10.

A viagem ao lago marca mais um esfriamento nas relações entre ele e Inés. Logo depois, ela informa que vai tirar uma semana de folga para passar algum tempo em Novilla com os irmãos. Sente falta dos irmãos, está pensando em convidá-los para vir a Estrella.

“Seus irmãos e eu nunca nos demos bem”, ele diz. “Principalmente o Diego. Se eles vierem ficar com você, vou ter que me mudar.”

Inés não protesta.

“Me dê algum tempo para encontrar um lugar para mim”, ele diz. “Prefiro não informar isso ao Davíd, não ainda. Você concorda?”

“Casais se divorciam todos os dias e os filhos sobrevivem”, diz Inés. “Davíd terá a mim, terá você, só não vamos estar vivendo juntos.”

Ele agora conhece o noroeste da cidade como a palma da mão. Não tem dificuldade para encontrar um quarto na casa de um casal idoso. As instalações são rudimentares, a eletricidade tende a falhar imprevisivelmente, mas o quarto é barato e tem entrada própria, perto do centro da cidade. Enquanto Inés está no trabalho, ele tira suas coisas do apartamento e se instala em seu novo lar.

Embora ele e Inés demonstrem uma amizade matrimonial para o menino, ele não se deixa enganar nem por um minuto. “Onde estão as suas coisas, Simón?”, ele pergunta; diante do que Simón tem de admitir que, por enquanto, mudou-se para dar lugar para Diego e talvez Stefano também.

“O Diego vai ser meu tio ou meu pai?”, o menino pergunta.

“Vai ser seu tio, como sempre foi.”

“E você?”

“Eu vou ser o que sempre fui. Eu não mudo. As coisas mudam à minha volta, mas eu sou imutável. Você vai ver.”

Se fica abalado com a ruptura entre Inés e ele, Simón, o menino não dá sinal disso. Ao contrário, está efervescente, cheio de histórias sobre a vida na Academia. Ana Magdalena tem uma máquina de waffle e faz waffles para os internos toda manhã. “Você precisa comprar uma máquina de waffle, Inés, é brilhante.” Alyosha assumiu a leitura das histórias na hora de dormir sobre três irmãos e sua busca pela espada Madragil, que também é brilhante. Atrás do museu, Ana Magdalena tem um jardim com um cercado onde ela cria coelhos, galinhas e um carneiro. Um dos coelhos é malvado e fica cavoucando para escapar. Uma vez o encontraram escondido no porão do museu. Seu animal favorito é o carneiro, que se chama Jeremias. Jeremias não tem mãe, então tem de tomar leite de vaca de um frasco com uma teta de borracha. Dmitri deixa que ele segure o frasco para Jeremias.

“Dmitri?”

Dmitri, por sua vez, é o encarregado de cuidar do viveiro da Academia, assim como é encarregado de trazer lenha do porão para o forno grande e esfregar o banheiro depois que as crianças tomaram banho.

“Achei que Dmitri trabalhava no museu. As pessoas do museu sabem que Dmitri trabalha para a Academia também?”

“O Dmitri não quer dinheiro. Ele faz isso pela Ana Magdalena. Ele faz qualquer coisa por ela porque ama e adora ela.”

“Ama e adora: é isso que ele diz?”

“É.”

“Sei, que bom. É admirável. O que me preocupa é que o Dmitri pode estar prestando esses serviços por amor e adoração durante o tempo que é pago pelo museu para tomar conta dos quadros. Mas chega de Dmitri. O que mais tem para nos contar? Você gosta de ser interno? Nós tomamos a decisão certa?”

“Tomaram, sim. Quando tenho pesadelo, eu acordo o Alyosha e ele me deixa dormir na cama dele.”

“É só você que dorme na cama do Alyosha?”, Inés pergunta.

“Não, qualquer um que tenha pesadelo pode dormir com o Alyosha. Ele disse isso.”

“E o Alyosha? Na cama de quem vai dormir quando é ele que tem pesadelos?”

O menino não acha engraçado.

“E a dança?”, pergunta ele, Simón. “Como está indo a sua dança?”

“A Ana Magdalena disse que sou o melhor bailarino de todos.”

“Isso é muito bom. Quando vou conseguir te convencer a dançar para mim?”

“Nunca, porque você não acredita.”

Você não acredita. No que ele tem de acreditar para que o menino dance para ele? Naquela enrolação sobre as estrelas?

