Roberta, que no primeiro dia eles acharam que era proprietária da fazenda, é na verdade uma funcionária como eles, empregada para supervisionar os trabalhadores, fornecer-lhes as rações e pagar os salários. É uma pessoa simpática, de quem todos gostam. Ela se interessa pela vida pessoal dos trabalhadores e dá pequenos agrados às crianças: doces, biscoitos, limonada. Eles ficam sabendo que a fazenda pertence a três irmãs conhecidas por toda parte simplesmente como as Três Irmãs, velhas agora, e sem filhos, que dividem o tempo entre a fazenda e sua residência em Estrella.
Roberta tem uma longa conversa com Inés. “O que você vai fazer sobre a educação do seu filho?”, ela pergunta. “Dá para ver que é um menino inteligente. Seria uma pena ele acabar como o Bengi, que nunca foi a uma escola direito. Não que tenha nada errado com o Bengi. Ele é um bom menino, mas não tem futuro. Vai ser apenas trabalhador rural como os pais, e que tipo de vida é essa, a longo prazo?”
“O Davíd ia à escola em Novilla”, diz Inés. “Não deu certo. Ele não teve bons professores. É uma criança naturalmente inteligente. Achou o ritmo da classe muito lento. Tivemos de tirar o Davíd da escola e ensinar em casa. Tenho medo que se ele voltar para a escola vá ter a mesma experiência.”
O relato de Inés sobre o contato deles com o sistema escolar de Novilla não é inteiramente verdadeiro. Ele e Inés tinham concordado em não falar de seu envolvimento com as autoridades de Novilla; mas evidentemente Inés sente liberdade para confiar na mulher mais velha, e ele não interfere.
“Ele quer ir para a escola?”, Roberta pergunta.
“Não, não quer, não depois da experiência em Novilla. Está absolutamente feliz aqui na fazenda. Ele gosta da liberdade.”
“É uma vida maravilhosa para uma criança, mas a colheita está quase terminando, sabe. E correr pela fazenda como um louco não é preparo para o futuro. Já pensou num professor particular? Ou numa academia? Uma academia não será uma escola normal. Talvez uma academia combine mais com ele.”
Inés fica em silêncio. Ele, Simón, fala pela primeira vez. “Não temos dinheiro para um tutor particular. Quanto à academia, não existem academias em Novilla. Pelo menos ninguém falou de nenhuma. O que exatamente é uma academia? Porque se for apenas um nome chique para uma escola de crianças-problema, crianças com ideias próprias, não nos interessa, não é, Inés?”
Inés balança a cabeça.
“São duas academias em Estrella”, diz Roberta. “Não são para crianças-problema de jeito nenhum. Uma é a Academia de Canto e a outra a Academia de Dança. Tem também a Escola Atômica; mas é para crianças mais velhas.”
“Davíd gosta de cantar. Tem boa voz. Mas o que acontece nessas academias além de cantar e dançar? Dão aulas de verdade? E aceitam crianças assim tão novas?”
“Não sou especialista em educação, Inés. Todas as famílias que eu conheço em Estrella puseram os filhos em escolas normais. Mas tenho certeza de que as academias ensinam o básico, sabe?, ler, escrever, essas coisas. Posso perguntar para as irmãs se quiserem.”
“E essa Escola Atômica?”, ele pergunta. “O que ensinam lá?”
“Ensinam sobre átomos. Observam átomos no microscópio, fazendo seja lá o que os átomos fazem. É só isso que eu sei.”
Ele e Inés trocam olhares. “Vamos pensar nas academias como uma possibilidade”, ele diz. “Por enquanto, estamos totalmente satisfeitos com a vida que temos aqui na fazenda. Você acha que podemos continuar aqui depois do fim da colheita, se a gente oferecer às irmãs um pequeno aluguel? Senão vamos ter que passar pela complicação de fazer registro na Asistencia, procurar um emprego e encontrar um lugar para viver. E não estamos prontos para isso, não ainda, não é mesmo, Inés?”
Inés assente com a cabeça.
“Deixe eu falar com as irmãs”, diz Roberta. “Vou falar com a señora Consuelo. Ela é a mais prática. Se ela disser que podem ficar na fazenda, vocês talvez possam dar uma telefonada para o señor Robles. Ele dá aula particular e não cobra muito caro. Faz isso por amor.”
“Quem é o señor Robles?”
“É o engenheiro hidráulico do distrito. Mora uns quilômetros mais adiante no vale.”
“Mas por que um engenheiro hidráulico dá aula particular?”
“Ele faz todo tipo de coisas além da engenharia. É um homem de muitos talentos. Está escrevendo a história do assentamento no vale.”
