxismo de risos). Depois o ritmo constante da marcha se afirma de novo e rapidamente as formigas se recolocam na coluna de oito original.

Dmitri fecha as cortinas e fica parado ali, rindo. A plateia aplaude ruidosamente. A música não para. Dmitri abre a cortina para revelar os insetos ainda marchando em fila. Aplauso redobrado.

“O que você acha?”, ele pergunta a Inés.

“O que eu acho? Eu acho que se ele está feliz, é só isso que importa.”

“Eu concordo. Mas o que você achou do discurso? O que você achou…”

Davíd interrompe, corre até eles acalorado, excitado, ainda usando as antenas moles. “Vocês me viram?”, ele pergunta.

“Claro que vimos”, diz Inés. “Nós ficamos muito orgulhosos. Era o líder das formigas!”

“Eu era o líder, mas as formigas não são boas, elas só marcham. A Ana Magdalena diz que da próxima vez eu posso dançar uma dança de verdade. Mas tenho de praticar muito.”

“Isso é bom. Quando é a próxima vez?”

“O próximo concerto. Posso comer um pedaço de bolo?”

“Quantos você quiser. Não precisa perguntar. O bolo é para todos nós.”

Ele olha em torno, procurando o señor Arroyo. Está curioso para encontrar com o homem e descobrir se ele também acredita em um campo superior onde moram os números, ou se ele simplesmente toca o órgão e deixa a parte transcendental por conta da esposa. Mas o señor Arroyo não está em lugar nenhum: os poucos homens na sala são claramente pais como ele.

Inés está conversando com uma das mães. Ela o chama. “Simón, esta é a señora Hernández. O filho dela também era formiga. Este é meu amigo Simón.”

Amigo: amigo. Uma palavra que Inés nunca usou antes. É isso que ele é, o que se tornou?

“Isabella”, diz a señora Hernández. “Por favor, me chame de Isabella.”

“Inés”, diz Inés.

“Eu estava cumprimentando a Inés pelo seu filho. Ele é um bailarino muito seguro, não é?”

“Ele é uma criança muito segura”, diz ele, Simón. “Sempre foi assim. Como pode imaginar, não deve ser fácil ensinar a ele.”

Isabella olha para ele intrigada.

“Ele é seguro, mas a segurança dele nem sempre é bem fundamentada”, ele continua, começando a se atrapalhar. “Ele acredita que tem poderes que não tem de fato. Ainda é muito novo.”

“Davíd aprendeu a ler sozinho”, diz Inés. “Sabe ler o Dom Quixote.”

“Em versão condensada, para crianças”, ele diz, “mas é verdade, sim, ele aprendeu a ler sozinho, sem qualquer ajuda.”

“Não são muito propensos à leitura aqui na Academia”, diz Isabella. “Dizem que a leitura vem depois. Enquanto são novos é só dança, música e dança. Mesmo assim, ela é convincente, não é, Ana Magdalena? Fala muito bem. Não acharam?”

“O que acha do campo mais alto de onde os números descem sobre nós, o sagrado Número Dois e o sagrado Número Três, você entendeu essa parte?”, ele pergunta.

Um menino pequeno, que deve ser filho de Isabella, se junta a eles, os lábios circundados de chocolate. Ela encontra um lenço de papel e limpa sua boca, ao que ele se submete pacientemente. “Vamos tirar essas orelhas engraçadas e devolver para Ana Magdalena”, ela diz. “Não pode ir para casa parecendo um inseto.”

A noite termina. Ana Magdalena está parada à porta, se despedindo dos pais. Ele aperta sua mão fresca. “Por favor, agradeça por mim ao señor Arroyo”, ele diz. “Pena que não pudemos encontrar com ele. É um bom músico.”

Ana Magdalena assente. Por um instante seus olhos azuis fixam os dele. Ela enxerga dentro de mim, ele pensa, com um sobressalto. Ela enxerga dentro de mim e não gosta de mim.

Isso o magoa. Não é uma coisa a que esteja acostumado, antipatizarem com ele, e além do mais ser antipatizado sem razão. Mas talvez não seja uma antipatia pessoal. Talvez a mulher antipatize com os pais de todos os seus alunos, como rivais à sua autoridade. Ou talvez ela simplesmente antipatize com homens, com todos menos com o invisível Arroyo.