Eles comem juntos — Inés fez o jantar —, depois é hora de ele ir embora. “Boa noite, meu menino. Eu passo de manhã. Podemos levar o Bolívar para dar uma volta. Talvez tenha um jogo de futebol no parque.”

“A Ana Magdalena falou que se você é bailarino não pode jogar futebol. Diz que pode sobrecarregar os músculos.”

“Ana Magdalena sabe muitas coisas, mas não sabe nada de futebol. Você é um menino forte. Não vai se machucar jogando futebol.”

“A Ana Magdalena falou que eu não posso.”

“Tudo bem, não vou forçar você a jogar futebol. Mas por favor me explique uma coisa. Você nunca me obedece, raramente obedece a Inés, no entanto faz exatamente o que manda a Ana Magdalena. Por que isso?”

Nenhuma resposta.

“Tudo bem. Boa noite. Nos vemos de manhã.”

Ele volta para seu quarto de mau humor. Houve um tempo em que o menino se entregava de corpo e alma a Inés, ou pelo menos à visão que Inés tinha dele, de um pequeno príncipe na clandestinidade; mas esse tempo parece ter acabado. Para Inés deve ser desanimador ser superada pela señora Arroyo. Quanto a ele, que lugar lhe sobrou na vida do menino? Talvez devesse seguir o exemplo de Bolívar. Bolívar quase completou a transição para o ocaso de uma vida de cachorro. Está barrigudo; às vezes, ao se acomodar para dormir, solta um pequeno suspiro triste. Porém se Inés fosse tão inconsciente a ponto de introduzir um filhote na família, um filhote destinado a crescer e tomar o lugar do atual guardião, Bolívar ia cravar os dentes no pescoço do rival e sacudir até lhe quebrar o osso do pescoço. Talvez ele devesse se tornar um pai desse tipo: ocioso, egoísta e perigoso. Talvez assim o menino o respeitasse.

Inés parte na prometida viagem a Novilla; durante esse tempo, o menino é de novo responsabilidade dele. Na sexta-feira à tarde, ele está esperando na porta da Academia. A campainha toca, os alunos saem, mas nem sinal de Davíd.

Ele sobe a escada. O estúdio está vazio. Um pouco adiante dele, um corredor sem iluminação leva a uma série de salas com painéis de madeira escura, sem nenhuma mobília. Ele passa por um espaço sombrio, talvez um refeitório, com mesas compridas que parecem desgastadas e um aparador cheio de louças, e se vê ao pé de outro lance de escadas. Do alto, vem o murmúrio de uma voz masculina. Ele sobe, bate a uma porta fechada. A voz se cala. Então: “Entre”.

Ele está numa sala espaçosa, iluminada por claraboias, evidentemente o dormitório dos internos. Sentados lado a lado em uma das camas estão Ana Magdalena e Alyosha. Uma dúzia de crianças reunidas em torno deles. Ele reconhece os dois filhos dos Arroyo que dançaram no concerto, mas Davíd não está ali.

“Desculpe a intromissão”, ele diz. “Estou procurando meu filho.”

“Davíd está na aula de música”, diz Ana Magdalena. “Vai estar livre às quatro horas. Gostaria de esperar? Pode ficar conosco. Alyosha está lendo uma história. Alyosha, meninos, este é o señor Simón, pai do Davíd.”

“Não estou incomodando?”, ele pergunta.

“Você não está incomodando”, diz Ana Magdalena. “Sente-se. Joaquín, conte para o señor Simón o que aconteceu até agora.”

Você não está incomodando. Sente-se. Na voz de Ana Magdalena, em toda sua postura, há uma inesperada cordialidade. A mudança terá acontecido porque estiveram nus juntos? Só precisava disso?

Joaquín, o mais velho dos meninos Arroyo, fala. “Era um pescador, um pobre pescador, e um dia ele pega um peixe, corta e encontra na barriga dele um anel de ouro. Ele esfrega o anel e…”

“E sai uma faísca.” É o irmão mais novo que interrompe. “Ele esfrega o anel e faz sair faísca.”

“Ele esfrega o anel para sair faísca, aí aparece um gênio e o gênio diz: ‘Cada vez que esfregar o anel mágico eu apareço e atendo um pedido seu; você tem três pedidos; então qual o seu primeiro pedido?’. É isso.”