“Uma história. Não sabia que lugares como Estrella têm história. Se me der o número de telefone, eu entro em contato com o señor Robles. E você não esquece de falar com a señora Consuelo?”
“Eu falo. Tenho certeza que ela não vai se opor que vocês fiquem aqui enquanto procuram alguma coisa mais permanente. Vocês devem estar loucos para mudar para uma casa própria.”
“Na verdade, não. Estamos contentes com as coisas do jeito que estão. Para nós, viver como ciganos ainda é uma aventura, não é, Inés?”
Inés faz que sim.
“E o menino está contente também. Está aprendendo a vida, mesmo sem ir à escola. Tem alguma coisa que eu possa fazer na fazenda para retribuir sua gentileza?”
“Claro. Sempre tem alguma coisa.” Roberta faz uma pausa, pensativa. “Mais uma coisa. Tenho certeza que vocês já sabem, este ano vai ter recenseamento. Os recenseadores são muito rigorosos. Passam por todas as fazendas, até as mais remotas. Então, se vocês estiverem tentando escapar do censo, não estou dizendo que estejam, não vai dar certo ficarem aqui.”
“Não estamos tentando escapar de nada”, diz ele, Simón. “Não somos fugitivos. Queremos simplesmente o que for melhor para nosso filho.”
No dia seguinte, no fim da tarde, um caminhão para na fazenda e um homem grande, de rosto corado, desce. Roberta o cumprimenta e o leva para o dormitório. “Señor Simón, señora Inés, este é o señor Robles. Vou deixar vocês três à vontade para discutirem o assunto.”
A discussão é breve. O señor Robles, como ele os informa, adora crianças e se dá bem com elas. Vai ficar contente de apresentar ao jovem Davíd, que foi muito elogiado pela señora Roberta, os elementos da matemática. Se eles concordarem, ele virá à fazenda duas vezes por semana para dar aula ao menino. Não aceita nenhum tipo de pagamento. Sua recompensa será entrar em contato com uma jovem mente brilhante. Ele próprio, ah!, não tem filhos. Sua esposa faleceu, ele é sozinho no mundo. Se entre os filhos dos outros colhedores de frutas houver algum que queira fazer as aulas junto com Davíd, será bem-vindo. E os pais, señora Inés e señor Simón, podem assistir à aula também, nem é preciso dizer.
“O senhor não vai achar aborrecido ensinar matemática elementar?”, pergunta ele, señor Simón, pai.
“Claro que não”, diz o señor Robles. “Para um matemático de verdade, os elementos da ciência são a parte mais interessante, e instilar os elementos numa mente jovem é o maior desafio. Um desafio gratificante.”
Ele e Inés comunicam a oferta do señor Robles aos poucos colhedores de frutas que restaram na fazenda, mas quando chega a hora da primeira lição, Davíd é o único aluno, e ele, Simón, o único pai presente.
“Nós sabemos o que é um”, diz o señor Robles, abrindo a aula, “mas o que é dois? Essa é a pergunta que temos hoje.”
É um dia quente, sem vento. Estão sentados à sombra de uma árvore na frente do dormitório, o señor Robles e o menino de lados opostos de uma mesa, ele discretamente à parte, com Bolívar a seus pés.
Do bolso da camisa, o señor Robles tira duas canetas e as coloca lado a lado na mesa. De outro bolso, tira um frasco de vidro, sacode de dentro dele duas pílulas brancas e as coloca ao lado das canetas. “O que estas”, a mão passa sobre as canetas, “e estas”, a mão passa sobre as pílulas, “têm em comum, meu jovem?”
O menino fica em silêncio.
“Ignorando seu uso como instrumentos de escrita e remédio, olhando para elas como simples objetos, existe alguma propriedade que estas”, ele empurra as canetas ligeiramente para a direita, “e estas”, ele empurra as pílulas ligeiramente para a esquerda, “têm em comum? Alguma propriedade faz com que sejam parecidas?”
“São duas canetas e duas pílulas”, diz o menino.
“Ótimo!”, diz o señor Robles.
“As duas pílulas são iguais, mas as duas canetas não são iguais porque uma é azul e a outra vermelha.”
“Mas mesmo assim são duas, não é? Então qual a propriedade que as pílulas e as canetas têm em comum?”
“Duas. Duas canetas e duas pílulas. Mas não são as mesmas duas.”
O señor Robles lança a ele, Simón, um olhar irritado. De seus bolsos, tira outra caneta e outra pílula. Agora são três canetas na mesa, três pílulas. “O que estas”, ele para a mão sobre as canetas, “e estas”, para a mão sobre as pílulas, “têm em comum?”
“Três”, diz o menino. “Mas não são as mesmas três porque as canetas são diferentes.”