Bem, se ela antipatiza com ele, ele também antipatiza com ela. Isso o surpreende: não é frequente ele sentir antipatia por uma mulher, principalmente uma mulher bonita. E essa mulher é bonita, sem dúvida nenhuma, com o tipo de beleza que suporta o exame mais minucioso: traços perfeitos, pele perfeita, corpo perfeito, postura perfeita. Ela é linda e, no entanto, o repele. Ela pode ser casada, mas ele a associa mesmo assim à lua e a sua luz fria, com uma cruel e persecutória castidade. Será sensato entregar seu menino, qualquer menino, de fato qualquer menina, nas mãos dela? E se ao final do ano a criança sair das mãos dela tão fria e persecutória quanto ela? Porque é assim que ele a julga: a sua religião das estrelas e sua estética geométrica da dança. Sem sangue, sem sexo, sem vida.

O menino adormeceu no banco de trás do carro, a barriga cheia de bolo e limonada. Mesmo assim, ele hesita em comentar com Inés o que pensa: até no sono mais profundo o menino parece escutar o que acontece à sua volta. Então ele fica de boca fechada até que o menino esteja acomodado em segurança em sua cama.

“Inés, tem certeza que fizemos o certo?”, ele pergunta. “Não devíamos procurar uma escola que seja um pouco menos… extrema?”

Inés não diz nada.

“Não consegui entender o sentido da palestra da señora”, ele insiste. “O que entendi, achei um pouco louco. Ela não é uma professora, é uma pregadora. Ela e o marido inventaram uma religião e agora estão caçando fiéis. O Davíd é muito novo, muito impressionável para ser exposto a esse tipo de coisa.”

Inés fala. “Quando eu era professora, nós tínhamos o señor C, o carteiro que assobia, e o G, o gato que ronrona, o T, o trem que apita. Cada letra tinha sua própria personalidade e seu próprio som. Construíamos palavras juntando as letras, uma depois da outra. É assim que se ensina crianças pequenas a ler e escrever.”

“Você era professora?”

“Dávamos aulas em La Residencia, para os filhos dos empregados.”

“Você nunca me contou isso.”

“Cada letra do alfabeto tinha uma personalidade. Agora ela está dando personalidade aos números também, a Ana Magdalena. Uno, dos, tres. Fazendo eles ganharem vida. É assim que se ensina crianças pequenas. Não é religião. Vou deitar. Boa noite.”

Cinco alunos da Academia são internos, os outros apenas passam o dia. Os internos ficam com os Arroyo porque são de distritos da província muito distantes para viajar todos os dias. Esses cinco, junto com o jovem assistente e os dois filhos do señor Arroyo, recebem almoços adequados, à mesa, que Ana Magdalena prepara. Os alunos externos levam seu próprio almoço. À noite, Inés prepara a lancheira de Davíd para o dia seguinte e põe na geladeira: sanduíches, uma maçã ou banana, mais uma guloseima, um chocolate ou biscoito.

Uma noite, quando ela está preparando a lancheira, Davíd fala: “Umas meninas da escola não comem carne. Dizem que é cruel. É cruel, Inés?”.

“Se você não comer carne não vai ficar forte. Não vai crescer.”

“Mas é cruel?”

“Não, não é cruel. Os animais não sentem nada quando são abatidos. Eles não têm sentimentos como nós.”

“Eu perguntei pro señor Arroyo se era cruel e ele disse que os animais não sabem fazer silogismos, então não é cruel. O que quer dizer silogismo?”

Inés fica pasma. Ele, Simón, intervém. “Acho que o que ele quer dizer é que animais não têm pensamento lógico como nós. Eles não conseguem fazer inferências lógicas. Não entendem que estão sendo mandados para o abatedouro, mesmo quando todas as evidências apontam nessa direção, então não sentem medo.”

“Dói?”

“Ser abatido? Não, não se o abatedor for habilidoso. Do mesmo jeito que não dói quando você vai ao médico, se o médico for habilidoso.”

“Então não é cruel, não é?”

“Não, não é especialmente cruel. Um boi grande, forte, não sente quase nada. Para o boi é como uma picada de alfinete. E daí não sente mais nada.”

“Mas por que ele tem de morrer?”

“Por quê? Porque eles são como nós. Nós somos mortais, eles também, e seres mortais têm de morrer. Era isso que o señor Arroyo queria dizer quando fez a piada sobre silogismos.”

O menino balança a cabeça, impaciente. “Por que eles têm de morrer pra dar a carne deles pra gente?”

“Porque é isso que acontece quando se corta um animal: ele morre. Se você corta o rabo de uma lagartixa, cresce um rabo novo. Se você corta a perna, ela sangra até morrer. Davíd, não quero que fique pensando nessas coisas. Bois são criaturas boas. Eles gostam da gente. Na língua lá deles, eles dizem: Se o menino Davíd precisa comer minha carne para crescer forte e saudável, então eu dou para ele de boa vontade. Não é mesmo, Inés?”

Inés assente.

“Então por que nós não comemos gente?”

“Porque é nojento”, diz Inés. “Por isso.”