“Todo-poderoso”, diz Ana Magdalena. “Não esqueça que o gênio diz que é todo-poderoso e pode atender qualquer pedido. Continue a leitura, Alyosha.”

Ele não havia olhado com cuidado para Alyosha antes. O rapaz tem uma vasta cabeleira preta, muito bonita, que ele penteia para trás, e a pele delicada como a de uma moça. Não há sinal de que faça a barba. Ele baixa os olhos escuros de cílios longos e, com voz surpreendentemente ressonante, lê.

“Sem acreditar nas palavras do gênio, o pescador decide fazer um teste. ‘Desejo cem peixes para vender no mercado’, ele disse.

“Imediatamente uma grande onda quebrou na praia e deixou cem peixes aos pés dele, saltando e se debatendo ao morrer.

“‘Qual seu segundo desejo?’, perguntou o gênio.

“Encorajado, o pescador replicou: ‘Desejo uma linda moça para ser minha esposa’.

“Imediatamente apareceu e se ajoelhou diante do pescador uma moça tão linda que ele ficou sem fala. ‘Sou sua, meu senhor’, disse a moça.

“‘E qual é o seu desejo final?’, perguntou o gênio.

“‘Desejo ser o rei do mundo’, disse o pescador.

“Imediatamente o pescador se viu vestido de seda dourada, com uma coroa de ouro na cabeça. Apareceu um elefante que o ergueu com a tromba e o pôs sentado no trono que tinha nas costas. ‘Você fez o seu desejo final. É o rei do mundo’, disse o gênio. ‘Adeus.’ E desapareceu numa nuvem de fumaça.

“O dia estava terminando. A praia estava deserta, a não ser pelo pescador e sua linda futura noiva, o elefante e cem peixes morrendo. ‘Siga para a minha aldeia’, disse o pescador em sua voz mais majestosa. ‘Siga!’ Mas o elefante não se mexeu. ‘Siga!’, gritou o pescador ainda mais alto; mesmo assim o elefante não lhe deu atenção. ‘Você! Moça!’, gritou o rei. ‘Pegue uma vara e bata no elefante para ele andar!’ Obediente, a moça pegou uma vara e bateu no elefante até que ele começou a andar.

“O sol estava se pondo quando chegaram à aldeia do pescador. Os vizinhos se juntaram em torno dele, deslumbrados com o elefante, com a linda moça e com o próprio pescador, sentado em seu trono com a coroa na cabeça. ‘Atenção, eu sou o rei do mundo e esta é a minha rainha!’, disse o pescador. ‘Como prova da minha generosidade, amanhã darei um banquete com cem peixes.’ Os aldeões se rejubilaram e ajudaram o rei a descer do elefante; ele se recolheu na sua humilde morada, onde passou a noite nos braços de sua linda noiva.

“Assim que o dia amanheceu, os aldeões foram para a praia pegar os cem peixes. Quando chegaram, não viram nada além de espinhos, pois durante a noite lobos e ursos tinham ido até a praia e enchido a barriga. Então os aldeões voltaram e disseram: ‘Ó rei, lobos e ursos devoraram os peixes, pegue mais peixe para nós, estamos com fome’.

“Das dobras de sua roupa, o pescador tirou o anel de ouro. Esfregou e esfregou, mas não apareceu gênio nenhum.

“Então os aldeões ficaram furiosos e disseram: ‘Que rei é esse que não é capaz de nos alimentar?’.

“‘Eu sou o rei do mundo inteiro’, respondeu o pescador que virou rei. ‘Se se recusarem a me aceitar, irei embora.’ Virou-se para sua noiva dessa noite. ‘Traga o elefante’, ordenou. ‘Vamos embora desta aldeia ingrata.’

“Mas durante a noite o elefante tinha ido embora, com trono e tudo, e ninguém sabia onde encontrá-lo.

“‘Venha!’, disse o pescador a sua noiva. ‘Vamos andando.’

“Mas a noiva se recusou. ‘Rainhas não andam’, ela disse, amuada. ‘Quero ir como rainha montada em un palafrén blanco com uma comitiva de donzelas abrindo caminho com pandeiros.’”

A porta se abriu, e Dmitri entrou na sala na ponta dos pés, seguido por Davíd. Alyosha fez uma pausa na leitura. “Venha, Davíd”, disse Ana Magdalena. “Alyosha está lendo para nós a história do pescador que queria ser rei.”