O señor Robles ignora a qualificação. “E elas não precisam ser canetas ou pílulas, precisam? Eu podia muito bem trocar as canetas por laranjas e as pílulas por maçãs, e a resposta seria a mesma: três. Três é o que as da esquerda, as laranjas, têm em comum com as da direita, as maçãs. Três em cada grupo. Então o que nós aprendemos?” E antes que o menino possa responder, ele informa o que aprenderam: “Aprendemos que três não depende do que faz parte do conjunto, sejam maçãs ou laranjas, canetas ou pílulas. Três é o nome da propriedade que esses conjuntos têm em comum”. Ele então afasta uma das canetas e uma das pílulas. “E três não é a mesma coisa que dois, porque”, ele abre a mão na qual estão guardadas a caneta e a pílula que faltam, “eu subtraí um item, um de cada grupo. Então o que nós aprendemos? Aprendemos sobre o dois e sobre o três e exatamente do mesmo jeito podemos aprender sobre o quatro e o cinco e assim por diante até cem, até mil, até um milhão. Aprendemos uma coisa sobre os números: que cada número é o nome de uma propriedade de certos grupos de objetos no mundo.”
“Até um milhão de milhões”, diz o menino.
“Até um milhão de milhões e mais”, concorda o señor Robles.
“Até as estrelas”, diz o menino.
“Até o número das estrelas”, concorda o señor Robles, “que pode ser infinito, nós ainda não sabemos com certeza. Então o que conseguimos até agora na nossa primeira aula? Descobrimos o que é um número e também descobrimos um jeito de contar: um, dois, três e assim por diante, um jeito de ir de um número para o seguinte numa ordem definida. Então vamos resumir. Me diga, Davíd, o que é dois?”
“Dois é quando tem duas canetas na mesa ou duas pílulas ou duas maçãs ou duas laranjas.”
“Isso, muito bom, quase certo, mas não exatamente certo. Dois é o que as coisas têm em comum, maçãs, laranjas ou qualquer outro objeto.”
“Mas tem de ser coisa dura”, diz o menino. “Não pode ser mole.”
“Pode ser um objeto duro ou um objeto mole. Pode ser qualquer objeto no mundo, sem restrição, contanto que haja mais de um dele. Isso é um ponto importante. Todo objeto do mundo está sujeito à aritmética. Na verdade, todo objeto do universo.”
“Mas água não. Nem vômito.”
“Água não é um objeto. Um copo de água é um objeto, mas a água em si não é um objeto. Um outro jeito de dizer isso é dizer que a água não é contável. Como o ar ou a terra. Ar e terra também não são contáveis. Mas nós podemos contar baldes de terra ou tubos de ar.”
“Isso é bom?”, pergunta o menino.
O señor Robles guarda as canetas no bolso, põe as pílulas de volta no frasco, vira-se para Simón. “Vou dar uma passada aqui de novo na quinta-feira”, ele diz. “Aí podemos mudar para adição e subtração; como juntamos dois grupos para conseguir uma soma, ou removemos elementos de um grupo para ter uma diferença. Nesse meio-tempo, seu filho pode praticar contagem.”
“Eu já sei contar”, diz o menino. “Sei contar até um milhão. Aprendi sozinho.”
O señor Robles se levanta. “Qualquer um consegue contar até um milhão”, ele diz. “O importante é entender o que os números são de fato. Para ter uma base firme.”
“Tem certeza que não quer ficar?”, diz ele, Simón. “Inés está fazendo chá.”
“Ah, não tenho tempo”, diz o señor Robles e vai embora numa nuvem de poeira.
Inés aparece com a bandeja de chá. “Ele foi embora?”, pergunta. “Achei que ia ficar para o chá. Foi uma aula muito curta. Como foi?”
“Ele vai voltar na quinta que vem”, diz o menino. “E aí nós vamos fazer o quatro. Hoje a gente fez o dois e o três.”
“Não vai ser muito demorado fazer só um número de cada vez?”, diz Inés. “Não tem um jeito mais rápido?”
“O señor Robles quer ter certeza de que os fundamentos estejam firmes”, diz ele, Simón. “Com os fundamentos bem firmes, vamos estar prontos para levantar nosso edifício matemático em cima deles.”
“O que é um edifício?”, pergunta o menino.
“Edifício é um prédio. Esse edifício em particular vai ser uma torre, eu acho, que vai subir até o céu. Leva muito tempo para construir uma torre. Temos de ter paciência.”
“Ele só precisa ser capaz de fazer somas”, diz Inés, “para não levar desvantagem na vida. Por que precisa ser um matemático?”
Faz-se um silêncio.
“O que você acha, Davíd?”, diz ele, Simón. “Você quer continuar com essas aulas? Está aprendendo alguma coisa?”