Davíd se acomodou ao lado dela e Dmitri ficou na porta, agachado, com o quepe na mão. Ana Magdalena franziu a testa e fez um pequeno gesto abrupto ordenando que saísse, mas ele não deu atenção.

“Vamos lá, Alyosha”, diz Ana Magdalena, “e escutem bem, crianças, porque quando o Alyosha terminar, vou perguntar para vocês o que aprenderam com a história do pescador.”

“Eu sei a resposta”, diz Davíd. “Já li a história sozinho.”

“Pode ter lido a história, Davíd, mas nós não lemos”, diz Ana Magdalena. “Continue, Alyosha.”

“Você é minha noiva e vai me obedecer”, disse o pescador.

“A moça ergueu a cabeça, altiva. ‘Sou uma rainha, não ando, vou montada num palafrén’, ela repetiu.”

“O que é palafrén, Alyosha?”, perguntou uma das crianças.

Palafrén é um cavalo”, diz Davíd. “Não é, Alyosha?”

Alyosha faz que sim com a cabeça. “Vou montada num palafrén.”

“Sem dizer uma palavra, o rei virou as costas para sua noiva e foi embora. Andou muitos quilômetros até chegar a uma aldeia. Os aldeões se juntaram em torno dele, deslumbrados com sua coroa e a roupa de seda.

“‘Atenção, eu sou o rei do mundo’, disse o pescador. ‘Tragam comida porque estou com fome.’

“‘Trazemos comida, sim’, replicaram os aldeões, ‘mas se é rei como diz, onde está sua comitiva?’

“‘Não preciso de comitiva para ser rei’, disse o pescador. ‘Não estão vendo a coroa na minha cabeça? Façam o que eu mando. Tragam um banquete.’

“Então os aldeões riram dele. Em vez de trazer um banquete, derrubaram a coroa de sua cabeça e puxaram a roupa de seda até ele ficar diante deles com a roupa humilde de pescador. ‘Você é um mentiroso!’, gritaram os aldeões. ‘Não passa de um pescador! Não é melhor do que nós! Volte para o lugar de onde saiu!’ E bateram nele com varas até ele sair correndo. E assim termina a história do pescador que queria ser rei.”

“E assim termina a história”, ecoa Ana Magdalena. “Uma história interessante, não é, crianças? O que acham que aprenderam com ela?”

“Eu sei”, diz Davíd, e dá a ele, Simón, um pequeno sorriso secreto como se dissesse: Está vendo como eu sou inteligente aqui na Academia?

“Você pode saber, Davíd, mas é porque leu a história antes”, diz Ana Magdalena. “Vamos dar uma chance para as outras crianças.”

“O que aconteceu com o elefante?”, pergunta o menino Arroyo mais novo.

“Alyosha, o que aconteceu com o elefante?”, Ana Magdalena pergunta.

“O elefante foi arrebatado para o céu num grande redemoinho e deixado de volta na floresta onde morava e viveu feliz para sempre”, diz Alyosha, serenamente.

Um brilho passa pelos olhos dela. Pela primeira vez, ocorre a ele que pode haver alguma coisa entre eles, entre a esposa de alabastro puro do diretor e o belo assistente jovem.

“O que nós podemos aprender com a história do pescador?”, Ana Magdalena repete. “O pescador era um homem bom ou mau?”

“Era um homem mau”, diz o menino Arroyo mais novo. “Ele bateu no elefante.”

“Ele não bateu no elefante, a noiva dele bateu no elefante”, diz o menino Arroyo mais velho, Joaquín.

“Mas foi ele que fez ela bater.”

“O pescador era ruim porque era egoísta”, diz Joaquín. “Ele só pensou nele mesmo quando ganhou os três pedidos. Ele podia ter pensado nos outros.”

“Então o que aprendemos com a história do pescador?”, pergunta Ana Magdalena.

“Que a gente não deve ser egoísta.”

“Todo mundo concorda, crianças?”, Ana Magdalena pergunta. “Todo mundo concorda com o Joaquín que a história nos ensina a não ser egoístas, que se somos muito egoístas vamos acabar expulsos para o deserto por nossos vizinhos? Davíd, você queria dizer alguma coisa.”

“Os aldeões estavam errados”, diz Davíd. Ele olha em torno, erguendo o queixo de um jeito desafiador.

“Explique”, diz Ana Magdalena. “Diga suas razões. Por que os aldeões estavam errados?”

“Ele era rei. Eles tinham que se curvar diante dele.”

De Dmitri, acocorado na porta, vem o som de um aplauso lento. “Bravo, Davíd”, diz Dmitri. “Falou como um mestre.”

Ana Magdalena franze a testa para Dmitri. “Você não tem suas obrigações?”, ela pergunta.

“Obrigações com estátuas? As estátuas são mortas, todas elas, podem se cuidar sozinhas.”

“Ele não era rei de verdade”, diz Joaquín, que parece estar ganhando segurança. “Ele era um pescador fingindo que era rei. É isso que a história diz.”

“Ele era rei”, diz Davíd. “O gênio transformou ele em rei. O gênio é todo-poderoso.”

Os dois meninos se encaram. Alyosha intervém. “Como alguém se transforma em rei?”, ele pergunta. “Essa é a verdadeira pergunta, não é? Como qualquer um de nós vira rei? Temos que encontrar um gênio? Temos que abrir um peixe e encontrar um anel mágico?”

“Primeiro precisa ser príncipe”, diz Joaquín. “Não pode ser rei se não foi príncipe antes.”

“Pode, sim”, diz Davíd. “Ele tinha três desejos, e esse era o terceiro desejo dele. O gênio fez ele ser rei do mundo.”

Mais uma vez, vem de Dmitri um aplauso lento e sonoro. Ana Magdalena o ignora. “Então o que você acha que podemos aprender com a história, Davíd?”, ela pergunta.

O menino respira fundo, como se fosse falar, mas abruptamente balança a cabeça.

“O quê?”, Ana Magdalena repete.

“Não sei. Não consigo ver.”

“Hora de ir embora, Davíd”, ele diz e se levanta. “Muito obrigado, Alyosha, pela leitura. Muito obrigado, señora.”

É a primeira visita do menino ao quarto apertado em que agora ele, Simón, está morando. Ele não faz nenhum comentário a respeito, mas toma suco de laranja e come biscoitos. Depois, com Bolívar à sombra deles, saem para um passeio, explorando o bairro. Não é um bairro interessante, só uma rua atrás da outra com casas de fachada estreita. Porém, é fim de tarde de sexta-feira e as pessoas que voltam do trabalho semanal para casa olham com curiosidade o menino pequeno e o cachorro grande de frios olhos amarelos.

“Este é o meu território”, diz ele, Simón. “É aqui que eu entrego minhas mensagens, em todas as ruas por aqui. Não é um grande emprego, mas ser estivador também não era. Cada um encontra o nível que melhor lhe convém, e este é o meu nível.”

Param num cruzamento. Bolívar passa à frente deles em direção à rua. Um homem rude de bicicleta desvia dele, olha para trás, furioso. “Bolívar!”, o menino exclama. Preguiçosamente, Bolívar volta para o lado dele.

“O Bolívar se comporta como se fosse rei”, diz ele, Simón. “Ele se comporta como se tivesse encontrado um gênio. Pensa que todo mundo vai abrir passagem para ele. Devia pensar melhor. Talvez tenha esgotado todos os seus desejos. Ou talvez seu gênio fosse feito só de fumaça.”

“Bolívar é o rei dos cachorros”, diz o menino.

“Ser rei dos cachorros não impede que ele seja atropelado por um carro. No fim, o rei dos cachorros é só um cachorro.”

Por alguma razão, o menino não está na sua animação habitual. À mesa, durante a refeição de purê de batatas, molho e ervilhas, ele tem os olhos baixos. Sem protestar, se acomoda no sofá para dormir.

“Durma bem”, ele, Simón, sussurra e o beija na testa.

“Estou ficando pequenininho-pequenininho-pequenininho”, o menino diz com voz rouca, meio dormindo. “Estou ficando pe­quenininho-pequenininho-pequenininho e estou caindo.”

“Pode cair”, ele sussurra. “Eu estou aqui para cuidar de você.”

“Eu sou um fantasma, Simón?”

“Não, você não é um fantasma, você é real. Você é real e eu sou real. Agora durma.”

De manhã, ele parece mais esperto. “O que a gente vai fazer hoje?”, pergunta. “Podemos ir até o lago? Eu quero andar naquele barco de novo.”

“Hoje não. Nós podemos fazer uma excursão ao lago quando o Diego e o Stefano estiverem aqui; vamos mostrar os lugares para eles. Que tal uma partida de futebol? Vou comprar o jornal e ver quem está jogando.”