“Eu já sei do quatro”, diz o menino. “Sei todos os números. Eu já falei, mas você não escutou.”
“Eu acho que nós devemos cancelar”, diz Inés. “É perda de tempo. Podemos encontrar alguma outra pessoa para ensinar, alguém preparado para ensinar soma.”
Ele conta a novidade para Roberta. (“Que pena!”, ela diz. “Mas vocês são os pais, vocês é que sabem.”) e telefona para o señor Robles. “Ficamos imensamente gratos, señor Robles, por sua generosidade e paciência, mas Inés e eu achamos que o menino precisa de alguma coisa mais simples, alguma coisa mais prática.”
“Matemática não é simples”, diz o señor Robles.
“Matemática não é simples, concordo, mas nosso plano nunca foi transformar o Davíd num matemático. Só queremos que ele não sofra as consequências de não ir para a escola. Queremos que ele se sinta seguro ao lidar com números.”
“Señor Simón, só encontrei com seu filho uma vez, não sou psicólogo, minha formação é em engenharia, mas tenho de dizer uma coisa ao senhor. Desconfio que o Davíd possa sofrer de uma espécie de déficit cognitivo. Isso quer dizer que ele tem uma deficiência em certa capacidade mental básica, nesse caso a capacidade de classificar objetos com base na semelhança. Essa capacidade vem tão naturalmente para nós, seres humanos normais, que mal temos consciência dela. É a capacidade de ver objetos como membros de classes que torna a linguagem possível. Não precisamos ver cada três como uma entidade individual, como os animais fazem, mas podemos ver como um exemplo da classe três. É também isso que torna possível a matemática
“Por que eu levantei a questão da classificação? Fiz isso porque em certos casos raros essa faculdade é fraca ou ausente. Essas pessoas vão ter sempre dificuldade com matemática e com linguagem abstrata em geral. Desconfio que seu filho seja assim.”
“Por que está me dizendo isso, señor Robles?”
“Porque acho que você tem um dever para com o menino, fazer com que ele passe por uma investigação mais profunda sobre sua condição e então talvez adaptar a forma que a educação dele deve assumir. Acho que o senhor devia marcar uma consulta urgente com um psicólogo, de preferência alguém especializado em desordens cognitivas. O Departamento de Educação pode fornecer nomes.”
“Adaptar a forma de educação dele: o que o senhor quer dizer com isso?”
“Falando de modo simples, quero dizer que, se ele vai sempre lutar com números e conceitos abstratos, talvez seja melhor ele ir, por exemplo, para uma escola técnica, onde vai aprender alguma coisa útil como encanamento ou carpintaria. Só isso. Vejo que o senhor resolveu cancelar nossas aulas de matemática e concordo com sua decisão. Acho que é sensata. Desejo ao senhor, sua esposa e filho um futuro feliz. Boa noite.”
“Falei com o señor Robles”, ele diz a Inés. “Cancelei as aulas. Ele acha que o Davíd devia ir para uma escola técnica, aprender a ser encanador.”
“Queria que o señor Robles estivesse aqui para eu lhe dar uma bofetada”, diz Inés. “Eu nunca fui com a cara dele.”
No dia seguinte, ele dirige pelo vale até a casa do señor Robles e deixa na porta dos fundos um litro de azeite de oliva, com um cartão. “Agradecimentos de Davíd e seus pais”, diz o cartão.
Então ele tem uma conversa séria com o menino. “Se a gente encontrar outro professor, alguém que ensine só somas simples para você, não matemática, você vai ouvir? Vai fazer o que mandamos?”
“Eu ouvi o señor Robles.”
“Eu sei perfeitamente que você não ouviu o señor Robles. Você sabotou. Gozou da cara dele. Disse bobagens de propósito. O señor Robles é um homem inteligente. Tem diploma de engenharia da universidade. Você podia ter aprendido com ele, mas em vez disso resolveu se fazer de bobo.”
“Eu não sou bobo, o señor Robles é que é bobo. Eu já sei somar. Sete com nove é dezesseis. Sete com dezesseis é vinte e três.”
“Por que não mostrou para ele que sabe fazer soma enquanto ele estava aqui?”
“Porque, do jeito dele, você primeiro tem de ficar pequeno. Tem de ficar pequeno igual a uma ervilha, e depois pequeno igual uma ervilha dentro de uma ervilha, depois uma ervilha dentro de uma ervilha dentro de uma ervilha. Depois você pode fazer os números dele, quando é pequeno pequeno pequeno pequeno pequeno.”
“E por que você tem de ser tão pequeno para fazer números do jeito dele?”
“Porque os números dele não são números de verdade.”
“Bom, queria que você tivesse explicado isso para ele em vez de se fazer de bobo, irritar o homem e fazer ele ir embora.”