“Não quero assistir futebol. É chato. A gente pode ir ao museu?”

“Tudo bem. Mas é o museu mesmo que você quer ver ou é o Dmitri? Por que você gosta tanto do Dmitri? Por que ele te dá balas?”

“Ele conversa comigo. Me conta coisas.”

“Ele conta histórias?”

“É.”

“O Dmitri é um homem solitário. Está sempre procurando alguém para contar história. É um pouco patético. Ele devia arrumar uma namorada.”

“Ele está apaixonado pela Ana Magdalena.”

“É, ele me disse, então ele diz para quem quiser ouvir. A Ana Magdalena deve achar embaraçoso.”

“Ele tem fotos de mulher sem roupa.”

“Bom, isso não me surpreende. É isso o que os homens fazem quando estão solitários, alguns homens. Colecionam fotos de mulheres bonitas e ficam sonhando como seria ficar com elas. O Dmitri é solitário e não sabe o que fazer com a solidão dele, então quando não está andando atrás da señora Arroyo como um cachorro, olha as fotos. Não se pode censurar, mas ele não devia mostrar essas fotos para você. Não é legal, e a Inés vai ficar furiosa se souber. Vou falar com ele. Ele mostra para as outras crianças também?”

O menino assente.

“O que mais você pode me dizer? Sobre o que vocês conversam?”

“Sobre a outra vida. Ele diz que vai ficar com a Ana Magdalena na outra vida.”

“Só isso?”

“Ele diz que eu posso ficar com eles na outra vida.”

“Você e quem mais?”

“Só eu.”

“Definitivamente, vou falar com ele. Vou falar com Ana Magdalena também. Não estou contente com o Dmitri. Não acho que você deva ficar muito com ele. Agora acabe seu café da manhã.”

“Dmitri disse que ele tem luxúria. O que é luxúria?”

“Luxúria é uma coisa que acontece com os adultos, meu menino, geralmente homens adultos como o Dmitri que ficam muito sozinhos, sem mulher nem namorada. É um tipo de dor, como uma dor de cabeça, uma dor de estômago. Faz com que tenham fantasias. Faz imaginarem coisas que não são verdade.”

“O Dmitri sofre de luxúria por causa da Ana Magdalena?”

“Davíd, Ana Magdalena é uma mulher casada. Tem um marido que ela ama. Pode ser amiga do Dmitri, mas não pode amar o Dmitri. Ele precisa de uma mulher que sinta amor por ele mesmo. Assim que encontrar uma mulher para amar, ele vai ficar curado de todo o sofrimento. Não vai precisar mais olhar para fotos e não vai precisar contar para qualquer um que passa o quanto ele adora a senhora do andar de cima. Mas tenho certeza que ele fica agradecido por você ouvir as histórias dele, por ser um bom amigo para ele. Tenho certeza que isso o ajuda.”

“Ele falou para um outro menino que vai se matar. Que vai botar uma bala na cabeça.”

“Para qual menino?”

“Outro menino.”

“Não acredito. O menino deve ter entendido errado. Dmitri não vai se matar. Além disso, ele não tem uma arma. Na segunda-feira de manhã, quando levar você para a escola, vou ter uma conversa com o Dmitri e perguntar qual é o problema e o que eu posso fazer para ajudar. Talvez, quando formos todos para o lago, a gente possa convidar o Dmitri. Vamos fazer isso?”

“Vamos.”

“Até lá, não quero que fique sozinho com o Dmitri. Entendeu? Entende o que estou dizendo?”

O menino fica calado, se recusa a olhar para ele.

“Davíd, entende o que eu estou dizendo? Isso é coisa séria. Você não conhece o Dmitri. Não sabe por que ele te faz confidências. Não sabe o que acontece no coração dele.”

“Ele estava chorando. Eu vi. Estava escondido dentro do armário e chorando.”

“Qual armário?”

“No armário das vassouras, dessas coisas.”

“Ele te falou por que estava chorando?”

“Não.”

“Bom, quando alguma coisa está pesada no coração, sempre faz bem chorar. Provavelmente tem alguma coisa pesando no coração do Dmitri, e, agora que ele chorou, o coração dele vai ficar mais leve. Vou falar com ele. Vou descobrir qual o problema. Vou até o fundo dessa história.”